Reflexões sobre o direito contratual através da literatura: o conto “O empréstimo”, de Machado de Assis

Reflections on contract law through literature: the short story “The loan”, by Machado de Assis

 

 

Elpídio Paiva Luz Segundo[1]

Centro Universitário FG (UniFG) – Guanambi/BA

[email protected]

 

 

CONTEXTO: Insere-se no contexto institucional do movimento direito e literatura. Oferece uma leitura sobre o contrato de empréstimo sintetizada no tópico 4.

OBJETIVO: Explicitar o emprego do direito e literatura no direito contratual, especialmente, em relação ao mútuo, juros e agiotagem.

MÉTODO: Com base na metodologia do direito na literatura, examina as noções de mútuo, agiotagem e juros no conto “O Empréstimo”, de Machado de Assis.

RELEVÂNCIA/ORIGINALIDADE: A relevância do debate é retirar o direito do enclausuramento dogmático por meio de uma abordagem do direito na literatura.

RESULTADO: Mostra o problema do exclusivismo jurídico e sugere a possibilidade de apreender o direito contratual por meio da literatura. Nessa perspectiva, a compreensão do mútuo indica novas possibilidades para a formação teórico-prática em Direito.

PRINCIPAIS CONTRIBUIÇÕES TEÓRICAS/METODOLÓGICAS: O que se pretende com o artigo é uma maior abertura da dogmática jurídica à colaboração interdisciplinar.

PALAVRAS-CHAVE: Mútuo. Direito e Literatura. Machado de Assis.

 

CONTEXT: It is part of the institutional context of the law and literature movement. Provides a reading on the loan agreement summarized in topic 4.

OBJECTIVE: Explain the use of law and literature in contract law, especially in relation to loan, fees and loan sharking.

METHOD: Based on the methodology of law in literature, it examines the notions of loan, loan sharking and fees in the short story “The Loan”, by Machado de Assis.

RELEVANCE/ORIGINALITY: The relevance of the debate is to remove law from dogmatic confinement through an approach to law in literature.

RESULTS: It shows the problem of legal exclusivism and suggests the possibility of apprehending the law through the literature. From this perspective, the understanding of mutual points to new possibilities for theorical and pratical in Law.

THEORETICAL/ METHODOLOGICAL CONTRIBUTIONS: What is intended with the article is a greater opening of legal dogmatics to interdisciplinary collaboration.

KEYWORDS: Loan agreement. Law and Literature. Machado de Assis.

 

SUMÁRIO: 1INTRODUÇÃO; 2 REPÚBLICA S.A: EMPRÉSTIMO, AGIOTAGEM E JUROS; 3 O CONTO “O EMPRÉSTIMO”, DE 1882: CONSIDERAÇÕES DA LITERATURA; 4 NA ROTA DO DIREITO ATUAL: COMPREENDENDO O CONTRATO DE EMPRÉSTIMO; CONSIDERAÇÕES FINAIS; REFERÊNCIAS.

 

SUMMARY: 1 INTRODUCTION; 2 REPUBLIC S.A: LOAN, AGIOTAGE AND FEES; 3THE SHORT STORY “THE LOAN” FROM 1882: LITERATURE CONSIDERATIONS; 4 IN THE ROUTE OF CURRENT LAW: UNDERSTANDING THE LOAN AGREEMENT; FINAL CONSIDERATIONS; REFERENCES.

 

§ INTRODUÇÃO

 

O campo dos estudos e pesquisas que articulam direito e literatura é múltiplo. No âmbito estadunidense (OLIVEIRA, 2019, p. 396), pode ser dividido em quatro projetos: a) o humanismo, em que a literatura seria base para a formação crítica de estudantes de direito, de modo a funcionar como um antídoto contra o tecnicismo; b) a hermenêutica, que visa o estudo de interpretação literária para a aprendizagem do direito, deslocando as bases tradicionais da interpretação; c) narrativo, que entende que as narrativas permeiam o direito, especialmente, em relação a histórias daqueles que não tem voz, dos marginalizados (PETERS, 2005, p. 444-448); d) oferece uma alternativa à crescente tendência no ensino jurídico de colocar o direito a reboque da economia (TRINDADE et al, 2019, p. 3).

Do outro lado do oceano, a tradição européia é extensa e articulada. Porém não está institucionalizada no ensino universitário, sendo antes percebida não com uma matéria, mas como um caminho que possibilita aprofundar a reflexão jurídica, especialmente quando relaciona o direito e o homem com suas realidades (MITTICA, 2015, p. 10-11).

Ainda que haja deficiências teóricas e metodológicas na produção do campo direito e literatura, o movimento pode ser considerado de relativo êxito no Brasil (TRINDADE; BERNSTS, 2017, p. 247). Em contrapartida, há resistências na aproximação do Direito com os textos literários. Isso porque faz parte do senso comum dos juristas apresentar o direito no âmbito do discurso da ordem e da normatividade, ao passo que a literatura seria o espaço da ficção e do lúdico (KARAM; ALCÂNTARA, 2019, p. 209), o que constituiria um óbice aos estudos interdisciplinares.  Nada obstante, a obra machadiana tem sido objeto de reflexões em Direito no Brasil desde os anos 1930 (PRADO, 2008, p. 1004), que mostra que fenômeno literário tem sido levado em conta nas apreciações de juristas (OLIVEIRA, 2021, p. 75), ainda que o estabelecimento de uma produção sistemática seja tardia (KARAM, 2017, p. 831).  

Com efeito, não se pode minimizar o poder das histórias para moldar a experiência cotidiana (KARAM; ALCÂNTARA, 2019, p. 210), o que torna necessário repensar o lugar da literatura no direito (PAIXÃO, 2020, p. 238) não como auxiliar aos Cursos de Direito mas para constituir o corpus textual da educação jurídica. Afirma-se, com razão, que textos literários podem não ser úteis como ferramentas de ensino (PAIXÃO, 2020, p. 238). Por outro lado, permitem a problematização, geram complexidade e podem contribuir para a formação discente e também docente.

Entretanto, é necessário evitar uma visão romântica ou totêmica que tenta associar indevidamente temas de diferentes áreas. O que o direito tem a ganhar com essas aproximações?  A literatura, a economia e a história não são tábuas de salvação para problemas do direito (OLIVEIRA, 2019, p. 414). Elas têm suas próprias questões. Todavia, dialogar em fronteiras interdisciplinares não é sinal de fraqueza teórica. Antes, pode incentivar o aprendizado do Direito e, no limite, constituir zonas de fronteira epistemológica em que todas elas podem ser beneficiadas, o que não significa dispensar as críticas feitas por juristas ao movimento direito e literatura.

Compreender esses questionamentos pode contribuir para o desenvolvimento da área de estudo, o que pode produzir mudanças no ensino, pesquisa, extensão em Direito (OLIVEIRA, 2019, p. 414), assim como no exercício de atividade profissional. Reexaminar os fundamentos, lidar com as críticas e construir proposições é necessário para fazer avançar o conhecimento. 

A interseção entre o jurídico e o literário se articula por meio de sintagmas gramaticais que operam como ligação, organizadas por três preposições. São elas: na (indica lugar); de (denota pertencimento); com (expressa a circunstância em que algo se executa ou sucede) e um advérbio de modo, como, que aponta cotejos que vão desde a proximidade até a convergência (CALVO GONZÁLEZ, 2015, p. 697).

