Liberdade de expressão, democracia e cultura do cancelamento

Freedom of expression, democracy and cancel culture

 

 

Bruno Camilloto[1]

Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) – Ouro Preto/MG

[email protected]

 

Pedro Urashima[2]

Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) – Ouro Preto/MG

[email protected]

 

Resumo: O presente artigo trata da cultura do cancelamento como resposta a opiniões sobre produções culturais contemporâneas. Busca-se responder a seguinte pergunta-problema: a cultura do cancelamento é compatível com a liberdade de expressão?  O objetivo é defender que a cultura do cancelamento pressupõe uma concepção normativa de cidadania democrática, segundo a qual o povo só é livre se for capaz de contestar seus arranjos políticos e sociais. Para tanto, define-se como objetivos específicos: 1) delimitar o que se entende por cultura do cancelamento; 2) explicitar a partir das premissas de NY Times vs Sullivan uma concepção de cidadania democrática que dê suporte à cultura do cancelamento 3) argumentar que um ideal de tolerância decorre das próprias premissas que possibilitam a existência da cultura do cancelamento. Uma delimitação inicial do que se entende por cultura do cancelamento é feita a partir da conceituação proposta por Wilson Gomes (2020). Para compreender os fundamentos democráticos da liberdade de expressão e suas conexões com os aspectos deliberativos da esfera pública, adota-se como marco teórico proponentes da democracia deliberativa, como Robert C. Post e Denilson Werle. Assim, a investigação é jurídico-teórica, de caráter analítico e normativo, e sua metodologia consiste na análise de blocos de conteúdo por meio da argumentação.

Palavras-chave: Cultura do cancelamento. Liberdade de expressão. Democracia.

Abstract: The present paper addresses cancel culture as an answer to opinions about contemporary cultural productions. It aims to respond the following question: Is cancel culture compatible with freedom of expression? The goal is to defend that cancel culture assumes a normative conception of democratic citizenship, according to which the people is only free if it is able to question its political and social arrangements. In order to do that, this work have as specific goals: 1) to circumscribe what is meant by cancel culture; 2) to make explicit drawing on NY Times vs Sullivan premises a conception of democratic citizenship that supports cancel culture; 3) to argue that an ideal of tolerance is implied by the same premises which enable the existence of cancel culture. An Initial circumscription of what is understood as cancel culture relies on the concept proposed by Wilson Gomes (2020). To understand the democratic foundations of freedom of speech and its connections with deliberative features of public sphere, proponents of deliberative democracy, such as Robert C. Post and Denilson Werle, are adopted as references.  Thus, the inquiry is legal-theoretical, analytic and normative, and its methodology consists in analysis of content blocks through arguments.

Keywords: Cancel culture. Freedom of expression. Democracy.

 

SUMÁRIO: INTRODUÇÃO; 1 A CULTURA DO CANCELAMENTO: CONTORNO DO PROBLEMA; 2 A CULTURA DO CANCELAMENTO E A LIBERDADE DE EXPRESSÃO SÃO COMPATÍVEIS?; 2.1 Como justificar a liberdade de expressão?; 2.2 NY Times vs Sullivan (1964): a contribuição democrática da livre expressão; 2.3 Democracia e opinião pública; 3 CIDADANIA DEMOCRÁTICA E CULTURA DO CANCELAMENTO NA ESFERA PÚBLICA: CRÍTICA À INTOLERÂNCIA; CONSIDERAÇÕES FINAIS; REFERÊNCIAS.

 

SUMMARY: INTRODUCTION; 1 THE CANCELLATION CULTURE: PROBLEM OUTLINE; 2 ARE THE CANCELLATION CULTURE AND FREEDOM OF EXPRESSION COMPATIBLE?; 2.1 How to justify freedom of expression? 2.2 NY Times vs Sullivan (1964): the democratic contribution of free expression; 2.3 Democracy and public opinion; 3 DEMOCRATIC CITIZENSHIP AND CANCELLATION CULTURE IN THE PUBLIC SPHERE: CRITICISM TO INTOLERANCE; FINAL CONSIDERATIONS; REFERENCES.

 

§ Introdução

 

O esforço conceitual de analisar o uso da linguagem em diferentes contextos é parte necessária no processo de identificação dos sentidos normativos que aquele uso adquire diante de contextos sociais reais (síncronos, assíncronos, presenciais ou virtuais). O uso da linguagem possui um sentido performativo capaz de produzir efeitos concretos na vida das pessoas. Esse esforço torna-se uma tarefa ainda mais complexa diante de uma sociedade plural que elege a liberdade de expressão como um dos princípios normativos de convivência social.

Se, por um lado, o processo de comunicação social em sociedades plurais já é algo, por si só, complexo, por outro, esse processo ganha mais uma camada de complexidade diante de um quadro de polarização política que atinge tanto a esfera pública quanto dimensões da esfera privada. No contexto do pluralismo social, as categorias que decorrem da mobilização hermenêutica dos conceitos podem ser ignoradas ou mal-usadas como mera racionalização das intenções censoras de um grupo social que se encontra em disputa por algum conceito ou sentido normativo no interior da sociedade.

Como exercício de diagnóstico de época, é possível falar que na cultura política contemporânea uma nova ideia foi adicionada ao vocabulário: cultura do cancelamento.[3] Para os fins do presente artigo, o foco será no cancelamento como resposta a opiniões sobre produções culturais contemporâneas. O artigo buscará responder à seguinte pergunta-problema: a cultura do cancelamento é compatível com a liberdade de expressão? 

Duas situações célebres e recentes serão o ponto de partida para a análise conceitual: a primeira foi a publicação de ‘Uma carta sobre justiça e debate aberto’ e a réplica a ela em ‘Uma carta mais específica sobre justiça e debate aberto’.[4] A segunda foi a controvérsia sobre o artigo de opinião ‘Filme de Beyoncé erra ao glamorizar negritude com estampa de oncinha’, escrito por Lilia Schwarcz.

No dia 7 de julho de 2020, mais de 150 artistas, escritores e intelectuais assinaram um texto chamado ‘Uma carta sobre justiça e debate aberto’, publicado na Harper Magazine, demonstrando sua preocupação com o “[...] o conjunto de atitudes morais e engajamentos políticos que tendem a enfraquecer nossas normas de debate aberto e tolerância de diferenças, em favor da conformidade ideológica”, produto daquilo que viram como causas corretas contra a violência policial e pela igualdade (FOLHA DE SÃO PAULO, 2020). Esse conjunto de práticas seria produto de “[...] uma intolerância a visões opostas, uma propensão a humilhar publicamente e submetê-las ao ostracismo, a tendência a dissolver questões políticas complexas em uma certeza moral ofuscante” (FOLHA DE SÃO PAULO, 2020).

