Literatura infantil e ideologia: da Escola sem Partido à pedagogia da ironia

Child literature and ideology: from unpolitical school movement to pedagogy of irony

 

 

Guilherme Gonçalves Alcântara[1]

Centro Universitário FG (UniFG) – Guanambi/BA

[email protected]

 

Aline Mariane Ladeia Silva[2]

Centro Universitário FG (UniFG) – Guanambi/BA

[email protected]

 

 

RESUMO: No século XIX, a literatura infantil surge como um instrumento ideológico a serviço das classes dominantes, com a finalidade de formar indivíduos alinhados com as aspirações daquelas sociedades. Esse modelo é identificado pela construção de um conhecimento bivalente e empobrecido, por limitar-se a um pensamento polarizado que se opõe à revolução filosófica ocasionada pelo giro ontológico-linguístico. Na atualidade, ainda é possível identificar essas influências em bandeiras como, por exemplo, a da “escola sem partido”, o que conduz à discussão sobre a influência da literatura infantil no ensino universitário do direito e na formação do senso comum teórico dos juristas. A partir dessa problemática, por meio do método hipotético-dedutivo, o presente ensaio propõe uma pedagogia irônica, amparada na filosofia de Rorty, como uma poderosa e emancipatória ferramenta de ensino.

Palavras-chave: Direito e literatura. Ideologia. Literatura infantil. Pedagogia irônica.

ABSTRACT: During the XIX century, children's literature emerges as an ideological instrument to serve dominant classes with the purpose of educating individuals according to the aspirations of those groups. This model is identified by the construction of a bivalent and impoverished knowledge, for being limited to a polarized thinking in opposite to the philosophical revolution caused by the ontological-linguistic turn. Nowadays, it is still possible to identify these influences in cases such as “Unpolitical School Movement” that leads to the discussion about the influence of children's literature in the law university education and in the the formation of the theoretical common sense of jurists. Based on this issue, this essay proposes an ironic pedagogy as a powerful and emancipatory teaching tool, supported by Rorty's philosophy.

Keywords: Children’s literature. Law and literature. Ideology. Ironic pedagogy.

 

SUMÁRIO: INTRODUÇÃO; 1 A OPOSIÇÃO ENTRE EPISTEME E DOXA; 2 IDEOLOGIA E LITERATURA INFANTIL; 3 LITERATURA INFANTIL E IRONIA; 4 CONCLUSÕES; REFERÊNCIAS.

 

SUMMARY: INTRODUCTION; 1 THE OPPOSITION BETWEEN EPISTEMIS AND DOXA; 2 IDEOLOGY AND CHILD LITERATURE; 3 CHILDREN'S LITERATURE AND IRONY; 4 FINAL CONSIDERATIONS; REFERENCES.

 

§ INTRODUÇÃO

 

A denúncia de “ideologização esquerdista” nas instituições escolares foi a principal bandeira do projeto escola sem partido, que postulava um ensino neutro, isento de partidarismos e/ou ideologias. Curiosamente, o projeto foi entusiasticamente apoiado por pessoas e grupos civis e políticos, conservadores à direita da sociedade brasileira, como o candidato à presidência Jair Bolsonaro e o Movimento Brasil Livre.

A hipótese que se levante é que o discurso do ensino livre pressupõe a existência de uma cisão ou corte, marcado pela concepção bivalente entre ciência e ideologia, entre conhecimento científico e senso comum, entre doxa e episteme, cisão sob a qual seria possível distinguir e separar os enunciados objetivos, puros, neutros, científicos, empíricos, e, sobretudo, verdadeiros dos enunciados subjetivos, ilusórios, falsos idealistas, comprometidos com aquela ou esta ideologia. No entanto, é possível sustentar, hoje, essa cisão, sem incorrer em grave e imperdoável negligência filosófica e histórica? Qual o papel da escola nas sociedades modernas, e nas pós-modernas? Como educar sem (tomar) partido? O que os recentes estudos em literatura infantil têm a contribuir para esse debate? E como o ensino jurídico se relaciona com tudo isso?

A partir da técnica de pesquisa bibliográfica, o presente ensaio se utiliza do método hipotético-dedutivo para articular tais questionamentos e, com o objetivo de respondê-los, inicialmente, aponta o desenvolvimento histórico da concepção de episteme e de doxa para demonstrar de que forma foi consolidada a cisão entre elas.

Em seguida, apresenta o conceito de ideologia e de aparelhos ideológicos de Estado (AIE), proposto por Althusser, para identificar essas influências na literatura infantil.

Por fim, expõe o caráter pedagógico da literatura infantil para, através da abordagem proposta por Rorty, alcançar a proposta da pedagogia irônica como um relevante mecanismo de emancipação do indivíduo, seja no ensino básico, seja no ensino jurídico.

 

1          A OPOSIÇÃO EPISTEME E DOXA

 

O termo ideologia foi criado por Destut de Tracy em 1801, para designar uma ciência, a das sensações e das ideias, conforme previa Condillac, contrapondo-se ao empirismo iluminista de Bacon e Hume e filiando-se mais ao idealismo (também iluminista) de Descartes. Ocorre que alguns ideologistas franceses eram hostis a Napoleão e seus projetos, razão pela qual este chamava aqueles de sectários, dogmáticos, “pessoas carecedoras de senso político e, em geral, sem contato com a realidade” (ABBAGNANO, 2007, p. 531), noção depreciativa que destituiu o caráter analítico e/ou científico do termo ideologia e o baniu para o submundo do senso comum, do ilusório, dos enunciados com interesses ocultos.

