ARTIGO
Revista de Direito da Faculdade Guanambi | Guanambi | v. 9 | n. 01 | e18807 | jan./jun. | 2022 | Página 1 de 26
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Revista de Direito da
FACULDADE GUANAMBI
ISSN 2447-6536
“Estilhaços de uma razão encarnada”: a crítica que sustenta a teoria
crítica da constituição
“Shards of an embodied reason”: the critique that sustains the critical theory of the
constitution
Guilherme Gonçalves Alcântara
1
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Belo Horizonte/MG
guilhermeralcant[email protected]
CONTEXTO: Qual é a ideia de crítica na teoria crítica frankfurtiana, e como essa ideia possibilita
reformular a teoria do direito e da constituição?
OBJETIVO: Guiado por estas perguntas, o presente ensaio visa apresentar uma revisão bibliográfica
de textos seminais para a compreensão da noção de crítica da teoria crítica, delineando seus
elementos constitutivos e seus processos de correção ao longo do século XX.
MÉTODO: Revisão bibliográfica, reconstrução crítica.
RELEVÂNCIA/ORIGINALIDADE: A relevância deste estudo reside no esclarecimento dos aportes
teórico-metodológicos de uma teoria crítica da constituição.
RESULTADOS: Os resultados são a indicação de seis elementos constitutivos da teoria crítica da
constituição.
CONTRIBUIÇÕES TEÓRICAS/METODOLÓGICAS: São eles: i) a recusa a qualquer tipo de dualismo que
isola teoria e realidade; (ii) o reconhecimento do caráter prático da teoria crítica; (iii) a aposta na
racionalização social; (iv) a adição da genealogia como ponto de vista metacrítico; (v) o abandono da
lógica proposicional em prol da lógica da resposta e da pergunta.
PALAVRAS-CHAVE: Constituição; Crítica; Teoria Crítica; Teoria Tradicional.
CONTEXT: What is the idea of criticism in Frankfurt's critical theory, and how does this idea make it
* Editor: Prof. Dr. Flávio Quinaud Pedron. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4259444603254002. ORCID:
https://orcid.org/0000-0003-4804-2886.
1
Doutorando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Mestre em Direito pelo
Centro Universitário FG (UNIFG). Pesquisador do SerTão: Núcleo Baiano de Estudos em Direito &
Literatura (RDL). Pesquisador do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Direito e Literatura - Legis
Literae (UNIUBE/MG). Pesquisador do Grupo de Estudos Teoria Crítica e Constitucionalismo
(UFMG). Lattes: http://lattes.cnpq.br/3545235149164538. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-
2210-1270.
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possible to reformulate the theory of law and the constitution?.
OBJECTIVE: Guided by these questions, the present essay aims to present a bibliographic review of
seminal texts for the understanding of the notion of critique of critical theory, outlining its
constitutive elements and its correction processes throughout the 20th century.
METHOD: Bibliographic review.
RELEVANCE/ORIGINALITY: The relevance of this study lies in the clarification of the theoretical-
methodological contributions of a critical theory of the constitution.
RESULTS: The results are an indication of six constitutive elements of the critical theory of the
constitution.
THEORETICAL/METHODOLOGICAL CONTRIBUTIONS: They are: i) the refusal of any type of dualism
that isolates theory and reality; (ii) recognition of the practical character of critical theory; (iii) the
commitment to social rationalization; (iv) the addition of genealogy as a metacritical point of view;
(v) the abandonment of propositional logic in favor of the logic of the answer and the question.
KEYWORDS: Constitution; Criticism; Critical Theory; Traditional Theory.
SUMÁRIO: INTRODUÇÃO; 1 AS APORIAS DA TEORIA CRÍTICA; 2 A REFORMULAÇÃO DA TEORIA CRÍTICA,
POR HABERMAS; 3 UMA TEORIA CRÍTICA DA CONSTITUIÇÃO, POR CATTONI DE
OLIVEIRA;CONSIDERAÇÕES FINAIS; REFERÊNCIAS.
SUMMARY: INTRODUCTION; 1 THE APORIAS OF CRITICAL THEORY; 2 THE REFORMULATION OF CRITICAL
THEORY, BY HABERMAS; 3 A CRITICAL THEORY OF THE CONSTITUTION, BY CATTONI DE OLIVEIRA; FINAL
CONSIDERATIONS; REFERENCES.
INTRODUÇÃO
A Teoria Crítica constitui uma das maiores tradições intelectuais do século
XX, de grande importância para a filosofia, a teoria política, a estética e teoria da
arte, o estudo da literatura e música europeias modernas, a história das ideias, a
sociologia, a psicologia e os estudos culturais. Uma equipe de colaboradores
bastante conhecidos figuram entre os principais nomes da teoria crítica, dentre eles,
Max Horkheimer, Theodor Adorno, Herbert Marcuse, Walter Benjamin, Jürgen
Habermas e Axel Honneth, bem como pensadores menos conhecidos, mas igualmente
importantes, como Friedrich Pollock, Franz Neumann, Erich Fromm e Otto
Kirchheimer, além de outros nomes recentes, como John Abromeit, Rahel Jaeggi,
Nancy Fraser, Donna Haraway, Seyla Benhabib e James Ingram, dentre outros, que
hoje dão continuidade, não sem ressalvas, a tal tradição.
Como veremos, Teoria crítica é o termo cunhado por Max Horkheimer em
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1937 para descrever o projeto de trabalho do Instituto de Pesquisas Sociais de
Frankfurt. Definida contra a concepção tradicional de teoria que governa as ciências
(incluindo as ciências sociais ou humanas, como a sociologia), e sua noção de que a
teoria é um sistema de proposições abstratas (ou seja, a-históricas, as-subjetivas e
as-sociais), passíveis de serem verificadas empiricamente, a teoria crítica sustenta
que o conhecimento científico é histórico, em certa medida subjetivo e,
certamente, social.
A tentativa de separar os conceitos de seus produtores dá origem ao que
Horkheimer se referiu como razão instrumental. Assim, a teoria crítica está, em
última análise, preocupada com o que é possível saber, dado que o status ontológico
(seja do sujeito, seja do objeto da teoria) jamais pode ser dado como certo. A
palavra crítico deve, assim, ser entendida em oposição, inspirada na obra de
Immanuel Kant, ao termo analítico: refere-se ao conjunto de conceitos cujo alcance
é sempre e necessariamente maior do que sua compreensão.
Não podemos ver, segurar ou pensar adequadamente algo tão vasto quanto
o universo em sua totalidade, por exemplo, mas sem o conceito de universo não
poderíamos nos situar no tempo e no espaço. O mesmo pode ser dito de conceitos
como direito, mas também nação, sociedade, comunidade, política, etc., todos
necessários para pensar o mundo, embora nenhum seja verificável em sentido
estritamente científico. Em geral, a teoria crítica explora as conexões,
sobreposições, interseções e interferências entre as três esferas do desenvolvimento
econômico, da vida psíquica e da cultura.
O ponto de partida da teoria crítica, derivada em parte de Karl Marx, mas
também inspirada em Émile Durkheim e Max Weber, é a modernidade como processo
de grande transformação do mundo ocorrido em meados do século XIX. Isso acarreta
três consequências: a tradição não pode ser usada como guia para pensar nem o
presente, nem o futuro; a sociedade se estilhaçou em subsistemas semi-autônomos
(por exemplo, o mercado, as várias profissões, a indústria), tornando difícil, ainda
que necessário, encontrar maneiras de falar do todo; o bom, o verdadeiro e o belo
foram desagregados, apresentando novos desafios à ética, à filosofia e à estética.