Segundo os autores da carta, esse contexto social se agrava, pois os chamados por represálias imediatas e severas a discursos e pensamentos interpretados como transgressivos vêm sendo acolhidos por líderes institucionais. Citam como exemplos:

Editores são demitidos por publicar artigos controversos; livros são tirados de circulação por suposta inautenticidade; jornalistas são impedidos de escrever sobre certos temas; professores universitários são investigados por citar obras de literatura em sala de aula; um pesquisador é demitido por circular um estudo acadêmico revisto por pares; e diretores de organizações são afastados por iniciativas que, em alguns casos, não passaram de equívocos imprudentes (ACKERMAN et al, 2020).[5]

Os autores da carta concluem: “Sejam quais forem os argumentos apresentados em torno de cada incidente em particular, o resultado vem sendo o estreitamento constante dos limites do que pode ser dito sem ameaças de represália” (FOLHA DE SÃO PAULO, 2020). Em resposta, três dias depois foi publicada ‘Uma carta mais específica sobre justiça e debate aberto’, que reconhecia a gravidade dos problemas destacados, mas, ao mesmo tempo, pontuava: os exemplos citados não são tendências e não há no primeiro texto prova do contrário. Para sustentar essa afirmação, criticam o argumento da carta da Harper magazine por pretender aludir a exemplos específicos, mas sem apresentá-los claramente. Parte significativa da réplica é dedicada a tentar identificar os episódios aludidos e mostrar que eles não são problemáticos.

O importante aqui é: os autores desse segundo texto salientam que a falta de clareza dos exemplos demonstra que “Sob a aparência de liberdade de expressão e do livre intercâmbio de ideias, a carta parece estar pedindo liberdade irrestrita para os signatários defenderem seus pontos de vista, livres de consequências ou críticas” (FOLHA DE SÃO PAULO, 2020). Mas a resposta não se limita a pontuar que as preocupações dos autores de ‘Uma carta sobre justiça e debate aberto’ não se confirmam, ela vai além ao dizer que os autores do referido texto negligenciam que os problemas que lhes motivaram a escrever são, de modo geral, raros para escritores privilegiados, enquanto são uma constante para as vozes frequentemente não ouvidas. Assim, se a preocupação fosse com o livre intercâmbio de informação e ideias, concluem, seria necessário reconhecer a existência de uma cultura de medo e silenciamento das vozes daqueles que não são brancos, ricos e dotados de plataformas enormes (FOLHA DE SÃO PAULO, 2020).

Em síntese, as posições do debate são: de um lado, argumenta-se que há atualmente o estreitamento constante dos limites do que pode ser dito sem ameaças de represália. E, continua o argumento, esse cenário deve preocupar, pois o livre intercâmbio de informação e ideias é força vital de uma sociedade liberal-democrática. De outro lado, defende-se que a definição dos limites do que pode ser dito sem ameaças de represália é objeto de discussão do debate público. Logo, não é válido concluir que qualquer estreitamento do que pode ser dito é ilegítimo, sob pena de se inviabilizar a crítica. Em outras palavras, é necessário demonstrar que as represálias a manifestações são incompatíveis com os pressupostos da livre discussão. O argumento conclui pontuando que a desigualdade de oportunidades de participar do debate público é incompatível com os pressupostos da livre discussão.[6]

No dia 2 de agosto de 2020, Lilia Schwarcz (2020) publicou seu artigo de opinião Filme de Beyoncé erra ao glamorizar negritude com estampa de oncinha, no qual faz uma resenha do álbum visual de Beyoncé, Black Is King. Segundo a antropóloga, a narrativa do álbum é uma releitura de Hamlet. O clássico shakespeariano é resumido por ela da seguinte forma: “O Hamlet de Shakespeare se passa na Dinamarca e conta a história do príncipe que tem como missão vingar a morte de seu pai, o rei, executado pelo próprio irmão, Cláudio. Traição, incesto e loucura são temas fortes da trama e da própria humanidade, de uma forma geral.” (SCHWARCZ, 2020).

Em seguida, a autora pontua que o filme O Rei Leão é uma releitura célebre do enredo citado, que o situou no continente africano e modificou a tensão entre pai e filho ao colocar o filho Simba, herdeiro do trono, como o pivô involuntário da morte de seu pai e de um golpe de Estado, após desobediência instada por seu irmão invejoso. Ela comenta: “O tema retoma a culpa edipiana do filho que, não conseguindo vingar ou salvar o pai, perde seu prumo na vida e esquece sua história.” (SCHWARCZ, 2020). A cantora “[...] evoca mais uma vez a tragédia de Hamlet, mas inverte a mão da narrativa. Simba vira um menino negro que procura por suas raízes para conseguir sobreviver no mundo racista americano de 2020.” (SCHWARCZ, 2020). Representa-se agora a loucura como a alienação de dar as costas ao passado e a traição como não ter orgulho da ancestralidade africana. Ao fim, quer-se combater os males do esquecimento com o resgate daquilo que foi pretensamente apagado pelo trauma colonial.

Após a reconstrução da obra, a antropóloga comenta: “Não há como negar as qualidades de ‘Black Is King’. Mas, [...] causa estranheza [...] que a cantora recorra a imagens tão estereotipadas e crie uma África caricata e perdida no tempo das savanas isoladas.” (SCHWARCZ, 2020). Essa visão da cultura africana seria, na sua opinião, antitética ao questionamento do sentido único e Ocidental da história. O texto conclui: “Quem sabe seja hora de Beyoncé sair um pouco da sua sala de jantar e deixar a história começar outra vez, e em outro sentido.” (SCHWARCZ, 2020). O artigo de opinião em questão foi alvo de severas críticas nas redes sociais, sendo criticado, inclusive, por quem dizia concordar com o conteúdo do texto. Seu defeito seria anterior ao próprio conteúdo: a ilegitimidade da autora para falar de representações da comunidade negra, já que se trata de uma mulher branca.

Em síntese, duas posições podem ser identificadas: de um lado, defende-se que o pertencimento a um grupo não é condição suficiente nem necessária para ser capaz de falar sobre esse grupo. Para tanto, outros predicados como formação acadêmica e/ou empatia bastariam (GOMES, 2020). Por outro lado, pontua-se que o contexto social é fundamental para a qualidade da expressão. Sendo assim, prossegue o argumento, quem está em determinado contexto social não consegue ir além dos limites dessa situação, o que torna questionável tentar analisar questões que estariam fora desse contexto.[7] Novamente, a definição dos limites do que pode ser dito sem ameaças de represália é objeto de discussão do debate público: quem pode falar o que contra quem.[8]

Diante do problema proposto e do contexto fático apresentado, a hipótese a ser defendida é: a cultura do cancelamento pressupõe uma concepção normativa de cidadania democrática dependente de um ideal de tolerância. Temos, portanto, como objetivo principal defender que a cultura do cancelamento pressupõe uma concepção normativa de cidadania democrática, segundo a qual o povo só é livre se for capaz de contestar seus arranjos políticos e sociais.