Também o termo senso comum entra no léxico filosófico no século XVIII como instrumento de combate ideológico em favor da burguesia e contra a tradição do antigo regime: o common sense popular, oposto à autoridade clerical ou real. Entretanto, uma vez concretizado o projeto de ascensão política da burguesia, senso comum passa a designar a opinião, ou o conhecimento superficial e passional, contra o qual as ciências sociais do século XIX se voltarão – mesmo que mantendo com ele uma relação complexa e ambígua (SANTOS, 1989, p. 36-37).

Mas a oposição entre opinião e ciência é muito mais antiga e tem raízes na crítica de Platão aos sofistas. No livro IV da República, Platão, pela voz de Sócrates, apresenta dois planos do real, atribuindo-lhes valores distintos: o sensível, o conhecimento das opiniões, o domínio da doxa; e o inteligível, o conhecimento epistêmico e objetivo, o domínio da episteme, mais valioso para o autor. Os sofistas são acusados de trabalhar apenas sob a doxa, sem gerar conhecimento verdadeiro.

O projeto iluminista, que serviu de sustentáculo para a sociedade moderna, adotou essa divisão e, com o objetivo de livrar os homens do medo e do mundo do feitiço, dissolveu os mitos, anulou a imaginação e fez dos homens senhores da natureza e de si mesmos por meio do saber, lançando mão, para tanto, das medidas de calculabilidade e utilidade que a razão formal-matemática proporcionara. Nesse contexto, conforme destacaram Adorno e Horkheimer

O que não se pode desvanecer em números, e, em última análise, numa unidade, reduz-se, para o iluminismo, a aparência e é desterrado, pelo positivismo moderno, para o domínio da poesia. De Parmênides a Russell, a senha é a unidade. Insiste-se na destruição dos deuses e das qualidades (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 17-22).

O século XVI marcou o início de transformações decorrentes do renascimento e da revolução científica, que mudaram a perspectiva do ser humano ocidental, rejeitando a tradição da Idade Média. O século XVII presenciou o surgimento do empirismo (de Bacon e Hume) e do idealismo (de Descartes), a primeira, fundamentando o status científico através da observação de fatos concretos indutivamente generalizados em enunciados; a segunda considerava conhecimento científico aquele que unificasse todos os tipos de conhecimento em um sistema informado por certeza racionais e independente da empiria. 

A questão da diferença entre conhecimento científico e senso comum ganha novos contornos a partir da revolução científica promovida pelas teses de Einstein e outros cientistas em diversos nichos da ciência no início do século XX. Popper, Kuhn, Lakatos, Feyerabend, Morin, todos esses filósofos da ciência buscaram, a partir da ruptura com o modelo newtoniano de universo, delimitar epísteme e doxa, de modo a fazer progredir a primeira (RODRIGUES; GRUBBA, 2012, p. 308).

Bachelard, por exemplo, critica tanto o idealismo cartesiano quanto o empirismo baconiano. Descartes, para o autor, incorre em negligência filosófica ao pretender que o conhecimento seja direto, imediato e intuído pela razão abstrata nata. De outro lado, critica o projeto empirista, que não ultrapassa a experiência pessoal daquele que investiga. Assim, ambas as vertentes do pensamento científico desembocam no culto à singularidade (RODRIGUES; GRUBBA, 2012, p. 312).

O autor acredita ser possível a formulação de um novo espírito científico (BACHELARD, 1996, p. 7-15), que considera inútil procurar isolar o objeto de análise, na medida em que esta operação o destitui de suas propriedades substanciais. Quando Bachelard diz que “a substância do infinitamente pequeno é contemporânea da relação” (BACHELARD, 2006, p. 17), significa que, ao contrário do que acreditavam Bacon e Descartes, o real não é aquele ente unitário que sobra após sua divisão em quantas partes possíveis. Em última análise, isso significa que as proposições científicas não estão isentas da influência do contexto em que são produzidas e utilizadas, contexto indelimitável por completo para que seja possível sair dele e produzir um conhecimento neutro ou puro ou descontextualizado.

Assim, desde Bachelard, podemos afirmar: não existe uma fronteira estanque que delimite conhecimento científico do senso comum, episteme de doxa, mas existe uma fronteira, traçada pela própria ciência que, delimitando-a, acaba por ultrapassá-la. O que se poderia chamar de fronteira científica é nada menos que “uma zona de pensamentos particularmente ativos, um domínio de assimilação” (BACHELARD, 2006, p. 25). Nesse sentido, toda postulação de um limite absoluto para a ciência decorre de um mal-entendido (BACHELARD, 2006, p. 25).

Ocorre que, conforme afirma Santos, embora a ruptura epistemológica de Bachelard interprete com fidelidade o modelo de racionalidade que subjaz ao paradigma da ciência moderna, também só é compreensível dentro dele, ou seja

a ruptura epistemológica bachelardiana só é compreensível dentro dum paradigma que se constitui contra o senso comum e recusa as orientações para a vida prática que dele decorrem; um paradigma cuja forma de conhecimento procede pela tranformação da relação eu/tu em relação sujeito/objeto, uma relação feita de distância, estranhamento mútuo e de subordinação total do objeto ao sujeito (um objeto sem criatividade nem responsabilidade); um paradigma que pressupõe uma única forma de conhecimento válido, o conhecimento científico, cuja validade reside na objetividade de que decorre toda a separação entre teoria e prática, entre ciência e ética; […] um paradigma que desconfia das aparências e das fachadas e procura a verdade nas costas dos objetos, […] finalmente, um paradigma que produz um discurso que se pretende rigoroso, antiliterário, sem imagens nem metáforas, analogias ou outras figuras da retórica, mas que, com isso, corre o risco de se tornar, mesmo quando falha na pretensão, um discurso desencantado, triste e sem imaginação, incomensurável com os discursos normais, que circulam na sociedade” (SANTOS, 1989, p. 34-35).