Sob tais condições, a teoria crítica, sobretudo a sua primeira geração,
interessou-se nos motivos pelos quais a sociedade humana falhou em cumprir a
promessa do esclarecimento e se tornou desigual, injusta e em grande parte cética,
cínica, indiferente. Testemunhas da barbárie da Primeira e da Segunda Guerras
Mundiais, a primeira geração de teóricos críticos talvez possa ser perdoada pela
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desolação de suas perspectivas. Atualmente o termo também é usado para se referir
muito vagamente a qualquer forma de teorização nas ciências humanas e
sociais, mesmo quando isso não é consistente com a perspectiva da Escola de
Frankfurt original. Isso tendeu a esvaziar o termo de qualquer significado e tornou
invisíveis suas preocupações políticas e metodológicas.
Este ensaio examina algumas preocupações teóricas compartilhadas que
deram impulso à teoria crítica ao longo de sua história, ao mesmo tempo, em que
mostra a diversidade entre seus proponentes que tanto contribui para sua riqueza
como teoria social. O resultado é uma visão geral da história da Teoria Crítica no
século XX, um exame de suas preocupações conceituais centrais e o esclarecimento
dos elementos que constituem uma teoria crítica da constituição.
1 AS APORIAS DA TEORIA CRÍTICA
O primeiro capítulo de Critique of power, de Honneth (1993, p. 5), aborda
o seminal ensaio Teoria Tradicional e Crítica, em que Horkheimer (1980) teria
resumido a afirmação teórica e a posição política da teoria crítica da sociedade
conforme projetada pela primeira geração do Instituto de Pesquisas Sociais de
Frankfurt. Neste texto, Horkheimer expõe as raízes práticas da concepção moderna
de ciência para poder fundamentar a teoria crítica, entendida como expressão
autoconsciente de processos de emancipação social e política, no contexto prático
que se torna visível. Horkheimer (1980, p. 117118) inicia retomando o modelo
tradicional de ciência com a reflexão de Descartes sobre o método. De acordo com
este modelo, a tarefa da teoria consiste na coleção de afirmações adquiridas
dedutivamente e sua aplicação hipotética à realidade empírica. A verdade de uma
teoria científica seria idêntica à força explicativa prognóstica de seu corpo de
afirmações (HONNETH, 1993, p. 5).
O interesse de Horkheimer reside no modelo básico segundo o qual a idade
moderna vislumbra a relação entre teoria científica e realidade. À medida que mais
e mais segmentos da realidade são capturados em uma rede de afirmações
hipotéticas, os processos naturais e sociais poderiam ser finalmente previstos e
controlados teoricamente. Horkheimer (1980, p. 120-121) vê nessa função das
teorias tradicionais, isto é, em sua capacidade de prever, controlar e, finalmente,
direcionar a realidade, o contexto constitutivo da ciência moderna. Mas, como
“Estilhaços de uma razão encarnada”: a crítica que sustenta a teoria crítica da constituição
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Horkheimer aponta, a teoria tradicional não reconheceria seu próprio contexto
constitutivo, uma vez que ficcionalmente separou-se de todos os processos sociais
de produção: refletindo um mal-entendido significativo, a teoria tradicional se veria
como teoria pura (HONNETH, 1993, p. 6- 7).
O sujeito conhecedor e o objeto conhecido são mutuamente determinados
desde o início pelo processo social de cultivo da natureza, cujo produto é a história
da espécie na totalidade. No entanto, a ciência moderna cai em um quando se
considera livre de todos os vínculos, até mesmo desse processo de trabalho. Assim,
os sujeitos atuantes não reconhecem as realizações constitutivas comuns, isto é, os
progressos históricos, que o processo de produção esboçado, orientado para a
dominação da natureza, tem proporcionado (HONNETH, 1993, p. 7; HORKHEIMER,
1980, p. 123-124).
De acordo com Honneth (1993, p. 8), Horkheimer usa o modelo
epistemológico de Kant para esclarecer a construção derivada da filosofia da história
que impulsiona a teoria crítica: assim como Kant traça o mundo dos objetos para a
experiência possível de volta às capacidades estruturalmente dadas de um sujeito
transcendental, o mundo social é considerado o produto ainda inconsciente do
cultivo humano da natureza. Como sujeito singular da história, a espécie humana
sempre já produz o mundo social, e o faz de maneira cada vez melhor. No entanto,
permaneceria inconsciente deste progresso racional.
O primeiro elemento constitutivo da teoria crítica seria, portanto, a sua
recusa a qualquer tipo de dualismo que compartimentasse teoria e realidade, norma
e fato, forma e matéria; em suma: forças produtivas do conhecimento teórico e
relações produtivas deste mesmo conhecimento. Pelo contrário, a teoria crítica
sinaliza, precisamente, para a contradição entre as forças produtivas e as relações
de produção, constitutiva de toda teoria, seja tradicional, seja crítica.
É essa interpretação da contradição ou tensão constitutiva entre forças
produtivas e relações produtivas, segundo Honneth (1993, p. 9), que regeria a
tentativa de Horkheimer de fundamentar uma teoria crítica da sociedade: as forças
produtivas são vistas como um potencial emancipatório cuja organização não
planejada no capitalismo é percebida apenas como expressão de autoengano
humano. Como Horkheimer poderia definir com maior precisão conceitual o contexto
prático ao qual a teoria crítica está constitutivamente relacionada se seu ponto de
partida na filosofia da história reduz toda a prática social à atividade produtiva da
espécie humana é a fonte da primeira ambivalência que Honneth (1993, p. 10) vê
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nas reivindicações feitas por uma teoria crítica da sociedade
2
.
O pensamento tradicional representaria uma forma de conhecimento
intelectualmente objetivada, coletada no processo histórico de dominação da
natureza. Possuiria caráter prático porque resolve problemas científicos,
resultantes da reprodução de uma organização de produção existente, por meio do
esquema de um conjunto de proposições que permitem apenas a explicação e a
previsão de processos naturais reais. Mesmo um nível mais elevado de reflexão sobre
a mesma origem prática, que tornasse consciente a dinâmica de desenvolvimento
imanente do processo de trabalho social, não poderia escapar desse quadro de
aplicação.
A consequência do argumento de Horkheimer, na leitura de Honneth (1993,
p. 12), é que a teoria crítica só poderia produzir um conhecimento técnico que, na
melhor das hipóteses, anteciparia as condições futuras de aplicação das forças
produtivas mais desenvolvidas, mas não permitiria uma crítica de seu modo atual de
organização. A perfeição científica da dominação da natureza não conduziria ela
mesma à decisão racional que, ao atribuir o potencial emancipatório das forças
produtivas ao controle consciente dos produtores, romperia o autoengano das
teorias tradicionais.
Neste ponto, porém, Honneth (1993, p. 1213) percebe que Horkheimer
introduz outra interpretação das condições sociais constitutivas da teoria crítica.
Nesta versão, a teoria crítica não seria um componente imanente do processo de
desenvolvimento do trabalho humano, mas uma expressão teórica de uma atividade
crítica pré-científica, relacionada, de forma distanciada, a todo o contexto da vida
social. Essa interpretação, que não tem como objeto a natureza, mas a própria
sociedade
3
, leva Horkheimer não apenas a uma diferente formulação das condições
sociais constitutivas da teoria crítica, como também à elaboração de seu segundo
elemento constitutivo.
Segundo Honneth (1993, p. 13), Horkheimer persegue, então, o
delineamento metodológico da teoria crítica da tradicional, tentando definir as
2
“Uma teoria que se refere conscientemente ao processo de trabalho social e tenha como objeto a
lógica desenvolvimentista imanente das realizações do trabalho social, e não os processos reais da
natureza, poderia projetar ficcionalmente esse curso de desenvolvimento no futuro, mas não
poderia então usá-lo como critério de crítica da vida social” (HONNETH, 1993, p. 11, tradução
nossa).