O Direito na Literatura[2] considera a presença do jurídico no contexto da ficção literária e contribui para a formação dos juristas por meio do entendimento sociológico, filosófico das concepções de justiça e do direito (CALVO GONZÁLEZ, 2015, p. 701), o que concorre para a formação do imaginário dos juristas e para as ideias que uma sociedade tem si própria, o que possibilitaria transcender a própria experiência.

Ao tratar o Direito na Literatura como interseção instrumental (CALVO GONZÁLEZ, 2015, p. 701), o texto não ignora críticas que tem sido feitas ao método do direito na literatura[3]. Se é certo que o movimento “Direito e Literatura” pode ser compreendido em uma perspectiva fenomenológica, a metodologia do “direito na literatura” propõe não só uma função pedagógica mas será concretamente demonstrada por meio da relação com o direito contratual, tal como proposto nos tópicos 2, 3 e 4, o que turva o uso retórico da literatura.

É preciso considerar que o direito possui especificidades que o distinguem da literatura, mas por meio da linguagem dos recursos literários de estilo e forma o que era dogmaticamente a lei passa a apresentar nova feição, escondida do leitor, de maneira a tornar necessário ler nas entrelinhas (OLIVO, 2011, p. 21) para compreender as possibilidades que a literatura pode oferecer ao direito, ainda que sejam modelos para interpretar experiências reais e não lições práticas para viver[4]. Por fim, há a necessidade de uma aproximação da teoria do direito com a teoria da literatura (KARAM, 2017, p. 1023) para identificar as interseções silenciosas existentes entre elas (COURA; ZANOTTI, 2018, p. 38).

Este artigo considera, como primeiro aspecto, que o significado normativo recebido de padrões do passado pode encontrado na história da doutrina jurídica ordinária em funcionamento nos negócios quotidianos; na compreensão do poder e do privilégio e nas críticas que podem ser feitas à justificação das normas jurídicas (COVER, 2016, p. 193). Assim, o direito se torna não somente um sistema de regras a serem observadas, mas está situado em um universo narrativo, assim como a literatura, a história (COVER, 2016, p. 188) e a economia (POSNER, 1997, p. 738).

O segundo aspecto é que a criação de um nomos completo, de uma rede de significações, a partir do qual o mundo é percebido não pode ignorar que as instituições jurídicas não existem apartadas das narrações que lhe dão significado (COVER, 2016, p. 188). Em outras palavras, a tradição jurídica é parte de um mundo normativo complexo que abrange não apenas o direito mas as narrações sobre aqueles que expressam suas vontades por meio dele (COVER, 2016, p. 193).

O terceiro elemento a considerar é que o conto “Empréstimo”, de Machado de Assis, de 1882, pode ser relacionado não só ao contexto político, histórico e econômico de sua produção, sendo possível alinhavá-lo com um debate jurídico subsequente. Por meio do olhar machadiano, é possível resgatar o direito na literatura, suas conexões e problemas em que figura a sociedade em que ele viveu, particularmente, o maior centro urbano da época, o Rio de Janeiro.

A abordagem baseada no direito na literatura afasta-se da dogmática tradicional. Seu estudo pode levar a novas conclusões, seja no âmbito do direito, da literatura, e mesmo da história e da economia. Neste sentido, o declínio da nobreza e a ascensão do tabelião, retratados no conto “O Empréstimo” é emblemática e não pode ser captada exclusivamente por um deles.

Com a mudança[5] da monarquia para a república que o povo assistira bestializado (LOBO, 1989; CARVALHO, 2003, p. 81), novas  instituições e práticas se estabeleceram e houve difusão de costumes, linguagens, roupas. Mais: a substituição dos gentis homens[6] do Império pelos argentários[7] da República. Ainda que isso seja uma simplificação, dá tom ao texto e ao que se pretende examinar: o contrato de empréstimo por meio de uma metodologia do direito na literatura que abrange procedimentos, atores e a temática jurídica presente em textos literários (KARAM, 2017, p. 834). Assim, o artigo tem como pressuposto o caráter discursivo e narrativo do direito, o que aponta para sua ligação com textos literários (KARAM, 2017, p. 1023), além da atualidade do debate.

 

1          REPÚBLICA S.A: EMPRÉSTIMO, AGIOTAGEM E JUROS

 

A começar pelo Código Comercial de 1850, muitas foram as transformações ocorridas do Império à República. Passando pelas crises econômicas de 1857, 1864 e 1866[8], a legislação hipotecária de 1864-1865, a queda de gabinete de Zacarias Vasconcelos (1868), a publicação do manifesto Reforma ou Revolução, de 1868, a guerra do Paraguai (1864-1870), a difusão do novo ideário europeu (Modernismo de 1870), a fundação do Partido Republicano (1870), a politização dos quartéis, a expansão do crédito bancário nas décadas de 1870 e 1880 (MARCONDES, 2014, p. 756); as crises econômicas de 1873 e 1875[9], o movimento abolicionista (1879 – 1888), o déficit habitacional na capital do Império (desde 1882) (SEVCENKO, 2003, p. 73), Abolição (1888), o Encilhamento (a partir de 1888) e a República (1889) (SEVCENKO, 2003, p. 62, adaptado). Neste ano houve um aumento exponencial da dívida interna entre os meses de março e novembro, agravados por uma crise de seca e epidemia de febre amarela (COSTA, 2016, p. 152).

Não cabe no escopo deste trabalho as nuances de cada um desses momentos e suas complexidades. O intento é recuperar a dinâmica da mudança, situando Machado de Assis em seu tempo, assim como o turbilhão existente à época em que o conto “O Empréstimo” foi redigido. De monárquico a republicano, de unitário a federativo, de parlamentar a presidencial (COSTA, 2016, p. 154), de senhorial a burguês, o que ajudou a conformar novas feições normativas.

Aspecto relevante para este texto é observar a criação privada do direito por meio do contrato, que estabelece um nomos (COVER, 2016, p. 221), entendido como estruturas de significado e padrões de comportamento. A ideia não é explicar o processo pelo seu resultado, mas apontar dimensões da transformação. Nesse sentido, ao tempo em que o conto foi escrito, o contrato era concebido como uma instituição liberal, caracterizada pela autonomia da vontade[10] das partes contratantes mas que não viabilizava a igualdade de todos perante todos (KARAM, 2017, p. 853). É que o direito brasileiro não vislumbrava a proteção aos mais fracos no direito civil, o que só se fez com a ascensão das cláusulas gerais da boa-fé nas relações jurídicas massificadas e despersonalizadas do século XXI (MARQUES; MIRAGEM, 2012, p. 116).

Assim, mesmo que do ponto vista temporal a discussão seja distante, as questões colocadas pelo texto de Machado de Assis podem ser objeto de reflexão não só para o direito atual mas podem alargar o repertório de leituras do leitor, considerando o potencial de atualização do texto (KARAM, 2017, p. 854). Igualmente, a monetarização da vida cotidiana quase tudo se torna valor de troca, o que tende a tornar o dinheiro o centro do mundo.