Para superar este impasse, precisamos retornar aos gregos. Contrariando seu mestre Platão, Aristóteles, na metafísica, já havia proposto que, em termos de tipos de conhecimento, além da doxa — a opinião ou o senso comum — e a episteme — o conhecimento objetivo e científico — existe uma terceira categoria, a endoxa, que expressa uma doxa, uma opinião, mas uma opinião famosa, de boa reputação, gloriosa, em torno da qual construímos nossas práticas. (BERTI, 1998, p. 25). A endoxa é a matéria sob a qual Aristóteles desenvolve sua tópica, responsável pela reabilitação da retórica no século XX por filósofos como Viewheg e Perelman.

Mas é, sobretudo, a partir do giro ontológico-linguístico na filosofia que a cisão entre doxa e episteme é colocada em xeque. Tanto Wittgenstein quanto Heidegger demonstrou que o conhecimento é determinado previamente de acordo com o horizonte linguístico de quem está interpretando a (sua) situação. O reconhecimento do âmbito hermenêutico da linguagem caracteriza-a por ser especulativa. Gadamer se utiliza da diferença ontológica heideggeriana[3] para descrever como atua a linguagem: as palavras só tem sentido na medida em que se referem a algo, mas este “algo” nunca vem por completo à fala, ao mesmo tempo em que a palavra nunca se esgota referindo-se a uma única “coisa”[4].

O giro ontológico-linguístico, nesse sentido, borra os contornos entre sujeito do conhecimento e objeto a ser conhecido[5], principalmente quando este “objeto” é a própria linguagem: torna-se impossível pretender construir uma metalinguagem, uma linguagem (pura, definitiva, neutra, imparcial, universalmente válida no espaço e tempo) sobre as linguagens. Só podemos produzir novas linguagens, as quais sempre terão as marcas de outras passadas, como os filhos, sobrinhos, primos estão para outros primos, tios e pais. Mais que isso, Heidegger, e depois Gadamer, reabilitam a importância dos pré-conceitos na compreensão humana, desacreditados como fonte de conhecimento a partir da modernidade e sua aversão às tradições vigentes quando da sua eclosão.

Existe uma relação circular inerente a toda compreensão humana, que passou desapercebida por Descartes e aos outros profetas do Iluminismo, presos à visão unilateral do apofântico. Assim como a parte só pode ser compreendida pelo todo, e o todo sempre se encontra em alguma parte na interpretação dos textos – conforme o método de Schleiermacher – apenas somos capazes de ir ao encontro de algo no mundo caso tenhamos alguma pré-compreensão dele. Atente-se que, nesse sentido, o círculo hermenêutico não é uma questão metodológica, mas ontológica, é condição de possibilidade da compreensão.

Os pré-juízos, a doxa, o senso comum, ganham, assim, uma conotação positiva, negligenciada pela ciência moderna. Perfazem nosso ser-no-mundo[6]. Mais que isso, determinam nossas interpretações/conclusões, principalmente quando pelo emprego do método que se acredita apropriado, crê-se limpar a linguagem deles. 

 

2          IDEOLOGIA E LITERATURA INFANTIL

 

Louis Althusser buscou reabilitar a filosofia marxista, que compartilhava do corte epistemológico entre doxa e episteme proposto no projeto iluminista, colocando-a em sintonia com o giro linguístico e as demais ciências sociais emergentes entre as décadas de 60 e 70. Althusser redefine o significado do termo ideologia, mediante a interlocução com a psicanálise freudo-lacaniana, substituindo a concepção “bonapartista” de falsa consciência pela de prática cujo efeito é a materialização da representação da relação imaginária dos indivíduos com suas condições reais de existência (MOTTA; SERRA, 2014, p. 145).

De igual modo, Ricoeur identifica o fenômeno ideológico como aquele que se inicia com a domesticação pela lembrança e conduz ao consenso, no qual se dá a conversão do credo da coletividade. Para o autor, a ideologia, dentro de sua função geral, tem como papel a difusão de uma convicção capaz de converter todo um grupo, de “perpetuar sua energia inicial para além do período da efervescência” (RICOEUR, 1990, p. 68) e, por essa razão, seria uma teoria da motivação social, impulsionada pelo desejo daquele grupo de demonstrar que aquilo que professa tem razão de ser o que é (RICOEUR, 1990, p. 68).

Dessa redefinição, Althusser cria o termo aparelhos ideológicos do Estado (AIE) para designar “um certo número de realidades que se apresentam ao observador imediato sob a forma de instituições distintas e especializadas”, que não se confundem com os aparelhos repressivos do Estado, como a polícia, que atuam pela violência. Os AIE (igrejas, escolas, imprensa, sindicatos, esportes) funcionam mediante a ideologia (ALTHUSSER, 1980, p. 42-46). A função, contudo, permanece a mesma tanto para o aparelho repressivo quanto ao ideológico: assegurar a manutenção das relações de produção exploratórias (ALTHUSSER, 1980, p. 52-54).

No contexto histórico pré-capitalista existia apenas um Aparelho Ideológico do Estado, a igreja, que cumulava com a típica função religiosa as funções escolares e culturais. “Não é por acaso”, afirma Althusser (1980, p. 58-59), “que toda a luta ideológica do século XVI ao século XVIII […] se concentra numa luta anticlerical e antirreligiosa”, isso se dá justamente pela posição dominante da Igreja como aparelho ideológico feudal:

A Revolução Francesa teve antes de mais por objetivo fazer passar o poder de Estado da aristocracia feudal para a burguesia capitalista-comercial, quebrar em parte o antigo aparelho repressivo de Estado e substituí-lo por um novo (ALTHUSSER, 1980, p. 59).

