A União Estável no Direito brasileiro e a monogamia como elemento (im)prescindível para a sua caracterização

The stable union in Brazilian law and monogamy as a (in)dispensable element for its characterization

 

 

Ozório Nonato de Abrantes Neto[1]

Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) – Sousa/PB

[email protected]

 

Maria dos Remédios de Lima Barbosa[2]

Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) – Sousa/PB

[email protected]

 

 

RESUMO: O presente trabalho teve por objetivo analisar o instituto da união estável como entidade familiar reconhecida pela Constituição Federal de 1988, realizando a sua distinção com o concubinato e apresentando seus requisitos, direitos e deveres que lhe são inerentes e seus efeitos patrimoniais, de modo a se questionar se a monogamia seria ou não necessária à constituição de uma união estável, ou seja, se esse instituto poderia estar presente numa só relação composta por várias pessoas (poligamia) ou não. Quanto à metodologia, fora utilizado o método bibliográfico-documental, com a utilização de doutrinas, julgados dos Tribunais Superiores, artigos científicos e textos normativos, bem como o método dedutivo, partindo-se de uma análise geral acerca do instituto da união estável para esclarecer se a monogamia é requisito imprescindível ou não à constituição de uma união estável. Dessa forma, a pesquisa realizada para a elaboração deste artigo chegou à conclusão de que a monogamia – princípio pelo qual o casamento e a união estável somente poderiam ser constituídos por uma relação composta por, no máximo, duas pessoas – é imprescindível para a formação do vínculo da união estável, eis que esta equipara-se a uma entidade familiar, ombreia-se ao casamento, como a própria CF/1988 estabelece, nada impedindo, contudo, que as relações poligâmicas sejam constituídas no plano fático.

Palavras-chave: Poliamorismo. Impossibilidade. Código Civil. Constituição Federal.

ABSTRACT: The purpose of this work was to analyze the institute of the stable union as a family entity recognized by the Federal Constitution of 1988, making its distinction with the concubinage and presenting its requirements, rights and duties and its patrimonial effects, in order to question whether or not monogamy would be necessary for the constitution of a stable union, that is, if this institute could be present in a single relationship composed of several people (polygamy) or not. As for the methodology, the bibliographic-documental method had been used, with the use of doctrines, judged by the Superior Courts, scientific articles and normative texts, as well as the deductive method, starting from a general analysis about the institute of the stable union to clarify whether or not monogamy is an indispensable requirement for the constitution of a stable union. Thus, the research carried out for the elaboration of this article came to the conclusion that monogamy - principle by which marriage and stable union could only be constituted by a relationship composed of, at most, two persons - is indispensable for the formation of the stable union bond, so that it is equivalent to a family entity, it is compared to marriage, as the CF/1988 itself establishes, nothing preventing, however, that polygamous relationships are constituted on the phatic level.

Keywords: Polyamory. Impossibility. Civil Code. Federal Constitution.

 

SUMÁRIO: INTRODUÇÃO; 1 CONCEITO DE UNIÃO ESTÁVEL E O TRATAMENTO QUE O LEGISLADOR CONFERIU AO INSTITUTO ANTES E DEPOIS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988; 2 DIFERENÇA ENTRE UNIÃO ESTÁVEL E CONCUBINATO; 3 ELEMENTOS CARACTERIZADORES DA UNIÃO ESTÁVEL; 4 DIREITOS E DEVERES DECORRENTES DA UNIÃO ESTÁVEL; 5 EFEITOS PATRIMONIAIS DA UNIÃO ESTÁVEL; 6 A MONOGAMIA COMO ELEMENTO (IM)PRESCINDÍVEL PARA A CARACTERIZAÇÃO DA UNIÃO ESTÁVEL; CONSIDERAÇÕES FINAIS; REFERÊNCIAS.

 

SUMMARY: INTRODUCTION; 1 CONCEPT OF STABLE UNION AND THE TREATMENT THAT THE LEGISLATOR GAVE TO THE INSTITUTE BEFORE AND AFTER THE FEDERAL CONSTITUTION OF 1988; 2 DIFFERENCE BETWEEN STABLE UNION AND CONCUBINAGE; 3 ELEMENTS CHARACTERIZING THE STABLE UNION; 4 RIGHTS AND DUTIES ARISING FROM THE STABLE UNION; 5 PROPERTY EFFECTS OF THE STABLE UNION; 6 THE MONOGAMY AS AN ELEMENT (IM)DISPENSABLE FOR THE CHARACTERIZATION OF THE STABLE UNION; FINAL CONSIDERATIONS; REFERENCES.

 

§ INTRODUÇÃO

 

As uniões entre pessoas já existiam muito antes do casamento, para fins de criação de uma família e, no princípio, em defesa da subsistência. Houve a evolução do conceito e da finalidade dos vínculos amorosos ou meramente sexuais, de modo que a figura do matrimônio surgisse, ficando ao lado da união informal.