Ao contrário do que os críticos da cultura do cancelamento afirmam em ‘Uma carta sobre justiça e debate aberto’, sustentamos que o argumento acima enunciado é tanto compatível quanto necessário à liberdade de expressão.[9] Contudo, reconhecemos que essa disposição cidadã para contestar seus arranjos políticos e sociais pode ser convertida em reações hostis que configuram intolerância. Nesse caso, comprometidos com as premissas democráticas assumidas, propomos que o argumento exige um ideal de tolerância entre particulares enquanto participantes do debate público.

Nestes termos, são objetivos específicos do artigo: 1) delimitar o que se entende por cultura do cancelamento e quais são seus elementos relevantes para a discussão da liberdade de expressão; 2) explicitar uma concepção de cidadania democrática que dê suporte à cultura do cancelamento a partir do resgate das premissas do leading case fundamental para a consolidação jurídica de uma cultura democrática contestatória nos Estados Unidos: New York Times vs Sullivan (1964). A escolha do caso não impede a análise do contexto brasileiro, pois ainda é possível reconstruir os padrões que orientam o conceito de cidadania pressupostos na cultura do cancelamento. Por fim, adota-se também como objetivo específico 3) argumentar que um ideal de tolerância decorre das próprias premissas que possibilitam a existência da cultura do cancelamento, destacando sua importância para que a prática não incorra nos riscos alertados por seus críticos. Isto é, para que a prática não signifique intolerância a visões opostas, motivada pela tendência de dissolver questões políticas complexas em uma certeza moral ofuscante.

A delimitação inicial do que se entende por cultura do cancelamento é feita a partir da conceituação proposta por Wilson Gomes (2020). Para compreender o contexto teórico em relação aos pressupostos democráticos da liberdade de expressão, são adotados a perspectiva da liberdade de expressão apresentada por Robert Post (1995) e os aspectos deliberativos da esfera pública e do ideal de tolerância de Denilson Luis Werle (2013). Os marcos teóricos utilizados articulados são coerentes e complementares, uma vez que são teorias dedicadas a elaborar um ideal de cidadania democrática que dá centralidade à exposição de razões e ao debate público (democracia deliberativa). Dessa forma, a escolha dos marcos teóricos citados caracteriza a investigação proposta como jurídico-teórica, de caráter analítico e normativo, e sua metodologia consiste na análise de blocos de conteúdo por meio da argumentação.[10]

 

1          A cultura do cancelamento: contornos do problema

 

Seres humanos são seres de práticas sociais e usuários de conceitos (BRANDOM,1994). É dentro de uma prática linguística e social que surge a possibilidade de construção de sentidos (substantivos, estéticos, normativos, etc.) para os seres humanos. Usuário de conceitos é um atributo que caracteriza os seres humanos, isto é, um ser que consegue dar sentidos e usar conceitos em suas práticas de interação com outros seres humanos. Para Brandom (1994), essa é a dimensão da sapiência. Como os conceitos são usados em prática sociais, temos que

A prática social é descrita como as manifestações das interações sociais pressupondo uma estrutura normativa implícita, que deve ser explicitada pelo jogo de dar e pedir razões. Os conceitos, nesse contexto, são usados a partir de seus conteúdos articulados por inferências materiais reivindicando uma pretensão de correção. (CAMILLOTO, 2016, p. 112).

A cultura do cancelamento pode ser considerada como uma utilização de conceitos nos jogos de linguagem jogados no interior de alguma prática social cujos conteúdos reivindicam alguma pretensão de correção. E, ainda mais preciso, “A cultura do cancelamento pode ser entendida como um acerto público de contas e um pedido de ajustamento de condutas em relação à alguma transgressão social que não passou por um controle adequado nos canais tradicionais.” (RODRIGUES, 2020). Nesse contexto, a cultura do cancelamento é uma prática social atual possibilitada (e potencializada) a partir do uso da tecnologia de comunicação digital, especialmente partir do uso das interações humanas conhecidas como redes sociais.

Para o linchamento e o cancelamento digitais se requer, em primeiro lugar, um grupo de pessoas que estejam unidas em torno de algum sentido normativo específico. Essa vinculação pode se dar por critérios identitários (cor, etnia, gênero, orientação sexual, posição política), isto é, motivadas pela percepção de que todos estão identificados entre si por algum aspecto essencial da sua própria persona social, ou por critérios circunstanciais que em determinado contexto social fazem a convergência dos indivíduos no movimento de cancelar algo ou alguém (GOMES, 2020). Nos dois casos, o cancelamento se revela como uma ação na qual há convenções e normas que regem a interação entre seus membros e que servem de referência para avaliar terceiros.

Em segundo lugar, há uma dimensão moral já que o cancelamento é resposta à não-observância de alguma norma tida por um grupo identitário como fundamental para atendermos ao respeito às obrigações recíprocas, isto é, àquilo que devemos uns aos outros em sociedade. O grupo que ‘cancela’ parte da premissa de que, pelo menos naquele ato/momento específico, é moralmente superior a quem ou ao que está sendo cancelado (GOMES, 2020). Vale mencionar que o cancelamento se dirige a pessoas ou instituições com visibilidade e importância social e que pareciam vinculadas ou simpatizantes de uma determinada pauta social.

Em síntese, a dinâmica é a seguinte: um indivíduo vê algo (uma ação, manifestação ou acontecimento) que considera em desacordo com as normas do grupo ao qual se filia. Em seguida, uma voz autorizativa, por exemplo, um membro notório capaz de determinar e reforçar as convenções que regem o grupo, acionará sua rede, composta por pessoas que compartilham as suas crenças, para a exposição do ‘infrator’ ou para constrangê-lo publicamente (GOMES, 2020).

Um elemento fundamental dessa prática é que a resposta ao comportamento ou ação reprovável tem por objetivo retirar a influência de quem está sendo avaliado tanto nas redes sociais quanto para além delas (DOUTHAT, 2020). Isso é feito, principalmente, por boicotes ou pressão pela adoção de medidas disciplinares (ROMANO, 2019).

 

2          A cultura do cancelamento e a liberdade de expressão são compatíveis?

 

Como dito, a hipótese do presente artigo está consignada no seguinte argumento: a cultura do cancelamento pressupõe uma concepção normativa de cidadania democrática dependente de um ideal de tolerância. Esse argumento também pressupõe um ambiente social que esteja comprometido com o pluralismo de ideias ancorado na compreensão normativa da liberdade de expressão nos marcos do liberalismo político. Desta forma, parte-se da compreensão de que a liberdade é condição de possibilidade do pluralismo nas sociedades contemporâneas (CAMILLOTO, 2019).

Tendo a conceituação elaborada, pode-se negar que haja qualquer relação entre cultura do cancelamento e liberdade de expressão. Osita Nwanevu, em seu texto The Willful Blindness of Reactionary Liberalism (2020), nega que haja relação entre os conceitos. Nesse sentido, desenvolve o seguinte argumento:

De uma forma geral, o ideal liberal é uma sociedade diversa, plural de pessoas autônomas guiadas pela razão e tolerância. O sonho é a coexistência harmônica. Mas [em razão da importância da tolerância para a organização social proposta] o liberalismo também acaba sendo excelente em gerar dissenso [...] (NWANEVU, 2020).