O aparelho ideológico burguês substituto da igreja e a partir de então dominante entre os demais será, afirma Althusser, o aparelho ideológico escolar:

Desde a pré-primária, a Escola toma a seu cargo todas as crianças de todas as classes sociais, e a partir da Pré-Primária, inculca-lhes durante anos, os anos que a criança está mais ‘vulnerável’, entalada entre o aparelho de Estado familiar e o aparelho de Estado Escola, ‘saberes práticos’ […] envolvidos na ideologia dominante (o francês, o cálculo, a história, as ciências, a literatura), ou simplesmente a ideologia dominante no estado puro (moral, instrução cívica, filosofia) (ALTHUSSER, 1980, p. 64).

E a literatura infantil desempenhará um papel fundamental para o AIE escolar. Há uma relação estreita entre o surgimento da literatura infantil, no século XIX, e o processo social contemporâneo que marca a civilização europeia. Ela surge quando as revoluções estruturais da sociedade desencadearam repercussões na arte, presentes até hoje. Particularmente, a literatura infantil vincula-se ao surgimento da família burguesa e de um novo status social dado à infância e da reorganização do ensino. As histórias infantis foram criadas como instrumentos pedagógicos e, sobretudo, ideológicos, na medida em que visam preservar a unidade do lar e o lugar do jovem no meio social (ZILBERMAN, MAGALHÃES, 1982, p. 3-4).

A literatura infantil se vê classificada, assim, sob a ótica do adulto, como não-literatura, sendo lhe imputadas portanto as mesmas qualidades – menoridade, inferioridade – que à criança. O escritor tem que tentar reproduzir a condição mirim para superar a assimetria maioridade-menoridade, e isso interfere no procedimento de escrita (ZILBERMAN, MAGALHÃES, 1982, p. 18-19).

Assim, a criação e utilização original da literatura infantil teve como propósito invadir virtualmente a subjetividade da criança, tornando-se recurso da integração do leitor mirim à existência social burguesa, marcada pelas dicotomias uso/especulação, setor do trabalho/privacidade, atividade comercial/lazer, e pelo individualismo e isolamento (ZILBERMAN, MAGALHÃES, 1982, p. 21).

Os primeiros livros endereçados para crianças – a título de exemplo, The Child’s New Play-thing (1742, Mary Cooper), A Little Pretty Pocket-Book (1744, John Newberry), Simple Susan (1798, Maria Edgeworth), The Story of the Robins (1786, Sarah Trimmer), The History of the Fairchild Family (1818, Mary Martha Sherwood), no cenário internacional; e as Poesias Infantis (1929, Olavo Bilac), Menininha do Nariz Arrebitado (1921, Monteiro Lobato), Cazuza (1938, Viriato Correa), no cenário nacional – surgiram, portanto

no contexto da ascensão da burguesia, na Europa, e estavam repletos de intenções morais e pedagógicas explícitas, pois eram produzidos com o intuito de constituir cidadãos devidamente alfabetizados e alinhados com as necessidades e as visões de mundo daquela sociedade. Para atingir tais objetivos, alguns autores da época mescalvam história e poemas a lições destinadas a ensinar leitura e escrita, incluindo abecedários, além de regras de comportamento e moral (KIRCHOF; BONIN, 2016, p. 24).

Para Althusser, por meio da aprendizagem desses saberes práticos inculcados nas pessoas desde a infância, a classe dominante consolida sua ideologia e garante a reprodução das relações de produção burguesa, relações de exploração:

Os mecanismos que reproduzem este resultado vital para o regime capitalista são naturalmente envolvidos e dissimulados por uma ideologia da Escola universalmente reinante, visto que é uma das formas essenciais da ideologia burguesa dominante: uma ideologia que representa a Escola como um meio neutro, desprovido de ideologia […], em que os mestres, respeitosos da ‘consciência’ e da ‘liberdade’ das crianças que lhes são confiadas (com toda a confiança) pelos ‘pais’ […] os fazem aceder à liberdade à moralidade e à responsabilidade de adultos pelo seu próprio exemplo, pelos conhecimentos, pela literatura e pelas suas virtudes ‘libertadoras’ […] a Escola (e o par Escola-Família) constitui o Aparelho Ideológico de Estado dominante, Aparelho que desempenha um papel determinante na reprodução das relações de produção de um modo de produção ameaçado na sua existência pela luta de classe mundial (ALTHUSSER, 1980, p. 67-68).

É a partir das lições de Althusser que Luis Alberto Warat cunha a expressão senso comum teórico dos juristas, para designar o imaginário construído ao longo do curso de Direito a respeito do que é o direito, o constitucionalismo, os direitos fundamentais, a democracia etc., que comporta quatro funções não estanques apresentadas por Streck: a) uma função normativa: disciplina o comportamento das instituições jurídicas, inclusive a interpretação jurídica; b) uma função ideológica: cristaliza valores e silenciando a história do direito; c) uma função retórica: complementar à função ideológica, o senso comum teórico oferece topos ou argumentos “evidentes por si” que efetivam os valores ideologicamente cristalizados; d) uma função política: reassegura as relações de poder (STRECK, 2017, p. 9).

O senso comum teórico, assim, silenciosamente conforma as perguntas as quais visam responder os juristas[7]. Metaforicamente, Warat caracteriza o senso comum teórico como

a voz off do direito, como uma caravana de ecos legitimadores de um conjunto de crenças, a partir das quais, podemos dispensar o aprofundamento das condições e das relações que tais crenças mitificam (WARAT, 1982, p. 54).

Warat, seguindo a refutação do corte epistemológico, destaca que a racionalidade científica, quando apropriada pelo discurso jurídico, apresenta uma série de opiniões valorativas não questionadas, “que se manifestam de modo latente no discurso, aparentemente controlado pela episteme” (WARAT, 1982, p. 52). Trata-se na verdade

de uma episteme convertida em doxa, pelo programa político das verdades, executado através da práxis jurídica. Nesta ordem de ideias, o saber crítico pode ser definido como uma doxologia, que procuraria o valor político do conhecimento científico do direito, tornando, este, opinião de ofício pela práxis jurídica” (WARAT, 1982, p. 52).