3
“Não se preocupa com uma extensão da dominação da natureza à vida social como controle social,
mas com uma atividade que vai além do sistema funcional socialmente estabelecido” (HONNETH,
1993, p. 13).
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diferentes maneiras pelas quais os dois tipos de teoria relacionam, respectivamente,
o sujeito cognoscente ao objeto de investigação. Na atividade transformadora da
natureza, da qual a teoria tradicional é a expressão, o sujeito se relaciona com um
evento natural que representa uma realidade independente dele. Assim, no caso da
teoria tradicional, o conhecimento científico é externo ao objeto de investigação.
Já a teoria crítica tem como objeto a sociedade em si, e, assim, a atividade crítica,
expressão da teoria crítica, é ela mesma parte da realidade investigada. Na teoria
crítica, sujeito e objeto não são externamente opostos reciprocamente da mesma
forma que nas teorias tradicionais. Essa segunda interpretação entende a teoria
social crítica como a objetivação científica de uma atividade prático-crítica
(HONNETH, 1993, p. 14).
A teoria crítica é um momento praticamente transformador na realidade
social que investiga, uma vez que orienta a práxis social na qual se sabe ter sido
produzida. A relação alterada de sujeito e objeto denota um segundo elemento
constitutivo da teoria crítica. Doravante, não é mais apenas o conhecimento das
condições práticas de sua própria origem; ao mesmo tempo, a teoria crítica é a
aplicação controlada de um conhecimento orientador da ação à práxis política
(HONNETH, 1993, p. 14).
Tal formulação, para Honneth (1993, p. 15), revela a disparidade entre a
caracterização epistemológica da teoria crítica e a filosofia da história que a
fundamenta. A estrutura de ação na base da luta social, sob a qual se baseia o
segundo elemento constitutivo da teoria crítica, seria de um tipo diferente daquela
da atividade de apropriação da natureza do trabalho, fundamento do primeiro
elemento constitutivo. Enquanto no trabalho social a espécie humana preservaria e
expande sua vida social na proporção da conquista prática dos processos naturais, a
atividade crítica questionaria precisamente o modo de organização existente desse
processo de autopreservação social. Um poder objetivo e predeterminado da
natureza corresponde à atividade do trabalho. Ao contrário, a historicidade de uma
relação produtiva socialmente estabelecida corresponde à atividade prático-crítica.
Se o trabalho deriva de uma pressão objetiva pela sobrevivência, os
incentivos para a atividade prático-crítica nasceriam da experiência subjetiva de
uma injustiça predominante, estruturalmente ligada a uma dada distribuição do
trabalho social entre as classes sociais. Assim, Horkheimer, lido por Honneth (1993,
p. 16), entende o quadro prático de aplicação da Teoria Crítica como o processo de
interpretação dialogicamente mediada da realidade social à luz da injustiça vivida
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pela classe oprimida.
No entanto, apesar desta definição epistemológica de teoria crítica,
Horkheimer não teria tratado seriamente as dimensões de ação presentes na luta
social como uma esfera autônoma de reprodução social. Por isso, Horkheimer teria
ignorado a possibilidade de compreender suficientemente a organização
interpretativa da realidade social. O resultado, de acordo com Honneth (1993, p.
17), é um déficit sociológico na ciência social interdisciplinar que Horkheimer
projeta como programa de uma teoria social crítica.
No capítulo três de Pathologies of reason, Honneth (2009, p. 43) aprofunda
a questão de como é possível encontrar um ponto de vista apropriado para interrogar
criticamente as sociedades liberal-democráticas sem tomar emprestado da filosofia
da história, como o fez o círculo íntimo da primeira geração da teoria crítica. Ele
se esforça em defender o modelo clássico de teoria crítica, ainda que sob ressalvas,
através da reconstrução da forma ideal desse tipo de crítica, de modo a saber se a
ideia central por trás de todo o projeto ainda pode ser defendida hoje, a despeito
de sua execução malograda e de seus ultrapassados pressupostos histórico-
filosóficos e sociológicos (HONNETH, 2009, p. 45).
A partir das considerações de Walzer (1993) em Interpretation and social
criticism, Honneth (2009, p. 48) faz uma distinção entre três modelos de crítica
social. Conforme o procedimento que usam, eles são sequencialmente designados
com os conceitos de construção, reconstrução e genealogia. Com a abordagem
construtiva, o procedimento é de uma justificação capaz de acordo geral para atingir
princípios normativos em cuja luz a ordem institucional de uma sociedade pode ser
criticada. Nas abordagens reconstrutivas, ao contrário, tenta-se descobrir ideais
normativos das instituições e práticas da própria realidade social que possam ser
adequados para a crítica da realidade existente. Finalmente, na abordagem
genealógica a realidade social deve ser criticada, demonstrando a necessária
alternância de seus ideais normativos em práticas que estabilizam a dominação.
Segundo Honneth (2009, p. 49), as origens filosóficas da teoria crítica ainda
estavam fortemente enraizadas na tradição do hegelianismo de esquerda para poder
jogar fora o pensamento de uma justificação procedimental de normas que remonta
a Kant, Horkheimer, Adorno e Marcuse, que sempre buscaram uma forma
reconstrutiva, ou imanente, de fundamentação em suas críticas sociais. A crítica da
ideologia marxista desde o início pressupôs que deve haver na própria realidade
social ideias normativas, por meio das quais a realidade do capitalismo poderia ser
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criticamente justificada. O princípio metodológico reconstrutivo ou imanente é
desdobramento do segundo elemento constitutivo da teoria crítica acima apontado,
a saber a sua pertença à realidade social que se propõe a criticar
4
.
De acordo com Honneth (2009, p. 49-50), os membros da Escola de Frankfurt
nunca abandonaram realmente essa proposição metodológica peculiar à teoria
crítica e que não se confunde com o método hermenêutico de Walzer, uma vez que
a teoria crítica usa um conceito de razão que pode justificar a validade normativa
dos ideais levantados de forma imanente. Aqui, afirma Honneth (2009, p. 50), o
ponto de partida é a premissa hegeliana de esquerda segundo a qual a reprodução
social ocorre por meio de formas de prática social nas quais as realizações racionais
dos seres humanos são incorporadas e acumuladas. Essas realizações racionais se
desdobrariam consoante o progresso que se realiza através do processo de
aprendizagem com a ação social.
A cada novo nível de reprodução social, a racionalidade humana assumiria,
assim, uma forma mais desenvolvida, de modo que toda a história humana poderia
ser entendida como um processo de realização da razão. Deste modo, a reconstrução
normativa deve significar descobrir na realidade social de uma dada sociedade
aqueles ideais normativos que oferecem um ponto de referência para uma crítica
justificada porque representam a corporificação da razão social. Assim, a teoria
crítica resolve o problema de justificação colocado por toda forma imanente de
crítica social ao recorrer ao conceito de racionalização social. Tão logo possa ser
demonstrado que um ideal disponível incorpora o progresso na realização da razão,
ele pode produzir um padrão justificado para criticar a ordem social dada. A crença
na racionalização social é o terceiro elemento constitutivo da teoria crítica.
Honneth (2009, p. 5152) julga que a experiência devastadora do nacional-
socialismo alemão levou os membros da Escola de Frankfurt a duvidar do método
imanente e baseado na racionalização social projetado para a teoria crítica. O
estabelecimento do sistema de dominação nacional-socialista mostrou que, sob a
validade social de um ideal, uma prática social também pode se desenvolver tão
longe de seu significado moral original quanto se possa imaginar. O significado dos
ideais ou princípios normativos provou ser muito mais vulnerável do que havia sido
4
“Uma vez que a Teoria Crítica, distinta das abordagens tradicionais, tinha que estar consciente de
seu contexto de desenvolvimento social, bem como de sua aplicação política, e assim deveria
representar uma espécie de autorreflexão do processo histórico, as normas ou princípios aos quais
a crítica se referia só poderiam ser aqueles que estavam de alguma forma ancorados na própria
realidade histórica” (HONNETH, 2009, p. 49).