Dito isso, a autora prossegue pontuando que a controvérsia sobre a cultura do cancelamento não decorre da oposição entre liberalismo e uma nova doutrina política pautada no progressismo identitário, mas decorre da ênfase distinta que os polos do debate dão a duas liberdades: liberdade de expressão e associação. Para Nwanevu (2020), os críticos da cultura do cancelamento negligenciam a última. Quando se nega a um palestrante a oportunidade de falar em uma universidade ou uma revista decide que determinado texto não está de acordo com seu editorial, não há violação de direitos.[11] Limita-se, assim, não apenas a divulgação de figuras públicas com visões controversas, mas também as oportunidades que grande parte da população tem de divulgar suas opiniões. Defender que isso não ocorra implica subverter o princípio de que grupos em uma sociedade liberal possuem o direito de ser comprometer com valores dos quais muitos discordam e decidir com base neles. Ninguém possui, portanto, o direito de ser aprovado por todos. Em síntese, defender que instituições não-estatais têm uma obrigação de serem amplamente permissivas com ideias divergentes é que seria intolerante (NWANEVU, 2020).

O argumento exposto é convincente.[12] A partir dele a resposta à carta da Harper Magazine soa correta quando diz que a perda de suporte social, quando ocorre como resultado do cancelamento, acaba sendo consequência das opiniões emitidas e, assim, na leitura dos críticos à carta, simples resultado do exercício da liberdade.[13] Todavia, há dois pontos que merecem atenção como complemento ao exposto.

O primeiro é que, apesar do boicote social ser a marca da cultura do cancelamento, há uma prática social anterior que lhe é fundamental, qual seja, a crítica às autoridades e figuras públicas, fundada pelo desejo de reafirmar quais são as normas de convívio social. Essa atitude de crítica é compatível e necessária à proteção da liberdade de expressão, quando estamos falando da regulação da expressão pelo Estado. Logo, a cultura do cancelamento não se limita à liberdade de associação, por mais central que essa última seja para o fenômeno em análise.

O segundo é que, por mais que não faça sentido defender que alguém possua direito a um emprego específico ou ao reconhecimento profissional pelos seus pares em uma sociedade liberal, talvez faça sentido dizer que nesse modelo de sociedade a disposição para cancelar deva ser menor ou, pelo menos, mais prudente (DOUTHAT,2020). Isso porque, numa sociedade que dá centralidade ao conceito de tolerância, a definição dos limites da cidadania, isto é, daquilo que se pode fazer com os concidadãos dentro dos limites legais ou se pode defender como o bem-comum, deve ser objeto da própria discussão na esfera pública. Portanto, em uma sociedade que valoriza a tolerância, a discussão desses limites deve ocorrer e ser fomentada, o que implica a cautela em cancelar, isto é, em dizer que os limites da discussão livre foram violados.

 

2.1     Como justificar a liberdade de expressão?

 

Como dito, o esforço conceitual de analisar o uso da linguagem em diferentes contextos é parte necessária no processo de identificação dos sentidos normativos que aquele uso adquire diante de contexto sociais reais. Quando pensamos a liberdade de expressão, essa afirmação se mostra correta, pois sua proteção jurídica não objetiva garantir a expressão genericamente pensada. Consideremos, a grosso modo, que há uma expressão quando: um indivíduo tem a intenção de transmitir uma mensagem, a transmite e há uma grande probabilidade de que os destinatários dessa mensagem a entenderão como comunicando algo (POST, 1995, p. 1251).

Agora, pensemos em um terrorista que explode um prédio e divulga que o fez por razões políticas. A noção de expressão acima, claramente, é aplicável aqui. Se esse terrorista fosse pego e processado, faria sentido que em sua defesa considerássemos sua liberdade de expressão? A resposta positiva não implica, necessariamente, que ele seria absolvido, mas que poderia, por exemplo, ter como causa de diminuição de pena o exercício da liberdade de expressão. Um cenário como esse é bastante contra intuitivo.

Da mesma forma, pensemos em A Fonte de Duchamp. Trata-se nada mais do que um urinol assinado com o nome R. Mutt, por Marcel Duchamp. O que chama a atenção é que: a partir do momento em que foi incorporado a uma exibição de arte, o urinol ganhou um significado normativo antes inexistente: é arte e deve ser avaliado esteticamente e protegido legalmente como tal (POST, 1995, p. 1252-1254). Por quê?

Uma vez que o direito é uma forma de governança, valores não são simplesmente ideias ou princípios abstratos. No direito, valores representam formas de vida social potenciais ou existentes nas quais aquilo que consideramos desejável pode ser realizado. Isso inclui os valores aos quais apelamos para justificar a proteção da livre expressão (democracia, mercado livre de ideias, autonomia, etc). Esses valores têm sua concretização em formas particulares de interação social, e não na expressão pura e simples. A expressão é, portanto, sempre situada em um espaço social real.

A expressão, a comunicação, o discurso, tornam possíveis um mundo de práticas sociais diversas e complexas, porque lhes constituem e estão a ela integradas. Em razão disso, adquirem o valor dessas práticas (POST, 1995, p. 1255 e 1271-1272). Quando pensamos no valor democrático da liberdade de expressão, estamos pensando qual o valor das diversas práticas que compõem a democracia e qual a importância do livre discurso para preservá-las. Com NY Times vs Sullivan pretendemos indicar qual a contribuição da liberdade de expressão para a democracia e conectar a cultura do cancelamento aos pressupostos explicitados.

 

2.2     NY Times vs Sullivan (1964): a contribuição democrática da livre expressão

 

No dia 9 de março de 1964, a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu que, sob a Primeira e Décima quarta Emendas, um Estado não deve indenizar uma autoridade pública por falsidades difamatórias relativas à sua conduta oficial, a menos que se prove ‘verdadeira malícia’ (actual malice), isto é, que a afirmação foi feita com conhecimento de sua falsidade ou com desconsideração descuidada sobre se era verdadeira ou falsa (reckless disregard for the truth) (ESTADOS UNIDOS, 1964, p. 254).