Como romper essa doxa, sem substituí-la por outra, como querem tanto os partidários do politicamente correto, quanto os da escola sem partido?

 

3          LITERATURA INFANTIL e ironia

 

Para superar esse impasse, a função da literatura infantil entra novamente em cena. É que, principalmente a partir do desenvolvimento dos estudos da estética da recepção (ISER, 1999; JAUSS, 1994), a teoria e crítica literária passaram a enfatizar a experiência do leitor em suas observações e, no caso da literatura infantil, a preocupação deixa de ser o que o produtor adulto do texto está pensando e se desloca para o que está experimentando o leitor mirim:

Desde então, ao invés da perspectiva do adulto que pretende ensinar algo, é possível encontrar uma quantidade muito significativa de livros que priorizam o universo e a perspectiva infantis. No lugar de informações utilitárias, conhecimentos escolares e valores morais explícitos, autores contemporâneos têm valorizado a qualidade literária e o lúdico, que podem se manifestar tanto por meio das temáticas abordadas quanto da liberdade para experimentações com o significante linguístico. […] Além disso, questões densas e existenciais como a morte a velhice, entre outras, também são apresentadas na perspectiva infantil, evitando-se respostas fáceis e enredos óbvios (KIRCHOF, BONIN, 2016, p. 25).

Nesse sentido, a literatura infantil é uma ferramenta indispensável no desenvolvimento “cognitivo, linguístico e afetivo das crianças, tornando-se um objeto capaz de servir de janela para vislumbrar um universo que ainda está por se descobrir pelos pequenos” (DOS SANTOS JÚNIOR; DA SILVA, 2015, p. 171) e que lida com dois elementos imprescindíveis para a conquista da compreensão do real: I) uma história que sistematiza as relações presentes na realidade que a criança não pode perceber; e II) uma linguagem, mediadora entre criança e mundo, que amplia o domínio linguístico do receptor, promovendo uma aquisição de saber, e preenche, assim, uma lacuna particular inacessível à escola (ZILBERMAN, MAGALHÃES, 1982, p. 13). Na Europa, livros infantis desse tipo haviam surgido já no século XIX, como Alice no País das Maravilhas (1865), de Carroll, enquanto Monteiro Lobato foi o precursor brasileiro, no início do século XX.

A literatura infantil é, portanto, congenitamente dúplice

de um lado, percebida sob a ótica do adulto, desvela-se sua participação no processo de dominação do jovem, assumindo um caráter pedagógico, por transmitir normas e envolver-se com sua formação moral. De outro, quando se compromete com o interesse da criança, transforma-se num meio de acesso ao real, na medida em que lhe facilita a ordenação de experiências existenciais, através do conhecimento de histórias, e a expansão de seu domínio linguístico (ZILBERMAN, MAGALHÃES, 1982, p. 14).

A duplicidade congênita da literatura infantil de que falam Zilberman e Magalhães nos leva a postular seu caráter interdisciplinar. Nela literatura, pedagogia, psicologia e direito se entrecruzam. De acordo com Ian Ward, é precisamente a natureza interdisciplinar que faz da literatura infantil um assunto particularmente apropriado para o estudo do direito e literatura, afinal, argumenta Ward, todos os seus conterrâneos leram O conto do Peter Rabbit, de Beatrix Potter. Nem todos, entretanto, leram A metafísica dos costumes, de Kant (WARD, 1995, p. 90).

Por outro lado, assinalam Kirchof e Bonin, a escola, o aparelho ideológico estatal dominante na sociedade burguesa segundo Althusser, continuou sendo o lócus privilegiado para o consumo da literatura infantil, mantendo-se, assim, as práticas instrumentais que obliteram sua dimensão artística e literária. Conforme destaca Graça Paulino

o problema está na constituição anti-estética dos cânones escolares da leitura. Os modos escolares de ler literatura nada têm a ver com a experiência artística, mas com objetivos práticos, que passam da morfologia à ortografia sem qualquer mal-estar. Se for perguntado a um incauto mestre que tipo de leitor quer formar, possivelmente a resposta passará por idealizações distantes das práticas culturais concretas (PAULINO, 2010, p. 161).

A grande questão, talvez, não seja se a “escola deve escolarizar a literatura […] mas sim como fazer essa escolarização sem descaracterizá-la, sem transformá-la em um simulacro” que nega – antes de confirmar – seu poder de humanização (COSSON, 2010, p. 23).

Richard Rorty, um dos expoentes da aproximação entre filosofia e literatura na contemporaneidade, postula uma (re)descrição do liberalismo como esperança de que a cultura como um todo possa ser poetizada, antes que racionalizada ou cientificizada, como preconizava o iluminismo oitocentista. Na sua perspectiva, uma filosofia política liberal seria aquela em que o herói não é o guerreiro (empreendedor), nem o sacerdote, nem o lógico e objetivo cientista, mas o poeta irônico (RORTY, 1989, p. 52-53).

Na sua obra mais famosa, A filosofia e o espelho da natureza (1979), Rorty usa do giro ontológico-linguístico acima referenciado para tecer uma vigorosa crítica ao modelo epistemológico de Descartes, Locke e Kant, bem como ao positivismo científico e, em suma, à toda filosofia que se pretenda um conhecimento racional e, por isso, superior aos demais. Nesse contexto, a filosofia é enxergada como

uma teoria geral da representação, uma teoria que dividirá a cultura nas áreas que representem bem a realidade, aquelas que não representam tão bem e aquelas que não a representam de modo algum (apesar da pretensão de fazê-lo) (RORTY, 1994a, p. 20).