 É significativo que o pacote econômico de 17 de janeiro de 1890 (BRASIL, 1882)[11][12] seja chamado por Machado de Assis de o “dia da criação”, em ironia ao 15 de novembro de 1889 (FRANCO, 2016). Assim, é no drama, nas pulsões e contradições (VELLOSO, 1988, p. 254) de seus personagens que Machado de Assis apresenta às críticas às instituições de seu tempo (VELLOSO, 1988, p. 253). Aqui a literatura funciona como um espelho quebrado ou ao avesso da nação.

Seguindo o passo, os capitais estrangeiros destinavam-se, principalmente, a empréstimos governamentais e à implantação de uma infraestrutura de meios de transporte, comunicação e bens de capital para incrementar as indústrias extrativas e beneficiar matérias primas. A experiência da “democratização” de crédito da política de Encilhamento pretendia estabelecer uma nova filosofia financeira ao induzir a remodelação de hábitos sociais e cuidados pessoais (SEVCENKO, 2003, p. 40). É nesse período que o novo modelo do burguês argentário se estabelece como padrão do prestígio social sob o pretexto retórico da democracia (SEVCENKO, 2003, p. 38), do mérito e da igualdade de oportunidades (CARVALHO, 2000).

Era necessário fazer um ajuste entre a ampliação local dos recursos pecuniários com a expansão do comércio europeu, em uma tentativa de sintonizar o descompasso de sociedades ditas periféricas com as avançadas, o que significava acompanhar os padrões e ritmos da economia europeia em nome de um suposto progresso (SEVCENKO, 2003, p. 40-41) com base em uma retórica iluminista. É desse tempo a oposição entre cidade industriosa e campo indolente (SEVCENKO, 2003, p. 45), que tem no Jeca Tatu, de Monteiro Lobato, o arquétipo exemplar.

Entre 1889 e 1891, o novo regime parecia uma república de banqueiros (CARVALHO, 2005, p. 20), no qual enriquecer com o dinheiro da especulação era regra, a vitória do espírito do capitalismo, sem a ética protestante (CARVALHO, 2005, p. 27). A ideia de aquisição sem qualquer parâmetro ético ou mesmo de cálculo racional (CARVALHO, 2005, p. 27) era matéria abundante para o jornalismo e a literatura[13]. Com o dinheiro sem lastro houve inflação e duplicação dos preços (CARVALHO, 2005, p. 20), agravado pela perda do preço do café (CARVALHO, 2005, p. 21) na metade da década, situação contornada apenas no governo Campos Sales (1898-1902).

Nesse ambiente, empréstimo, agiotagem e juros faziam milionários e falidos da noite para o dia. Nos anos de 1890 e 1891, havia corretores que tinham lucros diários exorbitantes, de cinquenta a cem contos (CARVALHO, 2005, p. 20). No primeiro quinqüênio da República houve aumento de cem por cento nos salários e de trezentos por cento nos preços (CARVALHO, 2005, p. 21). A confiança no enriquecimento sem esforço não ficou isenta de graves consequências. Nos novos tempos, a crença na civilização sustentada pelos defensores do novo colonialismo promoveu um deslocamento da arena parlamentar para as companhias, os bancos e a bolsa de valores (BOSI, 1982). Essa república vencera.

 

2          O CONTO “O EMPRÉSTIMO”, DE 1882: CONSIDERAÇÕES DA LITERATURA

 

Considerando que a narrativa literária constitui uma representação do homem e do mundo, ela permite desenvolver reflexões específicas para o Direito. Para tanto, é necessário tomá-la como objeto de estudo, o que exige arcabouço teórico-conceitual e metodológico pertinentes com base em pelo menos três pressupostos (KARAM, 2017, p. 836-837): 1) o texto literário possui sentidos que escapam à vontade do autor. A vinculação à época em que foi escrito pode problematizar ou confirmar a visão do tempo de sua produção; 2) expressa a subjetividade do narrador, com suas ambiguidades, metáforas e plurissignificações, o que conduz a uma variedade de sentidos e interpretações; 3) é uma invenção, uma criação imaginária e seus elementos figurativos, personagens, objetos e ações, estão a serviço de temas presentes ou não no mundo empírico (KARAM, 2017, p. 837).    

O discurso narrativo pretende apresentar uma história e destino, começo e fim, explicação e propósito (COVER, 2016, p. 188). No início do conto, o narrador se propõe a contar a anedota, verdadeira, o que sugere a emergência e finalidade da estrutura narrativa, com um fundo filosófico, de modo a decifrar alguma lição, máxima ou filosofia (BAPTISTA, 2005, p. 211). Porém o sarcasmo com a filosofia dos coletes de Carlyle ou da loteria do Ipiranga, de Pitágoras, deixa escapar que não se trata de algo a ser levado a sério mas de humor (BAPTISTA, 2005, p. 213), ou melhor, enigma, já que não se permite definir. Isso porque a ambiguidade, a polissemia e o recurso à intertextualidade impõem uma constante necessidade de interpretação.

A literatura pode antecipar em décadas problemas políticos, jurídicos e econômicos. Assim, a figura do rentista machadiano, distante do mundo do trabalho, o sujeito que vivia de rendimentos sejam dos alugueis, dos escravos, das apólices, ou, ainda, o homem sem caráter, pequeno ou grande aproveitador, que embolsa rendimentos e se torna rico durante a “bolha” do Encilhamento (ROUANET,2007, s/p). Além disso, um dos maiores personagens de Machado de Assis é um rentista: Brás Cubas (ROUANET, 2007). Ao zombar o rentista ou um tipo humano como Custódio, do conto “O Empréstimo”, o autor critica não só um modelo econômico ou jurídico, mas a própria humanidade.

Um detalhe a ser considerado é que Custódio é apresentado com seu nome próprio e Vaz Nunes, com o sobrenome. O primeiro, apreciador de artigos finos e caros representa o eclipse do mundo senhorial. O último representa a vitória do bacharel, que faz a transição do mundo dos gentis homens para os argentários.  

No entanto, isso não faz de Machado de Assis republicano ou monarquista. Tampouco conservador, positivista ou evolucionista. Antes, buscou o olhar da tradição analítica e moral seiscentista (BOSI, 2007, p. 163). Àquela altura, nos anos 1880, a nobreza de berço desaparecia em quase toda parte do cenário capitalista em expansão (BOSI, 2007, p. 64).

Na altivez pobre de Custódio e no rico cálculo liberal de Vaz Nunes é que se tem a chave de compreensão dos personagens por meio de suas palavras e atitudes, cabendo ao leitor distingui-las a propósito da anedota.

 “O Empréstimo” pode ser lido como um conto-retrato (BOSI, 2007, p. 104), em que há a convergência de um ser singular (Custódio) com o universal do instinto e do interesse marcado pela impossibilidade de alcançar seus ideais. Esse empecilho não se dá por ausência de objetivos. O protagonista pretende ser sócio de uma fábrica de agulhas. No entanto, pretende fazê-lo sem nenhum esforço. Note-se que a oferta de trabalho que lhe é feita por Vaz Nunes é rejeitada (ASSIS, 1994).  Se a metonímia desencontrada (COURI, 2000, p. 161) conta toda a vida de Custódio, as advertências de Machado de Assis, os personagens e suas características, os autores e personalidades citados, enredam o leitor em um esclarecimento equívoco. É um jogo de ocultação (COURI, 2000, p. 162) em que dificilmente os personagens ou o autor do conto se mostram. Ao final, nem mesmo empréstimo era, o que denota o conflito entre essência e aparência (ALBANO, 2006, p. 106), comum à narrativa do autor. A despeito disso, o enredo se debruça sobre o empréstimo e a quantia a ser estabelecida.