A decisão foi tomada diante dos seguintes fatos: uma autoridade eleita ajuizou na corte estadual do Alabama pedido de indenização por difamação em razão de um anúncio publicado no New York Times no dia 29 de março de 1960. O anúncio continha algumas afirmações, dentre as quais algumas eram falsas, sobre a conduta policial supostamente perpetrada contra estudantes que participaram em uma manifestação pelos direitos civis e contra um dos líderes do movimento por tais direitos: Martin Luther King. O autor aponta que as alegações se referiam a ele porque dentre seus deveres estava a supervisão do departamento de polícia. O juiz presidente instruiu o júri que essas afirmações eram “difamatórias por si” (libelous per se)[14]; portanto, a lesão ao direito era implicada sem a necessidade de provar danos efetivos e, para os fins de indenização compensatória, a malícia era presumida. Bastava a prova que a publicação dessas afirmações foi feita pelo réu e que se referiam ao autor. Para fins de defesa, a legislação garantia a possibilidade de se isentar da indenização por meio da prova da verdade dos fatos que fundamentam a crítica. Por outro lado, a crença genuína na veracidade da informação não se enquadra nessa possibilidade (ESTADOS UNIDOS, 1964, p. 267). Na ocasião, o júri decidiu pela procedência do pedido do autor e a suprema corte do estado reafirmou esse entendimento (ESTADOS UNIDOS, 1964, p. 263).

Na elaboração da opinião da Suprema Corte, a questão enfrentada é se o princípio de que o debate público sobre questões públicas deve ser desinibido, robusto e aberto é flexibilizado no caso pela falsidade de alguma das afirmações e pela suposta difamação.

No que diz respeito à falsidade, na opinião da corte é argumentado que: punir descrições erradas da conduta política de autoridades é se vincular à ideia de que os governados não podem criticar os governantes (ESTADOS UNIDOS, 1964, p. 272). Isso, pois a atribuição de condutas políticas meritórias ou condenáveis à autoridades é inevitável na prática de discutir e fiscalizar seus mandatos, sendo, portanto, necessário reconhecer que o convencimento de outros envolve o exagero, vilanização de pessoas proeminentes e até mesmo afirmações falsas (ESTADOS UNIDOS, 1940, p. 310).[15] Além disso, exigir precisão em todas as informações dissuade potenciais críticos, os quais sabem da confiabilidade de suas informações, mas temem não serem capazes de provar em juízo ou temem os custos de fazê-lo (ESTADOS UNIDOS, 1964, p. 279).

No que diz respeito à difamação, Madison (2006, p. 260) lembra que as autoridades são limitadas pela Constituição quando o povo é o soberano e não o Estado. Assim, há mecanismos que permitem a sua responsabilização, sendo a opinião pública um deles. De acordo com a gravidade das falhas das autoridades, essas devem ser expostas ao desprezo e à perda de reputação pelo ódio do povo. Se falhas merecedoras desses sentimentos ocorreram ou não, apenas pode ser determinado pelo livre exame e, portanto, pela livre comunicação do povo. Quando o governo falha dessa forma, é dever e direito do cidadão fiel e inteligente discutir e censurá-lo pela via da opinião pública, para promover soluções de acordo com a Constituição (MADISON, 2006, p. 260). Por essas razões, críticos das autoridades não podem ser condenados por difamação, ao menos que (i) seja claro que suas palavras se referem a uma autoridade e (ii) tais palavras foram ditas ou publicadas com o conhecimento de sua falsidade ou com desconsideração descuidada sobre sua veracidade.

Para os fins do presente artigo, a justificativa normativa dessa conclusão é o que importa, qual seja: para que o povo se autogoverne, o efetivo controle democrático do exercício da autoridade deve ser garantido. Para tanto, os limites do que pode ser dito sobre o caráter e medidas de autoridades públicas devem ser os mais amplos possíveis. Assim, salvo se comprovada a verdadeira malícia, o debate público sobre questões públicas deve ser desinibido, robusto e aberto.

A existência da cultura do cancelamento seria sensivelmente afetada se não houvesse a pretensão normativa de que o debate público sobre questões públicas fosse desinibido, robusto e aberto. Lembremos: “A cultura do cancelamento pode ser entendida como um acerto público de contas e um pedido de ajustamento de condutas em relação à alguma transgressão social que não passou por um controle adequado nos canais tradicionais.” (RODRIGUES, 2020).

Em uma organização social em que não fosse possível questionar o Estado ou mesmo cogitar que suas instituições são falíveis, provavelmente, essa prática não seria como ela é. É por isso que a cultura do cancelamento pressupõe uma concepção normativa de cidadania democrática, segundo a qual o povo só é livre se for capaz de contestar seus arranjos políticos e sociais.

 

2.3     Democracia e opinião pública

 

Não obstante, uma dificuldade vem à tona: a cultura do cancelamento é forma de ativismo digital que não tem em vista apenas o exercício do poder por autoridades. Outro elemento da definição de cultura do cancelamento precisa ser retomado: o cancelamento se dirige a pessoas ou instituições com visibilidade e importância sociais e que pareciam vinculadas ou simpatizantes de uma determinada pauta social. Logo, deve ser possível to call-out, isto é, “ apontar o dedo” para quem viola a norma, mesmo se tratando de alguém influente. E, tendo em vista a definição elaborada, o conjunto dos potenciais “cancelados” não se limita a autoridades políticas eleitas. Assim, parece que a justificativa democrática acima destacada não é suficiente.

Frederick Schauer enfrenta dificuldade semelhante ao tentar encontrar razões que justifiquem a extensão dos parâmetros de NY Times vs Sullivan para figuras públicas pela Suprema Corte dos Estados Unidos. Para ele, uma abordagem possível para justificar a liberdade de expressão é pensar que sua proteção não se justifica porque a expressão é especialmente boa, mas porque sua regulação é especialmente perigosa.[16]

Essa abordagem de desconfiança do governo começa com o pressuposto de que uma legislatura ou outro órgão majoritário normalmente decide quando e como regular o comportamento dos indivíduos, para que o interesse público seja alcançado ou para proteger os indivíduos de danos que outros podem lhe causar. Considera-se também que a expressão (ou discurso) é capaz de gerar consequências que normalmente são tidas como suficientes para justificar a intervenção do governo. A questão, para essa abordagem, então, é: por que certos tipos de expressão deveriam ser imunes ao controle majoritário? (SCHAUER, 1983, p.924).

Segundo Schauer, dificilmente pode se esperar que o governo será cego aos interesses especiais dos governantes ao definir a extensão do direito dos cidadãos de desafiar as políticas, qualificações e personalidades de seus governantes. Sob a perspectiva de desconfiança do governo, portanto, tem-se uma boa razão para imunizar esses tipos de crítica do controle majoritário (SCHAUER, 1983, p. 926). E as discussões sobre pessoas públicas?

Define-se pessoa pública como a pessoa que alcança notoriedade e fama tamanha que se torna uma figura pública para todos os propósitos e em todos os contextos; ou, que se insere em controvérsia pública e por isso se torna uma figura pública para um âmbito limitado de questões (ESTADOS UNIDOS, 1974, p. 290). Como, então, justificar que as discussões sobre pessoas públicas tenham a mesma proteção que as discussões sobre as qualidades dos governantes? Para os fins do presente artigo, a pergunta pode ser formulada de forma mais ampla: como justificar por referência à democracia a proteção de discussões sobre as opiniões de pessoas públicas?