A questão é que, desde Wittgenstein, não podemos negar que as palavras que usamos são ligações causais extremamente complexas entre os organismos humanos e o resto do universo. Não há maneira de retalhar essa rede de ligações causais para poder comparar a quantidade relativa de subjetividade e objetividade numa determinada crença. [...] é impossível colocar-se entre a linguagem e o seu objeto, separar a girafa em si de nossa maneira de falar sobre girafas. Segundo o importante pragmatista Hilary Putnan, ‘[...] elementos daquilo que chamamos linguagem ou mente penetram tão profundamente na realidade que o próprio projeto de nos representarmos como ‘mapeadores’ de algo ‘independente da linguagem’ fica, já de início, fatalmente comprometido (RORTY, 1994b, p.127-128).

Às críticas de relativismo ou niilismo, advindas tanto dos libertários à la von Mises e Rothbard quanto dos materialistas históricos à la Marx, Rorty responde que abandonar a ideia de verdade como objetividade à espera de ser descoberta não equivale a afirmar que não existe verdade. É a própria questão “a verdade existe?”, e se acreditamos nela, que parece ser inútil e merecedora de substituição por outras mais interessantes, principalmente ante a constatação da filosofia analítica de que a crença na verdade do que é dito é uma condição de possibilidade de uso da linguagem (RORTY, 2006. p. 75).

Em texto mais recente, Rorty (2006, p. 94) confessa que:

Nós, filósofos que somos acusados de não ter suficiente respeito pela verdade objetiva – aqueles que os materialistas metafísicos gostam de chamar de ‘relativistas pós-modernos’ –, pensamos na objetividade como intersubjetividade.

Rorty propõe uma visão coerentista da verdade, segundo ele, “se você puder obter concordância com outros membros de tal audiência acerca do que se deve fazer, então você não precisa se preocupar com sua relação com a realidade” (RORTY, 2005, p. 124). Jogar vocabulários e culturas uns com os outros, produzindo novas e melhores maneiras de falar/agir, “no sentido em que vêm a parecer claramente melhores que do que as precedentes” (RORTY, 1999, p. 39), em vez de colocá-los em referência a um padrão pré-estabelecido de axiomas (tidos como) verdadeiros, é a proposta da filosofia irônica rortiana (ALMEIDA; VAZ, 2013, p. 262).

Rorty, inscrevendo-se na tradição de pensamento político liberal, divide os liberais entre metafísicos e irônicos. Os primeiros acreditam que uma cultura liberal se centra sob a teoria (econômica), um certo conjunto de proposições absolutamente verdadeiras, instrumento pelo qual o “bom” liberal intelectual defenderia o liberalismo de outras correntes políticas – isso fica muito evidente na maneira como funciona a praxeologia de Mises, deduzindo seus axiomas de outros axiomas indiscutivelmente aceitos, bem como em todo discurso neoliberal, que subtraem direitos fundamentais explicando o por quê segundo a teoria tal ou qual. Esse problema, que também afeta boa parte dos marxistas, pode ser resumido na crença

[...] na existência de algo que represente para a vida humana aquilo que as partículas elementares representam para os quatro elementos – algo que seja a realidade por trás das aparências, a única descrição verdadeira do que está acontecendo, o segredo final” (RORTY, 2006, p. 77).

Já a – isso mesmo, Rorty usa o gênero feminino - liberal irônica, por sua vez, pensa que a cultura liberal se assenta não na teoria (de von Mises ou de Marx), mas na literatura no seu sentido amplo (poemas, romances etc.). O “bom” liberal para ela não é aquele que defende com unhas e dentes um conjunto de axiomas universais e atemporais, mas quem trata estes axiomas como mais um texto, a ser compreendido e (re)interpretado. Seu liberalismo, ao contrário do libertarianismo tradicional, não consiste na sua devoção a estas (meras) proposições, mas na capacidade de compreender tantas proposições diferentes forem possíveis. Tal distinção, afirma Rorty, não ajuda só a explicar porque a filosofia não fez, e nem fará, muito pela liberdade e pela igualdade, mas também demonstra porque a literatura – neste sentido amplo – fez e faz muito por elas.

O que torna alguém liberal não é a adoção incondicional, portanto, dos axiomas de Smith, de Marx, de von Mises-Rothbard, mas a consideração de que a crueldade – causar dor desnecessária ao outro – é a pior coisa que podemos fazer (RORTY, 1989, p. XV), e a dor é não-linguística – a característica que nos vincula aos seres destituídos de linguagem. Nesse sentido, não existe voz do oprimido, porque a opressão envolve justamente o silenciamento, a linguagem das vítimas não existe mais, e o trabalho de recolocá-las na linguagem terá de ser feito por alguém: a poetiza ou a jornalista liberal irônica é boa nisso, o teórico-metafísico não (RORTY, 1989, p. 93-94).

A literatura, nesta tarefa, é mais uma ferramenta, ao lado da filosofia, religião, ciência, não a única ou a melhor. Não se trata de destruir o altar que a modernidade ergueu para a ciência e construir um semelhante para a literatura. Nem a filosofia, nem a ciência, nem a literatura, nem qualquer crítica à ideologia, são imprescindíveis para ultrapassar nossas crises sociais e econômicas, por vezes tão evidentes que descartam a necessidade de qualquer teoria ou romance que as denuncie (RORTY, 1999, p. 215-217).