O enfoque apresentado oferece condições para identificar questões jurídicas (KARAM, 2017, p. 842) por meio dos personagens, objetos, ações e o espaço temporal em que discorre a história, delineados pelo discurso do narrador, ensejando um acesso à discussão contratual e, especialmente, ao problema do mútuo.

 

3          NA ROTA DO DIREITO ATUAL: COMPREENDENDO O CONTRATO DE EMPRÉSTIMO

 

No tempo de Machado de Assis, as exigências de uma economia capitalista[14] não eram compatíveis com um tipo de utilização de propriedade fundiária, em parte oriundo do legado do Antigo Regime, daí a necessidade afastar a propriedade do solo de sua origem, afirmar a plenitude da autonomia da vontade do proprietário, que teria a liberdade de lançar seus bens, sem empecilhos, quer na produção (ROPPO, 2009, p. 44) ou na especulação.

Ainda no pensamento jurídico oitocentista, o contrato e o poder de contratar são perspectivados como meios de expressão da liberdade pessoal do indivíduo, que liberto dos vínculos do Antigo Regime, já pode estreitar o nexo entre contrato e propriedade, sendo o primeiro o instrumento de circulação da riqueza, simbolizada no direito de propriedade (ROPPO, 2009, p. 42). A liberdade de atuação contratual e econômica baseada no consenso dos contratantes foi o mantra não só da burguesia ascendente mas a roupagem de uma nova imagem da sociedade (WIEACKER, 2004, p. 390).

Nessa perspectiva, a norma, seja contrato, livre associação, propriedade ou direito empresarial – torna-se constitutiva de um mundo. Não há apenas uma mudança jurídica. Um mundo é virado do avesso; outro começa a se formar (COVER, 2016, p. 221).

A paisagem é de confusão, desordem, o que explica o propósito dos juristas pretenderem desenhar modelos nítidos e lineares (GROSSI, 2007, p. 53), assim como o ceticismo de um Machado de Assis. O mundo, outrora exorcizado pelos padres, agora é consagrado pelo novo Midas: o argentário, realista, utilitário e não burguês, termo que parece genérico e falso (BOSI, 2007, p. 110). A passagem do estamento para o contrato assinala esse momento histórico.

Na ausência de um Código Civil, a Consolidação das Leis Civis nos arts. 361 (que trata da estipulação de juros) (FREITAS, 2003, p. 243), 365 (empréstimo consignado de dinheiro)[15], 477 (mútuo)[16], 479 (é um contrato real, requer a entrega da coisa) (FREITAS, 2003, p. 335), 481 (prazo para pagamento) (FREITAS, 2003, p. 335) e 482 (regra hermenêutica sobre prazo contratual) (FREITAS, 2003, p. 336) denotam o arcabouço jurídico vigente quando da publicação do conto “Empréstimo”, em 1881. Aparentemente esses preceitos se aproximam de disposições do Código Civil atual, tais como, os arts. 586 (conceito legal de mútuo) (BRASIL, 2020, p. 204), 587 (é um contrato real) (BRASIL, 2020, p. 204), 592 (prazos para pagamento na ausência de disposição expressa)[17] e 591 (trata dos juros devidos no mútuo)[18].

Essas considerações não pretendem fazer um salto anacrônico para comparar os dois textos legislativos[19]. A ideia é mostrar que o cotejo entre eles permite uma melhor compreensão do ponto de vista do direito na literatura seja pelo olhar do conto machadiano, seja pelo olhar do direito positivo, com proveito para ambos.

Tanto a época de Machado como hoje há a pretensão de desenvolver o valor monetário das coisas de modo que todas sejam apreciáveis em dinheiro, que se torna o denominador comum de todos os valores, um valor supostamente objetivo, em oposição à utilidade subjetiva. Como o dinheiro não é perecível e pode ser acumulado indefinidamente, a riqueza passa a ser concebida como um fim e, nesse processo, a ideia do contrato moderno está presente não só no direito das obrigações, mas é ubíqua. Em uma frase, é a representação de um mundo de tecnologia e produção econômica.

Sob a rubrica empréstimo há duas figuras contratuais típicas: o mútuo e do comodato. Em ambas há a ideia de utilização da coisa outrem ligada ao dever de restituição. Porém, se distinguem conceitualmente, do ponto de vista da celebração e de seus efeitos (PEREIRA, 2011, p. 309). Considerando a interface com o conto machadiano, este artigo tratará apenas do mútuo.

Há mútuo sempre que alguém entrega a outro uma certa quantidade de coisas para que a consuma, comprometendo-se a devolver, na forma e prazo acordados, coisas ou bens recebidos equivalentes em quantidade, qualidade e gênero, acrescidos de juros[20] e comissões, conforme estipulação prévia (RIZZARDO, 2009, p. 34; 39). Estes correspondem ao poder de uso e disposição que o mutuário[21] adquire por algum tempo (PONTES DE MIRANDA, 2012, p.59).

Cumpre considerar que os interessados buscam empréstimos por razões diversas. O dinheiro é, por natureza, uma ordem para o futuro (BISWANGER, 2011, p. 60). Pode-se comprar, gastar, fazer render, investir mas também pode ser perdido. Custódio, por exemplo, após ler um anúncio que pedia cinco contos de réis para um sócio entrar em uma fábrica de agulhas, sentiu-se motivado, após tentativa com oito ou dez amigos, a procurar o tabelião Vaz Nunes para tratar da situação (ASSIS, 1994).  Aqui, sujeitos do contrato são Custódio e Vaz Nunes. O objeto do contrato, o dinheiro que Vaz Nunes emprestaria a Custódio. A causa do contrato é o valor monetário, de modo que o mutuário possa utilizá-lo na fábrica de agulhas.

Em relação às características do contrato, a regência é da lei civil quando o tomador do empréstimo é entre particulares, no caso de Custódio e do tabelião. É contrato real porque o mútuo depende da efetiva entrega do dinheiro ou da tradição, com posterior restituição no vencimento do prazo avençado (RIZZARDO, 2009, p.37). No direito brasileiro pode haver mútuo consensual e pode ter finalidade que resulte de uma alguma cláusula ou lei (PONTES DE MIRANDA, 2012, p. 58-59). Há quem considere a noção de contrato real um resquício da concepção clássica francesa presente no Código Civil de 1804[22], ou seja, seria um conceito ultrapassado, sem justificação alguma (MOSSET ITURRASPE; PIEDECASAS, 2004, p. 49) pois a lei poderia, em algumas situações, estabelecer efeitos emancipados da entrega da coisa (SACCOCCIO, 2019, p. 355). Apesar das objeções, o direito brasileiro tem preservado esse entendimento[23], seja na Consolidação das Leis Civis (art. 1903), no Código Civil de 1916 (art. 1256) ou no Código atual (art.586). Talvez uma solução seja admitir a existência de mútuos consensuais e reais (SACCOCCIO, 2019, p. 360). 