Para responder, uma observação metodológica se faz necessária: analisar a liberdade de expressão pela “porta dos fundos” não implica que uma análise pela “porta da frente” não seja possível (SCHAUER, 1983, p.929). Isto é, a coerência daquela abordagem não implica que não seja possível justificar a liberdade de expressão por referência a um valor, ao invés de justificá-la em razão dos riscos de sua regulação por instituições majoritárias. Dito isso, é importante retomar a justificativa normativa de Sullivan: para que o povo se autogoverne, o efetivo controle democrático do exercício da autoridade deve ser garantido. Para tanto, os limites do que pode ser dito sobre o caráter e medidas de autoridades públicas devem ser os mais amplos possíveis. Entretanto, se formos fiéis a essa justificativa, não limitaremos o valor democrático da expressão ao comportamento do governo, suas políticas e seus funcionários.

A razão para isso é que o autogoverno pelo povo e o efetivo controle democrático do exercício da autoridade não são garantidos apenas pela tomada de decisões políticas informadas por parte do eleitorado. A democracia consiste numa forma de relacionamento entre as pessoas e seu governo. Esse relacionamento se concretiza quando aqueles que estão submetidos às leis acreditam que são autores potenciais do Direito. Para que isso seja possível, é necessário que os cidadãos tenham acesso à esfera pública e, assim, participem da formação da opinião pública. Tal como, é necessário que as decisões do governo sejam responsivas à opinião pública (POST, 2011, p. 482). Sob esse ponto de vista, deve-se proteger os atos de fala e os meios de comunicação que são socialmente considerados meios adequados e necessários para participar na formação da opinião pública (POST, 2011, p. 483).

Assim, a liberdade de expressão deve ser protegida não apenas porque informa a tomada de decisão governamental e o voto, mas porque permite a formação da opinião pública em uma sociedade culturalmente heterogênea (POST, 1990, p. 629-631). E, destaca-se, isso não ocorre apenas em discussões sobre o governo; fundamental também é a habilidade de deliberar sobre a identidade enquanto povo (POST, 1990, p. 636-637). Por isso, é possível justificar por referência à democracia a proteção de discussões, por exemplo, sobre quais são os cidadãos modelos, qual o papel da arte, por quê preservar laços de pertencimento cultural, o que é a maternidade, como tratar os idosos, etc (POST, 2011, p. 486).

 

3          Cidadania democrática e cultura do cancelamento na esfera pública: crítica à intolerância

 

A liberdade de expressão, com seus limites e possibilidades, é um dos temas mais caros e conflituosos dentro do liberalismo político. De início afasta-se o argumento, muito utilizado nas discussões na esfera pública brasileira, que a liberdade de expressão possui pretensão normativa ilimitada e que qualquer tentativa de regulação é uma forma de censura. De forma sintética, o afastamento desse argumento pode ser justificado a partir das formas jurídicas da calúnia, injúria e difamação, de há muito já conhecidas nos ordenamentos jurídicos liberais. A elevação dessas manifestações de liberdade de expressão como crimes previstos nos códigos penais contemporâneos estabelece, inequivocamente, limites ao exercício da liberdade de expressão.[17] Todavia, a liberdade de expressão ganha uma nova dimensão nas sociedades hiperconectadas por meio de tecnologias digitais de comunicação conhecidas como redes sociais.

De início, e de forma ainda teórica, podemos sintetizar as considerações da seção anterior dizendo que o cancelamento é uma forma de exercício da liberdade de expressão. Se um determinado grupo decide não mais seguir ou levar em consideração ou, ainda, invalidar do ponto de vista argumentativo de uma pessoa em razão de alguma manifestação, essa ação de ‘cancelar’ está amparada pela liberdade de expressão.

De forma prática o cancelamento pode apresentar pelo menos dois problemas interessantes. O primeiro diz respeito à ‘como’ o ato de cancelar é realizado, ou seja, à forma como o exercício da liberdade de expressão se manifesta. Neste caso, além dos limites já explicitados acima relacionados com o direito penal, pode-se também apresentar um forte argumento liberal consignado no princípio do dano de John Stuart Mill. Nesse sentido, qualquer exercício da liberdade de expressão que cause danos a outrem deve ser passível de reparação. Além da justificativa filosófica, o Direito também apresenta algumas possibilidades de solução a partir da doutrina do abuso de direito. O segundo, e que interessa mais diretamente a este trabalho, diz respeito à relação entre o ato de cancelar e uma concepção normativa de cidadania democrática.

Se, por um lado, o cancelamento produz o efeito de interrupção do diálogo, por outro, ele sinaliza a possibilidade de um grupo de indivíduos se manifestarem na esfera pública, produzindo fluxos comunicacionais capazes de influenciar a cultura política. Tendo isso em vista, é necessário pensar com mais detalhes a situação do cancelamento na esfera pública.

É na esfera pública das sociedades contemporâneas que as pessoas discutem os ideais normativos da sociedade a partir de suas experiências subjetivas, ou seja, é nela que são forjadas as razões e justificativas para solução de questões práticas da vida social a partir dos valores e convicções de mundo dos cidadãos (WERLE, 2013, p.166). Se por um lado o cancelamento pode ser compreendido como inviabilizador da plasticidade inerente à esfera pública de uma sociedade plural, empobrecendo, portanto, o próprio conceito de democracia, por outro, ele pode ser compreendido como uma ‘nova partilha discursiva’ (BENTES, 2020) cujas condições de possibilidade foram alteradas pela ampliação da esfera pública, tanto daquela formada pela intelectualidade acadêmica, quanto daquela formada por quaisquer cidadãos usuários de conceitos nos fluxos comunicativos sociais, especialmente a partir da utilização das redes sociais.

Nos dizeres de Bentes (2020), as disputas narrativas sobre os sentidos da convivência social se apresentam como forma de partilha do sensível que possibilitam as condições de surgimento de um nova cultural digital: o comentariado. Se, lá em 1962, Habermas (2014) propôs que a esfera pública estava passando por uma mudança estrutural que exigia (e exige ainda) reflexão sobre a formação dos sentidos normativos no interior das sociedades plurais contemporâneas, na atualidade o argumento de Habermas ajuda na elaboração de um diagnóstico para sociedades cujos fluxos comunicacionais são realizados por redes digitais hiperconectadas.

O cancelamento mobiliza a disputa pelo conceito de tolerância no interior das sociedades plurais. Encontrar limites daquilo que é tolerável como comportamento individual e coletivo dentro de um ambiente social diverso e plural não é uma tarefa fácil. A partir do fato do pluralismo e da necessidade de que algum arranjo normativo organize a estrutura da sociedade, surge a necessidade de diálogo sobre o que devemos tolerar no interior da sociedade.