Assim, Rorty prefere não construir para a literatura (ou para qualquer outra disciplina) um altar elevado, mas, antes, fomentar muitas galerias de pintura, exposições de livros, museus de ciência e tecnologia, enfim, muitas opções culturais. Trata-se, segundo ele, de uma exigência das sociedades pluralistas e democráticas (1999, p. 212-213). Conforme Almeida e Vaz,

a utopia liberal rortiana parece inspirar, mais do que ceticismo, um inveterado otimismo político e um não fundamentado, mas vital e crescente sentido de esperança em uma sociedade mais justa, igualitária, tolerante e inclusiva. Não vemos nada na filosofia de Rorty que não inspire isso; não há nada que sugira que o sofrimento e a miséria sejam irremediáveis e que a crítica seja impossível. Não surpreende que ele próprio denomine a esquerda a que se filia de ‘partido da esperança’, que deve fomentar a imaginação com vistas a inventar soluções para resolver os problemas que enfrentamos no dia a dia. Apenas podemos chegar a diagnóstico contrário a esse, ou seja, de ceticismo político, na medida em que ‘escapulimos’ dos textos rortianos e passamos a ler seu esquerdismo reformista e pragmático como os representantes da pedagogia marxista leem a si próprios, mas no sentido inverso, quer dizer, como revolucionários e radicais, mais próximos à verdade redentora do que os demais. (ALMEIDA; VAZ, 2013, p. 266).

§ CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

A partir deste breve ensaio, conclui-se que não é possível sustentar uma oposição absoluta entre epísteme e doxa, entre conhecimento objetivo e senso comum ou ideologia. A filosofia, desde o giro ontológico-linguístico, não pode mais ser compreendida como uma teoria racional da representação da verdade sem incorrer em evidente ingenuidade, tampouco postular um caráter neutro ao discurso científico. Um conjunto de crenças e pré-concepções, inculcados em nós desde o ensino primário pelo aparelho ideológico escolar, dirige nosso falar e agir. No âmbito do ensino jurídico, esse inculcamento produz e reproduz o sentido comum teórico dos juristas.

A literatura infantil desempenha um papel fundamental na produção desse(s) sentido(s) comun(s) teórico(s). Sob a ótica da produção, a literatura infantil nasceu com propósitos pedagógico-moralizantes, como recurso ideológico de integração do leitor mirim à existência social burguesa, marcada pelas dicotomias uso/especulação, setor do trabalho/privacidade, atividade comercial/lazer, e pelo individualismo e isolamento.

Esses valores introjetados desde os nossos primeiros anos serão ratificados e fortificados no ensino universitário do direito, que se assenta sob as necessidades de manutenção da mesma sociedade burguesa-capitalista-individualista da qual surgiu da literatura infantil, através do que podemos chamar, inspirados em Aristóteles, de endoxas jurídicas: conjunto de proposições que não passam de opinião mas são tratadas pelos juristas com reverência científica – o próprio sentido comum teórico, cujas bases foram construídas primordialmente pela literatura infantil.

Mas, além de educar, moralizar, ou introjetar a ideologia burguesa nas crianças e, assim construir os primeiros alicerces das endoxas jurídicas, a literatura infantil – observada a partir da ótica da recepção, cujo foco está na experiência do leitor mirim ante o texto – permite o ampliamento da capacidade linguística da criança, transformando-se, na medida em que facilita a ordenação de experiências existenciais, em meio de acesso ao real. Essa duplicidade congênita da literatura infantil a torna tema evidentemente interdisciplinar e, logo, objeto de muito interesse para o movimento direito e literatura.

Quando se fala em acessar o real, precisamos deixar claro como o presente estudo busca fazer a partir da filosofia de Rorty – que não se trata da criança descobrindo uma verdade objetiva e neutra à sua espera. Não há como reconhecer enunciados que espelhem a natureza das coisas após o giro ontológico-linguístico; a pretensão metafísica de determinar um vocabulaŕio final sobre o mundo é inútil e desinteressante sob o ponto de vista irônico-pragmático que se adota.

Uma pedagogia irônica, na linguagem de Rorty, prefere substituir a questão o que é a verdade pela indagação quantas verdades existem e como a partir delas poderíamos construir novas maneiras de falar sobre elas. Nessa perspectiva, os reclames da escola sem partido, bem como o projeto do politicamente correto, perdem todo o sentido.

Sob o ponto de vista irônico-pragmático, a pedagogia encontra no potencial dúplice e, na estrutura interdisciplinar da literatura infantil, uma poderosa e emancipatória ferramenta de ensino. A leitura de O capital para crianças (Rivera e Fortuny, 2018) é bem-vinda nas escolas, assim como seria bem-vinda a leitura de um Praxeologia para crianças – em que se colocaria a teoria da ação humana de von Mises sob uma linguagem acessível ao público infantil. Desse modo, o que importa mesmo é que o adulto que se porte como transmissor autorizado do conhecimento e ensine a ver tais obras de modo irônico, e não canônico. Despertar o senso irônico nas crianças talvez seja o melhor meio de produzir um ensino sem partido – ou com todos os partidos, e a literatura é muito boa nisso.

No ensino jurídico, sobretudo ante a moda contemporânea dos manuais facilitados, simplificados, esquematizados - isto é, destinados a reduzir a complexidade das questões jurídicas a uma linguagem acessível aos graduandos e concursandos - a literatura infantil ganha relevância por ainda permitir um amplo debate e reflexão a respeito de complexos temas jurídico-políticos, revolvendo assim o sentido comum teórico dos juristas, e o fazendo através de uma linguagem mais fácil que a dos próprios manuais.

 

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Informações adicionais e declarações dos autores

(integridade científica)

 

Declaração de conflito de interesses (conflict of interest declaration): o autor confirma que não há conflitos de interesse na realização das pesquisas expostas e na redação deste artigo.

 

Declaração de autoria e especificação das contribuições (declaration of authorship): todas e somente as pessoas que atendem os requisitos de autoria deste artigo estão listadas como autores; todos os coautores se responsabilizam integralmente por este trabalho em sua totalidade.