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previsto pelo programa crítico original. Percebeu-se que uma norma moral o
prescreve por si mesma como deve ser aplicada socialmente. Pelo contrário, seu
significado pode ser transformado até que ele perca o núcleo normativo que
originalmente justificou seu desenvolvimento.
Por isso que, no final da década de 1930, Honneth vê uma aproximação da
teoria crítica com a genealogia de Nietzsche. Contudo, Horkheimer, Adorno e
Marcuse não teriam simplesmente substituído seu programa crítico reconstrutivo-
imanente pela ideia de crítica genealógica delineada alhures. Em vez disso, Honneth
entende que a teoria crítica absorveu a genealogia em seu modelo reconstrutivo
como uma espécie de ponto de vista metacrítico. O que resultou dessa síntese de
Hegel e Nietzsche como modelo de crítica social é assim descrito por Honneth (2009,
p. 52): a cada tentativa de realizar uma crítica imanente da sociedade sob as
premissas da racionalização social deve pertencer o projeto genealógico de estudar
o contexto real de aplicação das normas morais.
Sem a adição de tal teste histórico genealógico, a crítica não poderia ter
certeza de que os ideais a que ela aduz ainda possuem na prática social o significado
normativo que originalmente os distinguia. Nessa medida, a crítica social julga as
normas à disposição simultaneamente por dois lados: de um lado, as normas devem
satisfazer o critério de serem ideais socialmente incorporados, ao mesmo tempo em
que são a expressão da racionalização social; por outro lado, deve ser testado se
eles ainda possuem seu significado original. Hoje, não é mais possível ter uma crítica
social que não lance mão do método genealógico como um detector para descobrir
as mudanças sociais de significado de seus ideais principais (HONNETH, 2009, p. 52
53). A adição da genealogia como ponto de vista metacrítico constitui o quarto
elemento da teoria crítica, adquirido após a experiência do nacional-socialismo.
Enfim, Honneth percebe que a teoria crítica une de certa forma todos os
três modelos distinguidos em seu ensaio em um único programa. A justificativa
construtiva de um ponto de vista crítico fornece uma concepção de racionalidade
que estabelece uma conexão sistemática entre racionalidade social e validade
moral. Deve-se então mostrar reconstrutivamente que essa racionalidade potencial
determina a realidade social na forma de ideais morais. E esses ideais morais, por
sua vez, devem ser vistos sob a condição genealógica de que seu significado original
pode ter se tornado socialmente irreconhecível. O que a Teoria Crítica outrora quis
dizer com a ideia de crítica social, para Honneth (2009, p. 53), não pode ser
defendido a não ser por meio deste altamente exigente padrão.
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2 A REFORMULAÇÃO DA TEORIA CRÍTICA, POR HABERMAS
A finalidade da teoria da ação comunicativa de Jürgen Habermas (2012) é
introduzir fundamentos normativos de uma teoria da sociedade que ofereçam uma
alternativa à filosofia da história em que se apoiou a teoria crítica do círculo íntimo
da primeira geração da escola de Frankfurt: essa alternativa se recomenda como
moldura no interior da qual a investigação interdisciplinar do padrão seletivo da
modernização capitalista pode ser retomada (2012, p. 715). No último capítulo de
sua Teoria da ação comunicativa, Habermas (2012, p. 679680) recorda os núcleos
temáticos que absorveram a atenção da Teoria Crítica em seus primórdios,
preocupada com a questão da racionalização como reificação
5
. São eles
a) as formas de integração das sociedades pós-liberais; b) a
socialização na família e o desenvolvimento do eu; c) a cultura de
massa e os meios de comunicação de massa; d) a psicologia social do
protesto que silenciou; e) a teoria da arte; f) a crítica da ciência e
do positivismo.
Segundo Habermas (2012, p. 684685), durante os anos 1930, o círculo íntimo
do Instituto de Pesquisas Sociais
6
julgou que uma sociedade totalmente administrada
caracterizada por um modo de socialização repressivo que exclui a natureza
interna, bem como por um controle social exercido pelos canais de comunicação
de massa que a tudo penetra se consolidava.
As esperanças deste círculo residiam em uma filosofia da história segundo
a qual o potencial racional da cultura burguesa seria liberado em movimentos sociais
sob a pressão das forças produtivas desenvolvidas (HABERMAS, 2012, p. 687).
Entretanto, quanto mais avançavam os trabalhos da crítica da ideologia, afirma
Habermas (2012, p. 687), tanto mais este círculo se convencia de quea cultura nas
sociedades pós-liberais perdia sua autonomia, sendo incorporada ao mecanismo do
sistema econômico-administrativo, assumindo formas dessublimadas de cultura de
massa.
5
Sobre o tema da reificação, tão caro à teoria crítica, vide Lukács (2003); Honneth (2018) e Jay
(2008).
6
“[...] Neumann, Kirchheimer, Fromm e Benjamin [...] têm em comum uma avaliação diferenciada
do caráter complexo e contraditório das formas de integração das sociedades pós-liberais, da
socialização da família e da cultura de massa [...] linhas de pesquisa [...] [que] poderiam ter
oferecido pontos de partida para uma análise dos potenciais que resistem à reificação da
consciência” (2012b, p. 684-685).
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Neste cenário, Habermas (2012, p. 687) as forças produtivas do pensamento
crítico se deslocariam no sentido de uma turva assimilação ao seu contrário, isto
é, no abandono da razão e na aposta na libido (MARCUSE, 1972), na religião
(HORKHEIMER, 2000), ou na arte não comercial (ADORNO, 2008). A fragilidade dos
fundamentos dessa filosofia da história de matriz hegeliana/marxista
7
teria deixado
entrever, de acordo com Habermas (2012, p. 687), as razões que levaram essa
teoria da sociedade [...] a fracassar e os motivos que levaram Horkheimer e Adorno
a reduzir o projeto teórico às dimensões de algumas reflexões especulativas sobre
a Dialética do esclarecimento.
Segundo Habermas (2012, p. 687688), a teoria crítica baseada na filosofia
da história peca por confrontar, sem qualquer mediação, a consciência dos
indivíduos com os mecanismos de integração social, defeito que se associa ao que
Honneth chamou de déficit sociológico da primeira versão da teoria crítica. Para
libertar o materialismo histórico dos impasses desta filosofia da história, Habermas
aposta em uma teoria do agir comunicativo capaz de se assegurar do conteúdo
racional de estruturas antropológicas profundas colocando-se inicialmente num
plano de análise reconstrutivo, a-histórico.
Tal projeto implicaria, de acordo com Habermas (2012, p. 688), duas
abstrações capazes de eliminar os entraves da filosofia da história:a abstração que
permite distinguir entre o desenvolvimento de estruturas cognitivas e a dinâmica
histórica dos eventos; e a abstração que permite distinguir entre evolução social
e concreção histórica das formas de vida. Tais abstrações poderiam ser
compreendidas como a inserção detalhada do ponto de vista genealógico como
metacrítica
8
.
7
“Os princípios do materialismo histórico, que enfocam a relação dialética entre as forças produtivas
e as relações de produção, tinham-se transformado em proposições pseudo normativas sobre uma
teleologia objetiva da história. Esta passou a ser tida como força impulsionadora da realização de
uma razão que se manifesta de modo ambíguo nos ideais burgueses. E para se assegurar de seus
fundamentos normativos a Teoria Crítica não tinha outra saída a não ser uma filosofia da história.