A partir de uma justificação igualitária, acreditamos que a tolerância possa ser concebida como um argumento de segunda ordem que, fundado na reciprocidade, instaura o dever dos cidadãos se tolerarem mutuamente por partilharem uma igualdade política. Nesse sentido,

[...] o dever de tolerar é a exigência de que no momento em que a natureza ou extensão da cidadania estejam em questão, valores e concepções de bem distinta das nossas sejam avaliadas do ponto de visa da igual cidadania e das internas as nossas concepções de bem. (PETRONI, 2018, p. 115)

Partindo dessas mínimas ideias da liberdade de expressão e tolerância, necessário se faz o cotejamento delas com recentes acontecimentos na esfera pública brasileira que diretamente se articulam com a ideia do cancelamento. Maria Rita Kehl (2020) abre seu artigo intitulado Lugar de “cale-se” com duas questões: “O que seria da democracia se cada um de nós só fosse autorizado a expressão em relação a temas concernentes a sua experiência pessoal?” e “O que seria do debate público?”. O contexto do artigo foi a polêmica constituída a partir do cancelamento da Profa. Lilia Schwarcz após a publicação de seu artigo sobre Beyoncé. Sem adentrar na polêmica em si mesma, nos interessa agora mais a trilha apontada pelas perguntas de Kehl no tocante ao entrelaçamento da liberdade de expressão, da tolerância e do cancelamento.

É a tensão entre a particularidade inerente às experiências da vida privada de cada indivíduo e a pretensão de universalidade reivindicada na dimensão pública que instaura uma certa plasticidade discursiva (teórica e prática) que permite aos cidadãos e cidadãs estabelecerem ajustes argumentativos, com pretensão racional, no sentido de produzir alguma legitimidade na constituição da normatividade social. O cancelamento, portanto, pode fazer parte do jogo de dar e pedir razões no interior da esfera pública concebida como “uma rede adequada para comunicação de conteúdos, tomadas de posição e opiniões, enquanto espaço de razões, constituído pela linguagem, em que as pessoas se movimentam e discutem suas experiências mediante razões.” (WERLE, 2013, p. 173).

Para que essa possibilidade se confirme e o cancelamento se apresente como prática argumentativa sobre os limites da livre discussão, é necessário que seus praticantes se engajem racionalmente com aqueles que deles discordam.[18] Portanto, não basta apontar quais limites são legítimos à discussão de acordo com o grupo ao qual se pertence. É preciso defender argumentativamente aquilo que se pressupõe quando se cancela, ou seja, que esses limites são fundamentais para atendermos àquilo que devemos uns aos outros em sociedade.

Fazer isso demonstra atitude tolerante, porque ao mesmo tempo que se considera o outro em sua singularidade, a ele é atribuído status de igual cidadão. Sob a igual cidadania, não se mostra justificável impor ao outro os termos fundamentais de convivência social, sendo a única possibilidade convencê-lo de quais termos são mais defensáveis. Em outras palavras, os indivíduos estão inseridos numa relação intersubjetiva marcadamente ética, pois cada um deve estar comprometido tanto com sua própria fala [com seus próprios argumentos] quanto com a fala do outro [reciprocidade] (CAMILLOTO; CAMILLOTO, 2017, p.29).

Quando estamos no horizonte democrático, polêmicas como a troca de cartas sobre justiça e tolerância e o artigo de Lilia Schwarz são disputas que contribuem para a formação da opinião pública. Além disso, as posições de cada um dos debates revelam que estamos também diante de disputas sobre como identificar quais expressões contribuem para a opinião pública. Esses debates dependem do compromisso e engajamento com a opinião pública, vez que sua formação só faz sentido quando os diversos grupos de uma sociedade plural compartilham uma motivação: se autogovernar.

O autogoverno é obtido quando os governantes respondem aos desejos do povo como um todo, pensado como o público (POST, 1990, p. 636). Diante do pluralismo que caracteriza nossa sociedade, para identificarmos “o povo”, indivíduos de diferentes tradições, filiações e comunidades devem tentar se comunicar. Se entendermos comunicação como a atividade de colocar algo em comum (BARZOTTO,210, p. 150), para a democracia é fundamental que os indivíduos comuniquem o desejo de compartilhar seu destino político com seus concidadãos. Resta saber se a comunicação possível pelas redes sociais é, ou pode ser, a comunicação necessária à democracia.

 

§ CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Problematizamos se a cultura do cancelamento pode ser considerada uma forma de exercício de liberdade de expressão como parte da cultura pública de uma sociedade democrática. Pressupomos que a liberdade de expressão é exercida pelos cidadãos quando utilizam conceitos nos jogos de linguagem e cujos conteúdos reivindicam pretensão de correção no interior das práticas sociais. Partimos do significado da cultura do cancelamento explicitando seu conteúdo no contexto de sociedades plurais a partir de duas situações recentes: a publicação de ‘Uma carta sobre justiça e debate aberto’ e da controvérsia sobre o artigo de opinião ‘Filme de Beyoncé erra o glamorizar negritude com estampa de oncinha’.

Mobilizamos o conceito de liberdade de expressão como pressuposto normativo capaz de sustentar uma concepção de cidadania democrática na qual os cidadãos devem estar engajados e comprometidos com o exercício de sua opinião no âmbito da esfera pública. Defendemos que a cultura do cancelamento deve ser compreendida como exercício democrático da liberdade de expressão, pois ela é caracterizada por atos de fala que compõem o esforço coletivo de formar a opinião pública, tanto no apontamento de críticas ao exercício do poder por autoridades, quanto no apontamento de críticas às pessoas e instituições com visibilidade e importância sociais.

Destacamos, entretanto, que na dinâmica da vida social contemporânea, especialmente diante do fluxo comunicacional realizado pelas redes sociais, há sempre o risco da impossibilidade de construção das pretensões normativas na esfera pública, especialmente quando não há a mediação de um ideal de tolerância. Neste sentido, a cultura do cancelamento pode ser contraditória com seus próprios pressupostos, pois, sem ter algum ideal de tolerância, a particularidade inerente às experiências da vida privada de cada cidadão pode se transformar em empecilho na construção de soluções normativas para a convivência social.

Mesmo levando-se em consideração que nas sociedades contemporâneas os fluxos comunicacionais realizados por redes hiperconectadas trazem consigo uma série de desafios teóricos e práticos, concluímos que a cultura do cancelamento é uma forma de exercício da liberdade de expressão que está amparada por uma concepção normativa de cidadania democrática, devendo ser mediada pelo ideal da tolerância.

 

Referências

 

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Informações adicionais e declarações dos autores

(integridade científica)

 

Declaração de conflito de interesses (conflict of interest declaration): os autores confirmam que não há conflitos de interesse na realização das pesquisas expostas e na redação deste artigo.

 

Declaração de autoria e especificação das contribuições (declaration of authorship): todas e somente as pessoas que atendem os requisitos de autoria deste artigo estão listadas como autores; todos os coautores se responsabilizam integralmente por este trabalho em sua totalidade.