 

·      Guilherme Gonçalves Alcântra: projeto e esboço inicial (conceptualization), desenvolvimento da metodologia (methodology), levantamento bibliográfico (investigation), revisão bibliográfica (investigation), redação (writing – original draft), participação ativa nas discussões dos resultados (validation), revisão crítica com contribuições substanciais (writing – review and editing), aprovação da versão final (indicar somente o que se aplica ao caso).

 

·      Aline Mariane Ladeia Silva: redação (writing – original draft), participação ativa nas discussões dos resultados (validation), revisão crítica com contribuições substanciais (writing – review and editing), revisão e aprovação da versão final.

 

Declaração de ineditismo e originalidade (declaration of originality): o autor assegura que o texto aqui publicado não foi divulgado anteriormente em outro meio e que futura republicação somente se realizará com a indicação expressa da referência desta publicação original; também atesta que não há plágio de terceiros ou autoplágio.

 

 

Dados do processo editorial

· Recebido em: 17/10/2020

· Controle preliminar e verificação de plágio: 18/10/2020

· Avaliação 1: 25/10/2020

· Avaliação 2: 26/11/2020

· Decisão editorial preliminar: 26/11/2020

· Retorno rodada de correções: 11/12/2020

· Decisão editorial final: 11/12/2020

· Publicação: 14/12/2020

Equipe editorial envolvida

·  Editor-Chefe: FQP

·  Assistente-Editorial: MR

·  Revisores: 02

COMO CITAR ESTE ARTIGO

ALCÂNTARA, Guilherme Gonçalves; SILVA, Aline Mariane Ladeia. Literatura infantil e ideologia: da Escola sem Partido à pedagogia da ironia. Revista de Direito da Faculdade Guanambi, Guanambi, v. 7, n. 02, e305, jul./dez. 2020. doi: https://doi.org/10.29293/rdfg.v7i02.305. Disponível em: http://revistas.faculdadeguanambi.edu.br/index.php/Revistadedireito/article/view/305. Acesso em: dia mês. ano.



* Editor: Prof. Dr. Flávio Quinaud Pedron. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4259444603254002. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4804-2886.

[1] Mestre em Fundamentos e Efetividade do Direito pelo programa de pós-graduação stricto sensu do Centro Universitário Uni-FG. Docente no Centro Universitário UniFG. Integrante do grupo de pesquisa 'Ser-Tão - Núcleo Baiano de Direito e Literatura' e do grupo de pesquisa em Ética, autonomia e fundamentos do Direito. Ex-Bolsista CAPES-PROSUP. Advogado. Lattes: http://lattes.cnpq.br/3545235149164538. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2210-1270.

[2] Mestranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação Strictu Sensu do Centro Universitário UniFG. Bolsista de pesquisa pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia - FAPESB. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Cultura, Arte, Direito, Informação e Sociedade – CADIS e 'Ser-Tão - Núcleo Baiano de Direito e Literatura'. Pós-graduada em Direito Público. Advogada. Lattes: http://lattes.cnpq.br/8420344485240954. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6451-5826.

[3] “[diferença ontológica] diferença do ser em relação a todo ente. É extremamente obscuro o que isso deve significar. Nenhum homem sabe no fundo o que o conceito “o ser” designa, e, apesar disso, nós todos temos uma primeira pré-compreensão ao ouvirmos a palavra “ser” e compreendermos que aqui o ser, que cabe a todo ente, é elevado desde então ao nível do conceito. Com isso, ele é diferenciado de todo ente. É isso que significa inicialmente a ‘diferença ontológica’. [...] ‘Essa distinção não é de modo algum feita por nós’” (GADAMER, 2012, p. 70).

[4] “O ser é o mais pronunciado [...] Mas o mais pronunciado é, ao mesmo tempo, o mais silenciado, no sentido primeiro do que silencia sua essência e talvez mesmo seja silêncio” (HEIDEGGER, 1961, p. 253 apud STEIN, 2002, p. 153).

[5] “A ideia de que não conhecemos do real senão o que nele introduzimos, ou seja, que não conhecemos do real senão a nossa intervenção nele, está bem expressa no princípio da incerteza de Heisenberg: não se podem reduzir simultaneamente os erros da medição da velocidade e da posição das partículas; o que for feito para reduzir o erro de uma das medições aumenta o erro da outra. […] a demonstração da interferência estrutural do sujeito no objecto observado, tem implicações de vulto. […] a distinção sujeito/objecto é muito mais complexa do que à primeira vista pode parecer. A distinção perde seus contornos dicotômicos e forma um continuum” (SANTOS, 2011, p. 69).

[6] “[hermenêutica da facticidade] Uma tal hermenêutica não segue manifestamente a curiosidade ávida por ordem, a curiosidade com a qual o sistema da filosofia é ensinado nas cátedras. Trata-se à sua maneira de uma outra compreensão – trata-se daquilo que a própria vida dá a entender. A hermenêutica da facticidade encontra-se diante do enigma de o ser-aí jogado no aí interpretar a si mesmo, de ele projetar a si mesmo em vista de possibilidades, em vista do que advém e do que vem ao seu encontro. […] Todo ser-aí compreende-se a partir de seu mundo circundante e de sua vida cotidiana, articulando-se na forma linguística em que se movimenta. Nessa medida, sempre há encobrimentos por toda parte – e sempre há também destruição de encobrimentos” (GADAMER, 2012, p. 75).

[7] Nas palavras de Espindola e Seeger (2019), “o senso  comum   teórico dos   juristas,   de   maneira   geral,   designa condições  implícitas  de  produção,  circulação  e  consumo  de  verdades  nas diferentes  práticas  do  direito”.