Ora, esse terreno era impróprio para um programa de pesquisa empírico. Fazia falta um campo de
objetivos claramente delimitado, como no caso da prática comunicativa cotidiana do mundo da
vida, que conseguisse incorporar estruturas de racionalidade e permitisse identificar processos de
reificação” (HABERMAS, 2012, p. 687).
8
“Uma teoria da sociedade que não pode excluir a priori a possibilidade de desaprender é obrigada a
assumir uma atitude crítica em relação à pré-compreensão que ela mesma adquire a partir do
meio social em que está inserida, ou seja, tem de estar aberta à autocrítica. E a crítica consegue
detectar processos de ‘desaprendizagem’ nas deformações resultantes da exploração seletiva de
um potencial de racionalidade e de entendimento, acessível outrora mas hoje soterrado”
(HABERMAS, 2012, p. 721).
“Estilhaços de uma razão encarnada”: a crítica que sustenta a teoria crítica da constituição
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Uma vez que os ideais concretos inseridos nas formas de vida tradicionais já
não são pontos de apoio confiáveis à teoria crítica, ela deveria tomar como ideia
orientadora os níveis históricos alcançados em processos de aprendizagem evidentes
na cultura. Por outro lado, ainda que possa retomar alguns objetivos do antigo
projeto interdisciplinar de teoria crítica, a sua pertença à realidade social que
aspira criticar a impede de julgar criticamente nem classificar normativamente
totalidades, ou seja, formas de vida e culturas, formações sociais ou épocas em sua
totalidade (HABERMAS, 2012, p. 688689). Neste sentido, o papel específico da
teoria da sociedade pode ser comparado ao poder focalizador de uma lente
(HABERMAS, 2012, p. 689, grifo nosso).
A partir do conceito de razão comunicativa, imanente ao entendimento
como telos da linguagem, a teoria crítica da sociedade já não é forçada a se
assegurar do conteúdo normativo da cultura burguesa [...] embrenhando-se na
crítica da ideologia (HABERMAS, 2012, p. 715). A razão comunicativa possibilita às
ciências sociais entrar numa relação cooperativa com uma filosofia que assume
como tarefa precípua construir uma teoria da racionalidade (HABERMAS, 2012, p.
715). Retomando um ponto central do texto Teoria tradicional e teoria crítica, de
Horkheimer, Habermas (2012, p. 724) reconhece a consciência que a teoria crítica
da sociedade tem da autorreferencialidade de seu empreendimento, isto é, do
fato de que o contexto de formação da teoria não lhe ser exterior, mas fazer parte
dos nexos objetivos da vida que pretende apreender de forma reflexiva. Por isso,
afirma Habermas (2012, p. 724),
[...] uma teoria da sociedade que pretende certificar-se das
estruturas gerais do mundo da vida [...] apenas pode esperar estar à
altura da razão de ser (ratio essendi) de seus objetos quando houver
uma razão para pensar que o contexto vital objetivo em que o próprio
teórico se encontra revela-lhe a razão de conhecer (ratio
cognoscendi).
Razão pela qual as situações problemáticas propiciadas pelo próprio
desenvolvimento socialconstituem uma porta de acesso privilegiada para a teoria
crítica, uma vez que através delas os contemporâneos podem descobrir
objetivamente as estruturas gerais de seu mundo da vida (HABERMAS, 2012, p. 727).
Com essas considerações, Habermas está afastando a teoria crítica da lógica
proposicional, no qual o verdadeiro ou o falso da teoria estaria em suas proposições,
e a aproximando-a da lógica da resposta e da pergunta (COLLINGWOOD, 1939, p. 29
43), sobre a qual se baseia também a hermenêutica filosófica (GADAMER, 1997, p.
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544).
Deduzimos, assim, um quinto elemento constitutivo da teoria crítica, qual
seja: o abandono da lógica proposicional em prol da lógica da resposta e da
pergunta, segundo a qual as respostas da teoria estão estreitamente correlacionadas
às questões colocadas por essa mesma teoria. Neste sentido, são as forças
ilocucionárias, e não as locucionárias da linguagem, que impulsionam a teoria crítica
da sociedade. O conceito de verdade, que a teoria crítica compartilhava com a
tradição filosófica, em geral, foi substituído por um modelo discursivo e
comunicativo de argumentação em uma comunidade de pesquisadores.
Como notou Seyla Benhabib (1986, p. 346), ao mesmo tempo em que traz
ganhos indiscutíveis, a mudança de paradigma na teoria crítica da filosofia da
história para o agir comunicativo corre o risco de certas perdas. A tentativa de
evitar o historicismo de Hegel e Marx pode levar a certos modos de argumentação
que são considerados ora "transcendentais", ora "quase-transcendentais", ora
"reconstrutivos", todas vertentes de argumentação que envolvem afirmações mais
fortes do que podem ser justificadas e que obscurecem alguns dos insights essenciais
que a mudança de paradigma para a razão e a ação comunicativas trazem consigo,
a saber: a ênfase na pluralidade; a estrutura narrativa e interpretativa da ação; as
esperanças utópicas de um acesso comunicativo às interpretações de necessidades
e o projeto de justiça que promova solidariedade.
Logo no primeiro capítulo de Facticidade e validade, Habermas (2020, p. 35-
36) expõe que o que possibilita a razão comunicativa é o meio linguístico através do
qual as interações são tecidas e as formas de vida são estruturadas. Essa
racionalidade se inscreve no telos linguístico da compreensão mútua e forma um
conjunto de condições que tanto a possibilitam quanto a limitam. Quem rec orre a
uma linguagem natural para chegar a um entendimento com um destinatário sobre
algo no mundo é obrigado a assumir uma atitude performativa e comprometer-se
com certos pressupostos.
A razão comunicativa ofereceria um guia para reconstruir a rede de discursos
que, visando formar opiniões e preparar decisões, fornece a matriz da qual emerge
a autoridade democrática. Nessa perspectiva, as formas de comunicação que
conferem legitimidade à formação da vontade política, à legislação e à
administração da justiça aparecem como parte de um processo mais abrangente em
que os mundos da vida das sociedades modernas são racionalizados sob a pressão de
imperativos sistêmicos. Ao mesmo tempo, tal reconstrução forneceria um padrão
“Estilhaços de uma razão encarnada”: a crítica que sustenta a teoria crítica da constituição
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crítico, contra o qual as práticas atuais a realidade opaca e desconcertante do
estado constitucional poderiam ser avaliadas (HABERMAS, 2020, p. 37-38).
Atirados de um lado para outro entre facticidade e validade, a teoria política
e a teoria jurídica hoje estariam, segundo Habermas (2020, p. 39), se desintegrando
em campos incomunicáveis. A tensão entre abordagens normativas, constantemente
em perigo de perder contato com a realidade social, e abordagens objetivistas, que
excluem todos os aspectos normativos, deveria ser tomada como uma advertência
contra a fixação em um ponto de vista disciplinar. Em vez disso, a teoria crítica
baseada no agir comunicativo estaria aberta a diferentes pontos de vista
metodológicos (participante versus observador), diferentes objetivos teóricos
(explicação interpretativa e análise conceitual versus descrição e explicação
empírica), perspectivas de diferentes papéis (juiz, político, legislador, cliente e
cidadão), e diferentes atitudes pragmáticas de pesquisa (hermenêutica, crítica,
analítica, etc.).