 

·      Bruno Camilloto: Projeto e esboço inicial (conceptualization), levantamento bibliográfico (investigation), revisão bibliográfica (investigation), redação (writing – original draft), participação ativa nas discussões dos resultados (validation), revisão crítica com contribuições substanciais (writing – review and editing), aprovação da versão final

 

·      Pedro Urashima: Projeto e esboço inicial (conceptualization), levantamento bibliográfico (investigation), revisão bibliográfica (investigation), redação (writing – original draft), participação ativa nas discussões dos resultados (validation), aprovação da versão final.

 

Declaração de ineditismo e originalidade (declaration of originality): os autores asseguram que o texto aqui publicado não foi divulgado anteriormente em outro meio e que futura republicação somente se realizará com a indicação expressa da referência desta publicação original; também atestam que não há plágio de terceiros ou autoplágio.

 

 

Dados do processo editorial

· Recebido em: 24/12/2020

· Controle preliminar e verificação de plágio: 24/12/2020

· Avaliação 1: 18/01/2021

· Avaliação 2: 21/01/2021

· Decisão editorial preliminar: 21/01/2021

· Retorno rodada de correções: 10/02/2021

· Decisão editorial final: 10/02/2021

· Publicação: 11/02/2021

Equipe editorial envolvida

·  Editor-Chefe: FQP

·  Assistente-Editorial: MR

·  Revisores: 02

COMO CITAR ESTE ARTIGO

CAMILLOTO, Bruno; URASHIMA, Pedro. Liberdade de expressão, democracia e cultura do cancelamento. Revista de Direito da Faculdade Guanambi, Guanambi, v. 7, n. 02, e317, jul./dez. 2020. doi: https://doi.org/10.29293/rdfg.v7i02.317. Disponível em: http://revistas.faculdadeguanambi.edu.br/index.php/Revistadedireito/article/view/317. Acesso em: dia mês. ano.



* Editor: Prof. Dr. Flávio Quinaud Pedron. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4259444603254002. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4804-2886.

[1] Doutor em Direito pela PUC/MG. Mestre em Direito pela UFMG. Bacharel em Direito pela UFOP. Professor do PPGD da UFOP. Lattes: http://lattes.cnpq.br/8069472213279914. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4067-4272.

[2] Mestrando em Direito pela UFOP. Bacharel em Direito pela UFLA. Bolsista CAPES. Lattes: http://lattes.cnpq.br/7008295228635290. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1797-5942.  

[3]   Não se contestará no presente texto a utilidade do termo. Pelo contrário, sua delimitação será buscada, pois entende-se que é possível utilizá-lo com certa precisão a ponto de permitir a análise.

[4]   A referência utilizada diz respeito à tradução das cartas pela Folha de São Paulo.  As versões originais podem ser acessadas em, respectivamente Ackerman (2020) e Binkowski et al (2020).

[5]   As citações diretas sem paginação se referem a textos nos quais não há divisão por páginas.

[6]   Na segunda carta também há alguns argumentos ad hominem, como: “Os signatários, muitos deles brancos, ricos e dotados de plataformas enormes, argumentam que têm medo de ser silenciados, que a chamada cultura do cancelamento está fora de controle e que eles temem por seus empregos e pelo livre intercâmbio de ideias, ao mesmo tempo que se manifestam em uma das revistas de maior prestígio do país.” Tendo em vista a preocupação de destacar as razões que sustentam cada uma das posições, argumentos dessa espécie foram deixados de lado.

[7]   Exemplo dessa posição está na fala da antropóloga social Izabel Accioly em entrevista ao UOL: “A branquitude acha que é universal, está sempre pensando a partir de suas próprias narrativas [...] Mais do que tentar analisar algo que não conhecem, brancos deveriam analisar e repensar seu pertencimento étnico-racial, a branquitude.” (ACCIOLY, 2020).

[8]   O episódio envolvendo Lilia Schwarcz produziu outras manifestações públicas. Para aprofundamento ver: AVRITZER (2020) e SCHUCMAN (2020).

[9]   Na referida carta é dito: “Rejeitamos qualquer escolha falsa entre justiça e liberdade, que não podem existir em separado.” O texto em questão dá a entender que a cultura do cancelamento sustenta a necessidade dessa escolha e, por isso, ela é criticada. Nosso objetivo é argumentar que as práticas que constituem a cultura do cancelamento podem, sob certas condições, não implicar escolha dessa espécie.

[10] Agradecemos ao avaliador A pelos apontamos que possibilitaram a melhoria significativa da introdução.

[11] Assume-se aqui que não há compromisso jurídico anterior, um contrato, por exemplo, acordando que oportunidade do tipo seria conferida. Agradecemos ao avaliador A pelo apontamento na correção que permitiu esse esclarecimento.

[12] Claro, sua força depende de um compromisso prévio com o ideal de uma sociedade liberal. Não será defendido neste artigo todo o argumento necessário para defender esse ideal. Para uma defesa bastante completa em face do intuicionismo e do utilitarismo, ver Rawls (1999).

[13] O argumento de Ivana Bentes ao analisar o “cancelamento” de Lilla Schwarcz vai nesse sentido. Chama a atenção que a autora conceitua a prática assim: “‘cancelamento’ é uma estratégia que conforme a modulação pode ir de um honesto e necessário debate público até o seu extremo, que é o linchamento e destruição de reputações.” Tentou-se evitar uma definição elástica como essa na seção 1, enfatizando-se a última parte do conceito da autora. Ver Bentes (2020).

[14] Na elaboração da opinião da Corte, Justice Brennan resgata o julgado da Suprema Corte do Estado do Alabama, que diz: “[…] where the words published tend to injure a person libeled by them in his reputation, profession, trade or business, or charge him with an indictable offense, or tend to bring the individual into public contempt," they are ‘libelous per se". Ver Estados Unidos (1964, p. 263).

[15] A conclusão na opinião da Corte em NY Times vs Sullivan reconhece, portanto, o papel de falsidades factuais nas discussões políticas, desde que não enunciadas com conhecimento da sua falsidade ou com reckless disregard for the truth. Uma vez estipulado essa regra, é fundamental distinguir afirmações de fato de opiniões, pois às últimas não serão aplicáveis os critérios de veracidade das primeiras.

[16] O autor denomina tal perspectiva de “porta dos fundos da liberdade de expressão” (back side of the first amendment).

[17] O argumento está sendo mobilizado neste texto de forma generalizante. Para maior acuidade é necessário um aprofundamento teórico e contextual, vez que, mesmo as figuras típicas do direito penal citadas possuem conformações normativas distintas nos contextos sociais plurais das diversas sociedades contemporâneas.

[18] Uma questão empírica relevante é se a arquitetura atual das redes sociais, alicerçada em algoritmos e direcionamento de conteúdo, pode fomentar ou, pelo menos, não inviabilizar a discussão racional. Mas, se confirmado o antagonismo entre as exigências deliberativas e as redes sociais atuais, o argumento normativo desenvolvido pode nos orientar a redesenhar nossas redes.