Feitas as ressalvas, nesse tipo contratual a restituição deve ser correspondente ao que se deve. Não se trata do mesmo título ou coisa emprestada, o que configuraria o comodato (RIZZARDO, 2009, p. 40). Ao conceder o empréstimo, o dever do mutuante, Vaz Nunes, se resumiria à entrega do valor. Já o mutuário, Custódio, obriga-se: a) devolver a soma emprestada na época e nas condições estabelecidas; b) pagar juros e comissões, desde que estejam previamente elencados no contrato (RIZZARDO, 2009, p. 39). Os juros dizem respeito à remuneração do capital[24]; as comissões são o preço do contrato, correspondem à contraprestação; c) devolver o dinheiro em trinta dias caso não haja convenção expressa (art. 592 do Código Civil[25]); d) antecipação do vencimento do mútuo[26].

Observe-se que, de acordo com o Código Civil em vigor, o que importa não é mais a exigência cega do cumprimento do contrato (LÔBO, 2005), da forma como foi celebrado mas se sua execução promove o equilíbrio das partes nos limites dos direitos e deveres entre elas.

Há um aspecto que merece análise pormenorizada: uma das tarefas do contrato é facilitar o progresso material e remover eventuais obstáculos, o que estabelece um liame entre a noção de contrato e uma concepção particular de economia que abriu um processo que pode ser definido como a mobilização e desmaterialização da riqueza (ROPPO, 2009, p. 64) em que o contrato e não a propriedade se torna o instrumento fundamental da gestão de recursos e impulsionador das atividades econômicas (ROPPO, 2009, p. 66).

Contudo, as formas e modalidades de circulação de riqueza são tão heterogêneas quanto diferentes são os tipos de operação econômica na experiência negocial (ROPPO, 2009, p. 211). Cada forma de transferência de riqueza é realizado com o instrumento contratual que corresponde a um efeito contratual específico (ROPPO, 2009, p. 211). No mútuo, a formação contratual se dá pela entrega material da coisa de uma pessoa à outra, que constitui seu objeto (ROPPO, 2009, p. 89), não havendo o dever de reembolso de despesas de conservação mesmo porque a coisa passa à propriedade do mutuário (PEREIRA, 2011, p. 317), respondendo o mutuante pelos vícios ou defeitos da coisa sobre os quais tinha conhecimento e não informou o mutuário, tendo em vista que a ninguém é lícito fazer valer um direito em contradição com sua conduta anterior (LÔBO, 2005), o que significaria a violação da legítima confiança da contraparte, em desapreço ao interesse das partes e do próprio direito. 

O mútuo se desprenderia do modelo legal da troca de proposta e aceitação em que o processo de formação contratual não exige a entrega da coisa, os chamados contratos consensuais (ROPPO, 2009, p. 89). Ao dispensar o rigor de fórmulas e do simbolismo romano, ao modo do direito antigo[27], com o aperfeiçoamento contratual por meio da entrega da coisa ao devedor (HIRONAKA, 1990, p. 82), tem propiciado um considerável desenvolvimento do comércio e da especulação (HIRONAKA, 1990, p. 84), que não podem ser alheias aos deveres gerais de conduta nas obrigações civis. Sua atualidade está em contratos como o de financiamento, abertura de crédito, conta-corrente (PEREIRA, 2011, p. 320) bancário, dentre outros, que dificilmente se enquadram na noção de mútuo trazida pelo ordenamento ou pela doutrina tradicional. Suas finalidades são várias.

 

§ CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Este trabalho se distancia da rigidez teórica da doutrina jurídica ou de uma simplificação reclamada em nome de um suposto pragmatismo. Antes, requer um diálogo que possui vários inconvenientes, especialmente, em relação ao que se entende como direito e literatura. A opção metodológica adotada não pretende debilitar a dogmática como área específica do conhecimento humano, mas abri-la a novas possibilidades, enriquecê-la com a percepção de que a heterogeneidade do plano teórico-prático implica superar visões binárias e exclusivistas do fenômeno jurídico.

Ao propiciar matéria para um novo olhar sobre o direito contratual, o texto mostra o contexto da negociação, seja ao ressaltar os tipos humanos e seus comportamentos no conto “O Empréstimo”, seja ao avaliar os elementos do mútuo, levando em conta que o caráter narrativo da história, da literatura e da economia devem ser integradas na construção de sentido. 

Muito há a fazer. É certo que a vertente interdisciplinar requer maior embasamento teórico e contrasta com uma visão parcelar e fracionária do contrato. Nesse ponto focal, oferece à dogmática uma reflexão de modo a aproximar o direito contratual com a literatura por meio da análise entre as situações apresentadas no conto e do ponto de vista técnico-jurídico a partir de um modelo teórico e metodológico, o direito na literatura.

Diferente de um produtor ou especulador, em Machado de Assis o dinheiro ou a luta pelo capital-dinheiro não é elemento natural dotado de valorização própria, ainda que seja aparentemente um instrumento de mediação de valores. Isso permite compreender a crítica irônica aos personagens de Custódio e Vaz Nunes, envolvidos em um contrato de empréstimo. Custódio é general pedinte, que nada tem. Vaz Nunes é o circunspecto tabelião que mantêm guardados seus contos de réis. Neste sentido, pode-se afirmar que há uma redução deles à condição de coisa.

Se a lei da usura e o Código Civil podem ser aplicados nas relações jurídicas civis, o que talvez, por aproximação, fosse o caso de Custódio e Vaz Nunes, no âmbito do sistema financeiro nacional não há limitação aos juros, o que acena para a república de acionistas, financistas e banqueiros apreciada no início do artigo. O século das estradas de ferro, da indústria e do maquinismo deixou no passado a imobilidade. A produção de dinheiro (papel moeda) do Encilhamento pretendia expandir uma demanda imaginária de produção de bens, feita em nome do progresso e da ordem, culminou na amplificação de uma economia dual: de um lado, a subsistência; de outro, finanças e indústria (BISWANGER, 2011, p. 62).

Essa constatação seria compensada pelo progresso tecnológico e desenvolvimento econômico, na objetificação de lucros futuros do capital-dinheiro na atuação do empresário, do engenheiro, do inventor que moldam um mundo vendável de ideias, projetos e investimentos do qual Custódio está fora. Ele, que não realiza planos factíveis, que tem faro para o desastre em empreendimentos, não se apodera de materiais para transformá-los em preço, está à margem da sociedade. A obra máxima, a imortalização do ego, a vitória na economia predatória, não é para ele.

Para mostrar os homens em suas relações sociais, o fenômeno do mútuo em dinheiro e sua conformação jurídica por meio do conto machadiano foi o mote da análise. Por volta de 1870, quando a roda da fortuna passa a girar mais rápido, o empréstimo em dinheiro se torna um importante elemento da economia monetária, plasmando o universo normativo e material, as restrições da realidade e a exigência por uma ética.

Outrora presente na legislação romano-canônica[28], a proibição de empréstimo a juros foi abandonada ainda no século XIX, conforme exposto no texto, ainda que a usura permaneça proibida. Por isso, o preço do uso do dinheiro é admitido no contrato de mútuo, o que significa que a pecúnia possui valor intrínseco, ainda que não seja o único, a justificar sua cobrança. Exemplos são o dano emergente (aquilo que efetivamente se perdeu) e o lucro cessante (o que se deixou, razoavelmente, de ganhar) que estão presentes nos contratos de mútuo e que não integram seu preço.