A teoria da ação comunicativa já absorveria em seus conceitos fundamentais
a tensão entre facticidade e validade. Com isso, ela preservaria o vínculo com a
concepção clássica de uma conexão interna, ainda que mediada, entre sociedade e
razão e, portanto, entre as restrições e necessidades sob as quais se realiza a
reprodução da vida social, por um lado, e a ideia de uma conduta de vida
consciente, por outro. E, para explicar como a reprodução da sociedade pode
proceder em um terreno tão frágil como o das reivindicações de validade que
transcendem o contexto, o meio do direito, particularmente na forma moderna do
direito positivo (ou promulgado), oferece-se como candidato a tal explicação. A
forma jurídica moderna possibilita comunidades altamente artificiais, associações
de pessoas jurídicas livres e iguais, cuja integração se baseia simultaneamente na
ameaça de sanções externas e na suposição de um acordo racionalmente motivado
9
(HABERMAS, 2020, p. 4041).
Nos mundos da vida desencantados, internamente diferenciados e
pluralizados, aumentam-se os riscos de dissenso e, logo, de falhas na integração,
9
Para Habermas (2020, p. 51), enquanto a linguagem for usada apenas como um meio de transmissão
de informações, a coordenação da ação ocorre por meio da influência mútua que os atores exercem
uns sobre os outros de maneira intencional-racional. Porém, assim que as forças ilocucionárias dos
atos de fala assumem um papel de coordenação da ação, a própria linguagem fornece a fonte
primária de integração social. Somente neste caso se deve falar de ação comunicativa. Em tal
ação, os atores nos papéis de falante e ouvinte tentam negociar interpretações da situação em
questão e harmonizar seus respectivos planos mutuamente através da busca desenfreada de
objetivos ilocucionários”.
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uma vez que as esferas da ação comunicativa desvinculadas dos laços das
autoridades sagradas e liberadas dos laços das instituições arcaicas. Neste cenário,
a crescente necessidade de integração deve sobrecarregar irremediavelmente a
capacidade integradora da ação comunicativa, especialmente se as esferas de
interação estratégica funcionalmente necessárias estão crescendo, como no caso
das sociedades econômicas modernas.
Uma saída para essa situação, segundo Habermas (2020, p. 50), é que os
próprios atores cheguem a algum entendimento sobre a regulação normativa das
interações estratégicas. A natureza paradoxal de tal regulação é revelada à luz da
premissa de que facticidade e validade se separaram, para os próprios sujeitos
atuantes, em duas dimensões mutuamente excludentes. Para os atores
autointeressados, todas as características situacionais são transformadas em fatos
que eles avaliam à luz de suas próprias preferências, enquanto os atores orientados
para alcançar o entendimento dependem de um entendimento negociado em
conjunto da situação e interpretam os fatos relevantes à luz da validade reconhecida
intersubjetivamente.
No entanto, se as orientações para o sucesso pessoal e para a compreensão
esgotam as alternativas para os sujeitos atuantes, então as normas adequadas como
constrangimentos socialmente integradores às interações estratégicas devem
atender a duas condições contraditórias que, do ponto de vista dos atores, não
podem ser satisfeitas simultaneamente. Por um lado, tais regras devem apresentar
restrições de fato que alterem as informações relevantes de tal forma que o ator
estratégico se sinta compelido a adaptar seu comportamento da maneira
objetivamente desejada. Por outro lado, eles devem, ao mesmo tempo, desenvolver
uma força socialmente integradora, impondo obrigações aos destinatários o que,
de acordo com Habermas (2020, p. 6162), só é possível com base em reivindicações
de validade normativa reconhecidas intersubjetivamente.
O tipo de normas exigidas, portanto, deveria trazer a vontade de cumprir
simultaneamente por meio de coação de fato e validade legítima. Normas desse tipo
teriam que aparecer com uma autoridade que dota a validade com a força do
factual, só que desta vez sob a condição da polarização já existente entre a ação
orientada para o sucesso e aquela orientada para o entendimento, ou seja, sob a
condição de uma incompatibilidade percebida entre facticidade e validade. A
solução para esse enigma está no sistema de direitos que confere às liberdades
individuais a força coercitiva da lei. Habermas vê (2020, p. 62), então, também, de
“Estilhaços de uma razão encarnada”: a crítica que sustenta a teoria crítica da constituição
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uma perspectiva histórica, que o cerne do direito moderno consiste em direitos
privados que balizam o alcance legítimo das liberdades individuais e, portanto, são
talhados para a busca estratégica de interesses privados.
Em contraste com a convenção e o costume, o direito promulgado não se
baseia na facticidade orgânica das formas de vida herdadas, isto é, na tradição, mas
na facticidade produzida artificialmente e encontrada na ameaça de sanções
legalmente definidas, e que podem ser impostas por meio de ação judicial. Por outro
lado, a legitimidade dos textos jurídicos é medida conforme a resgatabilidade
discursiva de sua pretensão de validade normativa em última análise, conforme
eles tenham surgido por meio de um processo legislativo racional, ou pelo menos
poderiam ter sido justificados a partir de princípios pragmáticos, éticos e pontos de
vista morais. Quanto menos uma ordem legal é legítima, ou pelo menos considerada
como tal, mais outros fatores, destaca Habermas (2020, p. 65), como intimidação,
força das circunstâncias, costume e puro hábito, devem intervir para reforçá-la.
Porém, as sociedades modernas são integradas não apenas socialmente por
meio de valores, normas e compreensão mútua, mas também sistemicamente por
meio de mercados e do uso administrativo do poder. O dinheiro e o poder
administrativo são meios sistêmicos de integração societária que não
necessariamente coordenam as ações pelas intenções dos participantes, mas
objetivamente, pelas costas dos participantes
10
. Ambos os meios de integração
sistêmica, dinheiro e poder, estão ancorados via institucionalização jurídica em
ordens do mundo da vida, o qual, por sua vez, é integrado socialmente por meio da
ação comunicativa (HABERMAS, 2020, p. 75).
Assim, para Habermas (2020, p. 76), o direito moderno está vinculado a
todos os três recursos de integração. Por meio de uma prática de autodeterminação
que exige que os cidadãos façam uso público de suas liberdades comunicativas, o
direito extrai sua força socialmente integradora das fontes da solidariedade social.
Por outro lado, as instituições de direito privado e público possibilitam o
estabelecimento de mercados e órgãos governamentais, pois o sistema econômico e
administrativo, que se separou do mundo da vida, opera nas formas do direito.
Como o direito está tão entrelaçado com o dinheiro e o poder administrativo
quanto com a solidariedade, suas próprias realizações integradoras assimilam
imperativos de origens diversas. Isso não significa que as normas jurídicas venham
10
Desde Adam Smith, o exemplo clássico desse tipo de regulação é a “mão invisível” do mercado.
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com rótulos nos dizendo como esses imperativos devem ser equilibrados. Nas
diferentes áreas temáticas do direito, certamente as necessidades de regulação, às
quais a política e o legislador respondem, têm fontes diferentes. Mas nos
imperativos funcionais do aparato estatal, do sistema econômico e de outros
subsistemas sociais, as posições de interesse normativamente não filtradas muitas
vezes vencem apenas porque são mais fortes e usam a força legitimadora das formas
jurídicas para encobrir sua força meramente factual.
Portanto, na leitura de Habermas, o direito, como meio para organizar as
atividades do Estado relacionadas aos imperativos funcionais de uma sociedade
econômica diferenciada, continua sendo um meio de integração social
profundamente ambíguo. O direito pode fornecer ao poder ilegítimo a mera
aparência de legitimidade. À primeira vista, não se pode dizer se as
regulamentações legais merecem o assentimento dos cidadãos associados ou se
resultam de uma autoprogramação administrativa e do poder social estrutural de tal
forma que geram de forma independente a necessária lealdade de massa.