Com efeito, particular pode emprestar dinheiro a terceiros, inclusive podendo exigir garantia imobiliária. De outro lado, a agiotagem, mútuo de dinheiro em valores acima dos permitidos pela lei, pode ensejar responsabilidade civil e penal[29].

O equilíbrio entre as prestações contratuais evita o enriquecimento de uma das partes em detrimento do empobrecimento da outra. Em uma ótica patrimonial, a preocupação não seria apenas com o empréstimo mas com o funcionamento da economia de mercado, que deve observar níveis razoáveis de proporcionalidade. O empréstimo deve ser legal e não abusivo. Como isso parece ter razão o poeta ao afirmar que o lugar comum é a base da sociedade, sua filosofia, a segurança das instituições[30]...  

Do ponto de vista histórico, a recompensa pelo uso do dinheiro emprestado enfrentou grande resistência. Se a discussão teológica fora substituída pela filosofia, remanesce o problema, que hoje é formulado em termos de justiça corretiva (que busca reestabelecer o equilíbrio nas relações privadas voluntárias, os contratos, e involuntárias, na hipótese de configuração de ilícitos civis e penais); comutativa (no âmbito das relações privadas, abrange as trocas realizadas entre pessoas) e distributiva (igualdade proporcional), que  inibe a lesão e promove a paridade.

Se, em oposição a Protágoras, o dinheiro se torna a medida de todas as coisas, há uma revanche da economia de mercado contra os sofistas e filósofos. Não há mais tempo para inquietações com meditações sutis de contistas se a promessa de ascensão financeira destrona o próprio Deus. E os juristas podem tornar-se ilusionistas quer da tradição ou da inovação.   

No direito brasileiro, o contrato de mútuo favorece o crédito pessoal e a circulação de valores por meio da garantia da boa-fé e da realização de contratos simplificados, em um sistema de tensão entre realidade e visão, no sentido de conceber alternativas (COVER, 2016, p. 194), colocando em destaque as demandas mais imediatas (COVER, 2016, p. 194), com dispensa das formalidades e presunção de onerosidade.

Hoje não é possível conceber esse contrato como composição de interesses antagônicos entre o credor e o devedor mesmo porque a obrigação não pode ser concebida apenas como estrutura relacional de interesses individuais. O dever de cooperação é próprio do dever geral de conduta, impondo-se às partes, especialmente, em relações obrigacionais duradouras (LÔBO, 2005).

A questão do lucro, vantagem ou interesse pecuniário deve se amparar no exame não só daquele que o obtém ou do tomador, mas deve considerar o risco, os padrões de mercado, a concorrência, a regulação existente, e a atribuição de um preço que evite a degradação do ser humano, tendo em vista os princípios fundamentais da dignidade da pessoa humana, os valores sociais da livre iniciativa, a igualdade substancial e a ordem econômica e financeira.

 

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Informações adicionais e declarações dos autores

(integridade científica)

 

Declaração de conflito de interesses (conflict of interest declaration): o autor confirma que não há conflitos de interesse na realização das pesquisas expostas e na redação deste artigo.

 

Declaração de autoria e especificação das contribuições (declaration of authorship): todas e somente as pessoas que atendem os requisitos de autoria deste artigo estão listadas como autores; todos os coautores se responsabilizam integralmente por este trabalho em sua totalidade.

 

Declaração de ineditismo e originalidade (declaration of originality): o autor assegura que o texto aqui publicado não foi divulgado anteriormente em outro meio e que futura republicação somente se realizará com a indicação expressa da referência desta publicação original; também atesta que não há plágio de terceiros ou autoplágio.

 

Dados do processo editorial

· Recebido em: 09/09/2021

· Controle preliminar e verificação de plágio: 21/09/2021

· Avaliação 1: 20/10/2021

· Avaliação 2: 23/11/2021

· Decisão editorial preliminar: 23/11/2021

· Retorno rodada de correções: 11/12/2021

· Decisão editorial final: 11/12/2021

· Publicação: 31/12/2021

Equipe editorial envolvida

·  Editor-Chefe: FQP

·  Assistente-Editorial: MR

·  Revisores: 02

COMO CITAR ESTE ARTIGO

LUZ SEGUNDO, Elpídio Paiva. Reflexões sobre o direito contratual através da literatura: o conto “O empréstimo”, de Machado de Assis. Revista de Direito da Faculdade Guanambi, Guanambi, v. 8, n. 02, e350, jun./dez. 2021. doi: https://doi.org/10.29293/rdfg.v8i02.350. Disponível em: http://revistas.faculdadeguanambi.edu.br/index.php/Revistadedireito/article/view/350. Acesso em: dia mês. ano.



* Editor: Prof. Dr. Flávio Quinaud Pedron. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4259444603254002. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4804-2886.

[1] Doutor em Direito pela UNESA/RJ. Mestre em Direito pela UNESA/RJ. Especialista em Direito Público pela PUC/MG. Bacharel em Direito pela PUC/MG. Professor do curso de Direito da UniFG. Lattes: http://lattes.cnpq.br/8222031049497571. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9365-203X.

[2] São pelo menos cinco tipos de abordagem sobre Direito e Literatura. São elas: 1) Direito da Literatura, que aborda especialmente a liberdade de expressão literária e dos direitos autorais; 2) Direito na Literatura, campo em que se propõe a análise-interpretativa de problemas político-jurídicos em textos literários; 3) Direito como Literatura, com a análise do discurso jurídico através dos conceitos da teoria literária; 4) Literatura no Direito, o emprego de obras literárias como argumento jurídico; 5) Literatura como Direito, o estudo de obras literárias dedicadas a influenciar o universo jurídico tais como J’accuse de Émile Zola e Marginália, de Lima Barreto. (TRINDADE et al, 2019, p. 3-4).

[3] POSNER, 2009, p. 549-550. O autor sustenta que o se o movimento direito e literatura quer resistir ao obscuro, ao esotérico e arcano precisa pensar sua natureza pedagógica e recriar uma relação mais estreita com a sala de aula. Além disso, precisaria prestar mais atenção à retórica do Judiciário, à advocacia e a literatura como fonte de conhecimento prévio sobre questões que apresentam desafios aos princípios de política jurídica (legal policy). Segundo o Dicionário Oxford, a legal policy consiste em princípios que os juízes consideram que a lei deve respeitar, tais como: a lei deve servir ao interesse público, deve ser imparcial e justa, dentre outros.

[4] POSNER, 2009, p. 485. I did not argue that works of imaginative literature are the only suitable texts for studying revenge, jurisprudence, or the romantic temperament or that the study of literature is the only way to learn about refugee issues, totalitarianism, or the impact of technological advances; and I reject the implications of James Boyd White’s claim that “information [conveyed by findings in the natural or social sciences] may shift my sense of the sufficiency of the information. More people have been changed by natural science (think of Darwin’s impact on social thought) and by social science—a body of research and writing that includes the works of Adam Smith, Marx, Freud, Keynes, Kinsey, and Hayek, among many others—than by imaginative literature, though White may have inoculated himself against this body of writings. Tradução livre: Obras de literatura imaginativa não são os únicos textos adequados para estudar vingança, jurisprudência ou temperamento romântico. Tampouco o estudo da literatura é a única maneira de aprender sobre as questões dos refugiados, o totalitarismo ou o impacto dos avanços tecnológicos; rejeito as implicações da afirmação de James Body White de que informações transmitidas por descobertas nas ciências naturais ou sociais não mudam o senso de suficiência das informações existentes. Mais pessoas foram mudadas pelas ciências naturais (pense no impacto de Darwin no pensamento social) e pelas ciências sociais – um corpo de pesquisa e escrita que inclui as obras de Adam Smith, Marx, Freud, Keynes, Kinsey e Hayek, entre muitos outros, do que pela literatura imaginativa, embora White entenda de modo diverso. Aqui há uma objeção em relação a uma concepção humanizadora da literatura no direito.

[5] SCHULZ, 1996, p. 72-81, adaptado. Na segunda metade do século XIX, o Brasil passou por mudanças significativas seja na política, na economia ou na área social. A forma de governo passou de monarquia à república; o Estado, de unitário à federal; o fim do poder moderador e o estabelecimento do presidencialismo; separação entre Igreja e Estado; a abolição, que implicou em um modelo de trabalho assalariado; urbanização e crescimento das cidades; modernização das fazendas com novos maquinários, instalação de indústrias; criação de instituições financeiras, adoção do federalismo, eleição dos governadores de Estado em substituição aos presidentes de Província, que eram indicados pelo poder central; imigração européia; ascensão do Exército, instigado pela imprensa republicana civil; a bolha especulativa, com o incentivo para a formação de novos bancos, sendo que dos quarenta bancos existentes em 1889, quatorze foram criados nesse ano.

[6] AUERBACH, 1971, p. 117. O cavaleiro cortês baseado nas ideias de valentia, honra, fidelidade, respeito mútuo, nobres costumes, ideais estes afastados da realidade e que paradoxalmente sobreviveu no decorrer de séculos.

[7] MORAES, 2016, p. 40. Argentarius é palavra latina que indica, originalmente, aquele que lida com moedas (depois, “banqueiro”) e o sufixo “-arius” é usualmente indicativo de uma ocupação ou ofício.

[8] CROCE, 2013, p. 50. A crise financeira de 1857 resultou em quarenta e nove falências em 1857 e noventa em 1858. A perda total do mercado financeiro foi de quinze mil contos. A razão da crise foi o índice de emissão monetária, que implicou na desvalorização cambial. Em 1864, a contração da moeda, que estancara a crise anterior, foi responsável por perdas na agroexportação brasileira, o que colocou o Rio de Janeiro, centro econômico do país, em situação muito difícil.   No mesmo ano, o conflito entre o Brasil e o Uruguai pela Bacia do Prata foi outro fator de crise.  A suspensão, em 10 de setembro de 1864, dos pagamentos por uma das maiores casas bancárias do Rio Janeiro, a Souto, provocou grande alvoroço culminando na falência de outros bancos e casas comerciais do Rio de Janeiro, sendo que os correntistas da Souto receberam apenas 25% do valor dos seus depósitos. Já a crise de 1866 alcançou os negócios de Mauá, o que impediu a fusão de seu banco com o London Brazilian Bank.

[9] CROCE, 2013, p. 50. Em 1873 há um crack na Bolsa de Valores na Europa Central, o que levou à falência de Mauá, em 1875.  As perdas de Mauá resultaram na queda do gabinete do Barão do Rio Branco (1871 – 1875).

[10] MENDES; LUZ SEGUNDO, 2020. A autonomia da vontade do séc. XIX, não se confunde com a atual autonomia privada. Nas palavras de Francisco Amaral, “A autonomia privada é o poder que os particulares têm de regular, pelo exercício de sua própria vontade, as relações de que participam, estabelecendo-lhes o conteúdo e a respectiva disciplina jurídica. É uma das mais significativas representações da liberdade como valor jurídico, expresso no Preâmbulo do texto constitucional, no princípio da liberdade de iniciativa econômica (CR, art. 170) e na liberdade contratual (CC, art. 421)” (AMARAL, 2017, p. 131). A primeira é o princípio norteador do ordenamento jurídico civil brasileiro do século XIX. Cunho do sistema Liberal, a autonomia da vontade fazia com que os burgueses poderiam pactuar contratos, livrando-se do aval da nobreza. 

[11] O Decreto 164, de 17 de janeiro de 1890[11], foi a base do arcabouço jurídico do Encilhamento na República. Regulou a criação e atuação das sociedades anônimas com algumas peculiaridades: a) os estatutos deviam declarar o prazo máximo, nunca superior a dois anos, contados da data de autorização para a sociedade bancária realizar dois terços, pelo menos, de seu capital no país (art. 1°, §2°, I); b) as sociedades anônimas podiam se constituir definitivamente após a subscrição em algum banco ou em mão de pessoa abonada, à escolha da maioria dos subscritores, a décima parte em dinheiro do valor de cada ação. (art. 3°)[11]. Essas foram uma das razões da bolha especulativa: a subscrição de dois terços do art. 1° e a décima parte do dinheiro do art. 2° se tornaram fontes de irregularidades que só seriam parcialmente contornados no ano seguinte. Seus resultados perdurariam até o início do século XX. 

[12] Em relação ao Decreto n° 165, de 17 de janeiro de 1890, o art. 1° dispunha que os bancos que se fundarem com autorização do governo, com fundo social constituído por apólices da dívida pública, moeda, corrente ou ouro poderiam operar, nos termos do art. 2°: a) empréstimos, descontos e câmbios;b) hipotecas a curto e longo prazo; c) penhor agrícola sobre frutos pendentes colhidos e armazenados; d) adiantamentos sobre instrumentos de trabalho, máquinas, aparelhos e todos os meios de produção das atividades agrícolas, engenhos centrais, fábricas e oficinas; e) em empréstimos de caráter industrial para construção de edifícios públicos e particulares, estradas de ferro, cais, docas, melhoramento de portos, telégrafos, telefones e quaisquer empreendimentos industriais; f) comprar e vender terras incultas ou não, parcelá-las e demarcá-las por conta própria ou alheia; g) encarregar-se de assuntos tendentes à colonização fazendo os adiamentos necessários mediante ajuste contratual com colonos ou terceiros interessados; h) incumbir-se por conta própria ou alheia de drenagem e irrigação do solo; i) tratar do nivelamento e orientação de terrenos, abertura de estradas e caminhos rurais, canalização e direção de lagoas e rios e facilitar os meios necessários, mediante ajuste e condições, a qualquer cultura, criação de gado de todas as espécies e exploração de minas, principalmente, de carvão de pedra, cobre, ferro e outros metais; j) finalmente, poderão efetuar todas as operações de comércio e indústria, por conta própria ou de terceiros. O art. 3° concedia aos bancos a cessão gratuita de terras devolutas; preferência na construção de estradas de ferro e outras obras e melhoramentos projetos pelo governo; preferência sobre objetos de colonização e imigração; direito de desapropriação, isenção de impostos e direitos aduaneiros que se aplicaram a fonts de produção tais como estradas de ferro, exploração de rios, minas, dentre outros. (BRASIL, 1890).

[13] De que é exemplo a atuação de Machado de Assis.