Mas mesmo a integração sistêmica alcançada por meio do dinheiro e do poder
deve, conforme a autocompreensão constitucional da comunidade jurídica,
permanecer dependente do processo socialmente integrador de autodeterminação
cívica. A tensão entre o idealismo do direito constitucional e o materialismo de uma
ordem jurídica, especialmente um direito comercial que reflete apenas a
distribuição desigual do poder social, encontra seu eco no afastamento das
abordagens filosóficas e empíricas do direito (HABERMAS, 2020, p. 77).
A partir daqui, podemos nomear um sexto elemento constitutivo que, na
verdade, constitui uma das especificidades da teoria crítica da constituição. O
direito, para Habermas, é um meio de integração social e sistêmica, uma espécie
de transformador entre o mundo da vida e os sistemas mercado e administração, ao
mesmo tempo, os instituindo e ancorando-os no mundo da vida. Essa sua
ambiguidade se correlaciona com a tensão entre facticidade e validade que percorre
todas as normas jurídicas.
Essa concepção de direito também rompe com o sentido comum atribuído ao
direito pela primeira geração do círculo íntimo da teoria crítica. De acordo com
Benhabib (1986, p. 348), a negligência de uma teoria da democracia e do direito é
um dos principais pontos cegos da teoria crítica da Escola de Frankfurt, que
manteve, em geral, a desconfiança marxista ortodoxa em relação às questões de
legitimidade e à dimensão normativa das instituições políticas. Um dos ganhos
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irreversíveis da mudança de paradigma para a racionalidade comunicativa é o fato
dela ter reorientado a atenção para essa dimensão negligenciada. A ideia de uma
ética comunicativa está intimamente ligada à visão de um ethos público democrático
nas sociedades do capitalismo tardio.
3 UMA TEORIA CRÍTICA DA CONSTITUIÇÃO, POR CATTONI DE OLIVEIRA
Também Cattoni de Oliveira (2021, p. 122123) vai buscar em Teoria
tradicional e teoria crítica, de Horkheimer, os elementos que distinguem a Teoria
Crítica da Constituição das teorias constitucionais tradicionais, retendo, de tal
texto, a herança de uma perspectiva ou abordagem interdisciplinar, histórica,
crítico-reconstrutiva e antidualista, que se remete às amplas tarefas de uma teoria
crítica da sociedade, da modernidade e da razão, herança reconstruída através dos
apontamentos de Habermas e Honneth, acima expostos.
A partir da teoria discursiva do direito habermasiana, Cattoni de Oliveira
(2021, p. 124) propõe que se abra a teoria crítica da constituição a um enfoque
multidisciplinar e a um pluralismo hermenêutico, pragmático e metodológico, apto
a lidar com a tensão entre facticidade e validade reconstrutivamente. De Honneth,
adota-se a súmula do procedimento metodológico frankfurtiano, isto é, uma crítica
que sabe estar situada em um contexto histórico-social, e que toma de empréstimo
desse mesmo contexto ideais normativos imanentes à realidade aptos a servirem de
padrão desta mesma crítica social, ideais que não são tomados como mero dados,
devido aos riscos de inércia e/ou retrocesso no processo de aprendizado da
modernidade e suas integrações (sistêmicas ou sociais),daí as necessárias ressalvas
genealógicas ou desconstrutivas
11
(OLIVEIRA, 2021, p. 124-125).
A partir de tais pressupostos, Cattoni de Oliveira (2021, p. 128-131) delineia
as seguintes tarefas e perspectivas para uma teoria crítica da constituição:
11
“[...] a Teoria Crítica da Sociedade, como tradição de pesquisa, se utiliza de critérios críticos
imanentes à sociedade, como o faria uma hermenêutica crítica, na medida em que as próprias
práticas sociais são expressão de um processo de racionalização social e cultural; mas, de forma
reconstrutiva, considera que o sentido normativo de tais critérios é aberto e não se reduz ao mero
existente, a significações dadas no contexto de uma dada tradição supostamente herdada e
compartilhada, seja em razão do reconhecimento do pluralismo societário, seja em razão do
caráter sujeito à interpretação construtiva no sentido de tais critérios; e, todavia, atenta às
advertências genealógicas, considera que os processos de aprendizagem social e de integração da
sociedade podem estar sujeitos a situações de inércia, de bloqueio e mesmo de retrocesso; o que,
entretanto, não elimina a possibilidade de resgate discursivo, aprendizagem e autocorreção”
(OLIVEIRA, 2021, p. 125-126).
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Em um primeiro plano, a teoria crítica da constituição pode assumir as
feições de uma teoria da linguagem constitucional e da história (dos usos) dos
conceitos constitucionais. Neste sentido, a tarefa é reconstruir a gramática
discursiva focada na questão sobre a legalidade constitucional, da supralegalidade
ou forma constitucional moderna, a partir dos termos, expressões e usos desses
termos e expressões, cujo sentido se constrói ao longo da tradição do
constitucionalismo na pluralidade de suas vozes e que se tensionam e se
contradizem, constituindo, assim, a própria forma jurídica moderna; seja do ponto
de vista do participante, em que se tensionam autonomia pública e autonomia
privada, seja do ponto de vista do observador, cuja tensão se dá entre capitalismo
e democracia.
Em um segundo plano, a teoria crítica da constituição pode assumir as
feições de uma uma teoria da legitimidade constitucional, preocupada em
justificar o constitucionalismo democrático a partir da noção de autonomia (pública
e privada) como princípio moderno de legitimidade jurídico-política. Neste
sentido, uma constituição é legítima (e efetiva) enquanto o próprio sentido de e
da constituição for objeto de disputa política na esfera pública, e não porque
atende, supostamente, a determinados imperativos sistêmicos e/ou morais e
políticos (OLIVEIRA, 2021, p. 142).
Em um terceiro plano, a teoria crítica da constituição assume as feições de
uma teoria sociológico-jurídica, cujo objeto são as tensões ou contradições
constitutivas do próprio constitucionalismo, isto é, a tensão entre democracia e
capitalismo. Sob esta perspectiva, a do observador, o direito constitucional pode
ser visto como a expressão normativa e contrafactual dos processos políticos, sociais
e econômicos, e a questão da efetividade constitucional se entrelaça com a
legalidade e a legitimidade,rompendo-se com o dualismo metafísico real vs. ideal
(OLIVEIRA, 2021, p. 130).
Em um quarto e último plano, a teoria crítica da constituição pode assumir
as feições de uma teoria com sentido político-constitucional, cuja contribuição é
servir de suporte para a reconstrução e compreensão crítica da dinâmica
constitucional, bem como aperfeiçoar o direito constitucional via
polemização/radicalização na esfera pública dospotenciais emancipatórios de uma
compreensão procedimental do Estado Democrático de Direito que não abre mão dos
compromissos do Estado Social de Direito (OLIVEIRA, 2021, p. 128131).
Assim, a teoria crítica da constituição diferencia-se das teorias tradicionais
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do direito constitucional pela rejeição do dualismo metodológico que marcou o
surgimento da teoria do estado, no século XIX, e da teoria da constituição, no século
XX, seja o dualismo norma e realidade, com implicações no fenômeno da mutação
constitucional
12
, por exemplo; seja o dualismo legitimidade e efetividade, com
implicações na hermenêutica constitucional; seja o dualismo constituição formal e
material, com implicações no controle de constitucionalidade, por exemplo.
Distingue-se, também, a teoria crítica da constituição das teorias
tradicionais na concepção que aquela tem da história constitucional ou do
constitucionalismo brasileiro. Enquanto as teorias tradicionais se ancoram em um
sentido comum histórico ressentido para com a história constitucional
13
, de matriz
culturalista, a teoria crítica da constituição visa, empregando a linguagem
benjaminiana, escovar a história a contrapelo, resgatando os potenciais
emancipatórios que já existem na nossa história institucional, apresentando-se como
chave interpretativa do constitucionalismo democrático.
A teoria crítica da constituição questiona não o porquê, mas o como foi
possível, exigível e justificável o Estado Democrático de Direito como única forma
de legitimação política moderna. Tal questionamento se dá assumindo-se a
perspectiva do participante de um processo não linear e descontínuo de
aprendizagem social com o Direito, desenvolvido como construção dinâmica,
polêmica, conflituosa e, portanto, rica e plural, de uma identidade constitucional
democrática, não-idêntica e não-identitária, múltipla e aberta (OLIVEIRA, 2022, p.
2930).
Obviamente, isso não significa ignorar os inúmeros estados de exceção da
nossa história constitucional, permeada, de fato, de retrocessos. O mérito da teoria
crítica da constituição reside na intransigente recusa de reificação da história
institucional brasileira, como se essa tradição não fosse passível de reconstrução,
12
A respeito, vide PEDRON; SOARES, 2020.
13
“Afinal, é quase modismo, no Brasil, afirmar que nosso processo de constitucionalização, desde o
início, configurou-se um processo fictício (ANDRADE, BONAVIDES, 1991), simbólico (NEVES, 1994),
simulacro (STRECK, 1999), tardio (SILVA E NETO, 2016) ou fracassado (BARROSO; BARCELLOS,
2003). Seu fundamento elitista, antidemocrático, e sua trajetória marcada pela contradição
estrutural entre constitucionalidade formal e material, por mais retrocessos que avanços na
concretização da separação dos poderes estatais e da garantia aos direitos fundamentais, mais
traumas que conquistas, mais descontinuidades que continuidades, na tradição democrática.
Enfim, um processo de constitucionalização falso, de fachada, comparado aos que ocorreram nos
Estados Unidos, na França e na Alemanha, países centrais que exportaram e exportam suas
teorias jurídicas para cá” (ALCÂNTARA; TRINDADE, 2020, p. 10–11).
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de aprender com os erros e projetar uma sociedade livre, justa e solidária
14
(I, artigo
3º, CF 88). Afinal, a própria avaliação desesperançada do nosso processo de
constitucionalizaçãofracassado, típica de um sentido comum histórico ressentido,
só é possível porque já existe, na nossa tradição, uma pré-compreensão do que é
um Estado Democrático de Direito.
Em uma sociedade aberta de intérpretes constitucionais (HÄBERLE, 2014),
cabe à teoria crítica da constituição revisitar os usos e efeitos que conceitos como
liberdade, igualdade, justiça, devido processo, democracia, constitucionalismo,
dentre outros incrustados no pano de fundo silencioso que é o mundo da vida,
assumiram e assumem em uma esfera pública. Neste sentido, recupera-se um dos
pontos centrais do seminal texto de Horkheimer: a própria teoria crítica da
constituição, porque faz parte da sociedade que analisa, se torna uma intérprete da
constituição; com status privilegiado, podemos afirmar, uma vez que, à diferença
do Judiciário, Executivo ou Legislativo, só pode contar com a força não coercitiva
da razão para convencer seus interlocutores.
Não se perde de vista que precisamente a fragilidade de tal força não
forçada, bem como os riscos de retrocessos, tão comuns em nossa história
constitucional, ameaçam constantemente o projeto do constitucionalismo
democrático, razão pela qual as ressalvas genealógicas propostas por Honneth são
assumidas por Cattoni de Oliveira como ressalvas desconstrutivas, sobretudo porque
tais disputas interpretativas sobre o sentido de e da constituição sempre se dão sob
os imperativos sistêmicos do sistema capitalista
15
(GOMES, 2019).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Sumarizando as considerações tecidas neste texto, podemos elencar os seis
elementos constitutivos de uma teoria crítica da constituição. São eles: i) a recusa
a qualquer tipo de dualismo que isola teoria e realidade, norma e fato, forma e
matéria, em suma: as forças produtivas do conhecimento teórico e as relações
14
A respeito, vide as contundentes críticas de Gomes (2017; 2021) às teses da constitucionalização
simbólica, de Marcelo Neves (1994).
15
De acordo com Cattoni de Oliveira (2021, pp. 115116), seria possível lidar com tais riscos
“através da mobilização política e social capaz de (re)ativar o próprio modo jurídico com que o
próprio Direito moderno pode (e deve) lidar com a sua ausência de fundamento absoluto, a sua
“procedimentalização”, o modo legislativo-democrático de positivação, a garantia das condições
democráticas da gênese do Direito, por meio do qual a legitimidade se dá através da legalidade”.
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produtivas deste mesmo conhecimento; ii) o reconhecimento do caráter prático da
teoria crítica, compreendida como momento praticamente transformador na
realidade social que investiga, uma vez que orienta a práxis social na qual se sabe
ter sido produzida; iii) a aposta na racionalização social, uma vez que tão logo possa
ser demonstrado que um ideal disponível incorpora o progresso de um processo de
aprendizado social, ele pode produzir um padrão justificado para criticar uma ordem
social empiricamente verificável; iv) a adição da genealogia como ponto de vista
metacrítico, de modo a descobrir as mudanças sociais de significado de seus ideais
normativos; v) o abandono da lógica proposicional em prol da lógica da resposta e
da pergunta, segundo a qual as respostas da teoria estão estreitamente
correlacionadas às questões colocadas por ela própria, e não têm, portanto, valor
transcendental e imediato, carentes sempre de uma mediação hermenêutica; vi) a
compreensão do direito, e sobretudo da constituição, como um meio de integração
social e sistêmica, uma espécie de transformador entre o mundo da vida e os
sistemas mercado e administração, ao mesmo tempo os instituindo e ancorando-os
no mundo da vida.
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Informações adicionais e declarações dos autores
(integridade científica)
Agradecimentos (acknowledgement): O autor agradece ao Grupo de Estudos Teoria Crítica e
Constitucionalismo (UFMG), e aos professores Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira e David
Francisco Lopes Gomes, pelos momentos de aprendizado. Todos os erros do texto,
obviamente, são de total responsabilidade do autor.
Declaração de conflito de interesses (conflict of interest declaration): o autor confirma que
não conflitos de interesse na realização das pesquisas expostas e na redação deste artigo.
Declaração de autoria e especificação das contribuições (declaration of authorship): todas
e somente as pessoas que atendem os requisitos de autoria deste artigo estão listadas como
autores; todos os coautores se responsabilizam integralmente por este trabalho em sua
totalidade.
Declaração de ineditismo e originalidade (declaration of originality): o autor assegura que
o texto aqui publicado não foi divulgado anteriormente em outro meio e que futura
republicação somente se realizará com a indicação expressa da referência desta publicação
original; também atesta que não há plágio de terceiros ou autoplágio.
Dados do processo editorial
Recebido em: 06/04/2023
Controle preliminar e verificação de plágio: 06/04/2023
Avaliação 1: 15/04/2023
Avaliação 2: 02/05/2023
Decisão editorial preliminar: 03/05/2023
Retorno rodada de correções: 03/05/2023
Decisão editorial final: 05/05/2023
Publicação: 29/07/2023
Equipe editorial envolvida
Editor-Chefe: FQP
Assistente-Editorial: KN
Revisores: 02
COMO CITAR ESTE ARTIGO
ALCÂNTARA, Guilherme Gonçalves. “Estilhaços de uma razão encarnada”: a crítica que
sustenta a teoria crítica da constituição. Revista de Direito da Faculdade Guanambi,
Guanambi, v. 9, n. 01, e18807, jan./jun. 2022. doi:
https://doi.org/10.59306/rdfg.v9i01.18807. Disponível em:
https://portaldeperiodicos.animaeducacao.com.br/index.php/RDFG/article/view/1880
7. Acesso em: dia mês. ano.