[14] “A palavra capital deriva do latim capitalis, que significa “principal” (caput, “cabeça”). Capitalis pars debiti é a parte principal do débito, que é acompanhada por um débito secundário, o juro. O capital monetário no sentido mais amplo compreende todos os fundos que uma pessoa toma emprestado para obter lucro (como seus próprios recursos de capital), ou que empresta a outros em troca de lucro (como capital emprestado). Igualando-se todos os ganhos e perdas, os lucros e juros só podem ser obtidos se todos os rendimentos ou os lucros somados forem maiores que todo o gasto ou despesa somada. Mas isso só é possível se houver um ingresso constante de dinheiro na economia, o que pressupõe, quando não se está minerando ouro suficiente, a criação de dinheiro sem valor material, como papel-moeda”. (BISWANGER, 2011, p. 36).

[15] Não havia proibição para empréstimo de dinheiro. O que se proibia era a usura. (FREITAS, 2003, p. 252).

[16] “Art. 477. Quando se empresta alguma cousa , que consiste em número, peso, medida, e com o uso se consome, o empréstimo chama-se mútuo”. (FREITAS, 2003, p. 333). “(...) há mútuo, sempre que a obrigação de restituir for genérica, e não se referir à própria cousa recebida; mas à outra da mesma espécie, e qualidade, qualquer que ela seja”. (FREITAS, 2003, p. 333).

[17] “Art. 592. Não se tendo convencionado expressamente, o prazo do mútuo será: (...) II – de 30 (trinta) dias, pelo menos, se for de dinheiro”. (BRASIL, 2020, p. 204).

[18] “Art. 591. Destinando-se o mútuo a fins econômicos, presumem-se devidos os juros, os quais, sob pena de redução, não poderão exceder a taxa a que se refere o art. 406, permitida a capitalização anual”. (BRASIL, 2020, p. 204).

[19] Há uma distinção fundamental do mútuo do Código Civil de 2002 em relação à legislação anterior. É que o mútuo mercantil estava previsto no art. 247 do Código Comercial de 1850, revogado pelo art. 2045 do Código atual, bem como a íntegra da Primeira Parte do Código Comercial, que dispunha sobre o comércio em geral (art. 1° a 456).

[20] Nos termos do enunciado 20, da I Jornada de Direito Civil, a taxa de juros moratórios a que se refere o art. 406 é o art. 161, § 1°, do Código Tributário Nacional, ou seja, um por cento por mês. Inobstante, como não há previsão legislativa sobre a matéria, o posicionamento sobre o tema tem sido oscilante, seja da perspectiva da teoria ou dos tribunais. (AGUIAR JÚNIOR, 2012, p. 19).

[21] Em relação ao art. 591, o enunciado 34 do Conselho da Justiça Federal dispõe que qualquer contrato de mútuo destinado a fim econômico presume-se oneroso, ficando a taxa de juros compensatórios limitada ao disposto no art. 406, com capitalização anual. (AGUIAR JÚNIOR, 2012, p. 20). Contudo, a Súmula 596 do Supremo Tribunal Federal determina que entidades bancárias não se submetem à Lei de Usura (Decreto-lei 22.626/1933), que veda a cobrança de juros abusivos, o que reforça os argumentos apresentados ao longo deste texto.

[22] (MOSSET ITURRASPE; PIEDECASAS, 2004, p. 59). (...) para la concepción clásica -a partir del Código Civil francés de 1804, Código Napoleón- la actuación del contrato se limitaba al ámbito obligacional -o personal- sin mencionar a las relaciones de Derecho Real. (...) los contratos de prenda y anticresis, y las disposiciones relativas a la constitución de usufructo, uso y habitación  (...) permiten arribar a una conclusión diferente: la idoneidad del contrato para crear, transmitir, modificar o extinguir los derechos reales. (...) también insistimos en que el contrato, como regla, respecto de esos derechos reales, sirve de título o causa fuente, requiriendo de "modos": la tradición y la inscripción registral. (...) Como excepción la doctrina recuerda derechos reales que no han menester la tradición: es el caso de la prenda civil, ya mencionada, y de la hipoteca (prenda sin desplazamiento) (...). En las servidumbres prediales el "modo" requerido es "el primer uso".

[23] (SACCOCCIO, 2019, p. 355-356). Um ponto de virada para a América Latina é representado pelo Código Civil Federal do México (1928). Após as duas Codificações Federais de 1870 (art. 2.809) e 1884 (art. 2.684), que eram alinhadas com os Códigos de outros países da época, o Código elaborado em 1928 adotou o princípio consensualista e reconheceu a possibilidade de que um mútuo poderia ser celebrado pelo mero consentimento (art. 2.384). As influências, em tal escolha, são do Ordenamiento de Alcalá, do Proyecto García Goyena e do suíço OR de 1882-1911. Esse modelo, que permaneceu esquecido durante anos no sistema latino-americano, ressurgiu nos anos 1980 (muito embora se possa ter presente também o chamado Projeto Bibiloni do Código Civil, lançado nos anos 1930, na Argentina). Ele é adotado no Código Civil do Peru ([1984], art. 1.648, que mudou sua abordagem ao tópico em comparação com os Códigos anteriores de 1852 e 1936) e no Código Civil de Cuba ([1987], art. 379). Também, nesses casos, há inspiração no Código Civil do México de 1928 e nos estudiosos alemães (em particular, Karl Larenz). O atual Código Civil Argentino (2014) prevê o mútuo consensual.  

[24] (PEREIRA, 2011, p. 320). Se o mútuo se destina a fins econômicos, presumem-se incidentes os juros. Por fins econômicos se entende aquele mútuo que não é feito por cortesia, amizade ou espírito de solidariedade.

[25] Art. 592. Não se tendo convencionado expressamente, o prazo do mútuo será: I – até a próxima colheita, se o mútuo for de produtos agrícolas, assim para o consumo, como para a semeadura; II – de trinta dias, pelo menos, se for de dinheiro; III – do espaço de tempo que declarar o mutuante, se for de qualquer outra coisa fungível. (BRASIL, 2002).

[26] Art. 1.426. Nas hipóteses do artigo anterior, de vencimento antecipado da dívida, não se compreendem os juros correspondentes ao tempo ainda não decorrido. (BRASIL, 2002).

[27] (MOSSET ITURRASPE; PIEDECASAS, 2004, p. 53). “Contratar colocadas las partes delante de una balanza o bien hacerlo repitiendo "palabras sacramentales" eran modos propios del Derecho Antiguo; contratar delante de un notario o hacerlo uniendo al acuerdo la entrega de la cosa "sobre la cual versa el negocio" son modos que aún se mantienen en nuestro Derecho. La idea inspiradora es la misma o muy parecida: el cumplir con tales o cuales actos pone de manifiesto la existencia de los elementos internos de la voluntad: el discernimiento, la intención y la libertad. Después de cumplidos – (...) no se podrá alegar desconocimiento o error, que no sabía lo que estaba haciendo o bien que fue sorprendido en su buena fe. Tomar conciencia, internalizar, caer en la cuenta, son los efectos buscados”.

[28] No plano teológico, jurídico e econômico, desenvolveu-se a idéia de trabalho como base da riqueza e da salvação.

[29] Além das perdas e danos na reparação civil, caracteriza a usura.

[30] (QUINTANA, 2007, p. 39 – 40): “O lugar comum é a base da sociedade, a sua política, a sua filosofia, a segurança das instituições. Ninguém é levado a sério com ideias originais”.