No Brasil, o casamento sempre fora tido como instituto mais importante e primordial do que as uniões informais. Estas eram reconhecidas pela ordem jurídica como sendo meras relações de concubinato, nas quais seus participantes não tinham seus interesses juridicamente tutelados. Somente com o advento da Constituição Federal de 1988 é que a união estável foi reconhecida como entidade familiar autônoma, nos termos do art. 226 do referido diploma.

Trata-se a união estável de instituto diverso do casamento, ante o tratamento distinto que a própria legislação atribui a cada um deles. Contudo, muito do que se é aplicado ao casamento também é aplicável à união estável, a exemplo dos direitos e deveres matrimoniais e dos efeitos do casamento, dentre estes os efeitos sucessórios.

Em razão disso, não poderiam deixar de existir as divergências doutrinárias acerca da aplicabilidade ou não de determinadas normas jurídicas – originalmente aplicadas ao casamento – à união estável. Dentre esses debates, surge o referente à aplicação ou não do “princípio” da monogamia, ou seja, da determinação de que uma relação afetiva e amorosa somente pode se dar, para efeitos jurídicos, entre duas pessoas, à união estável.

É o chamado “poliamorismo”, situação em que mais de duas pessoas mantêm, abertamente, múltiplas relações afetivas e amorosas entre si, constituindo um único núcleo familiar.

Muitos autores entendem que não, vez que não existe regramento legal nesse sentido, bem como pela incidência dos princípios da autonomia da vontade e da afetividade. Outros, contudo, concordam pela plena aplicabilidade, pois a união estável é instituto que, juridicamente, decorre do casamento, o qual é, por lei e por sua própria natureza, monogâmico. Tal afirmação pode ser retirada de simples interpretação sistemática da legislação que trata sobre o casamento (conceito, procedimento para sua realização, natureza jurídica, etc.), bem como pela própria razão de ser do referido instituto (união de duas pessoas com a finalidade de manter uma comunhão plena de vidas).

No presente trabalho, buscar-se-á analisar a união estável detalhadamente, desde o seu reconhecimento como entidade familiar no Direito Brasileiro até seus efeitos patrimoniais decorrentes e à possível incidência ou não do “princípio” da monogamia, tal como ocorre no casamento.

Ressalta-se, antes de tudo, que o presente trabalho não busca analisar a questão das famílias paralelas, quando um cônjuge ou companheiro mantém vínculo amoroso, paralelamente, com outra pessoa, constituindo duas famílias ao mesmo tempo, sem que nenhuma delas tenha conhecimento da outra, mas tão somente as relações poligâmicas, as quais já foram definidas sinteticamente acima.

Será utilizado o método documental-bibliográfico, com o uso de doutrinas, artigos científicos e texto de lei, com uma análise dedutiva acerca do tema, abordando de forma geral o instituto da união estável para se chegar ao tópico específico do tema tratado por este trabalho.

Dessa forma, primeiro será abordado o conceito de união estável e o seu tratamento jurídico que lhe foi conferido antes e depois do advento da Constituição Federal de 1988, para depois analisarmos sua diferenciação com o concubinato, seus direitos e deveres decorrentes e seus efeitos patrimoniais, de forma que, ao final, possamos analisar a possibilidade ou não da admissão das relações poligâmicas à luz do ordenamento jurídico brasileiro.

Portanto, a análise aqui realizada tem por base puramente o aspecto jurídico. Não nos interessa debates de cunho filosófico-político, que, certamente, legitima tais relações, haja vista que o Estado, em nosso entender, não deve intervir nas relações privadas, ainda mais quando estas dizem respeito aos âmbitos íntimo e familiar dos indivíduos. Assim, o objetivo deste trabalho é analisar, do ponto de vista estritamente jurídico (Constituição Federal de 1988 e legislação infraconstitucional), a possibilidade ou não do reconhecimento do “poliamorismo” quanto à união estável, desconsiderando outros debates que fogem da seara jurídica.

 

1          CONCEITO DE UNIÃO ESTÁVEL E O TRATAMENTO QUE O LEGISLADOR CONFERIU AO INSTITUTO ANTES E DEPOIS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

 

Trata-se a união estável de um vínculo amoroso e afetivo formado sem as formalidades inerentes ao casamento, com objetivo de constituir família e manter uma comunhão plena de vidas. Ainda, esse vínculo deve ser caracterizado como uma relação contínua, duradoura, pública e livre de quaisquer circunstancias matrimoniais impeditivas.

Com propriedade, leciona Azevedo (2003, p. 255):

Realmente, como um fato social, a união estável é tão exposta ao público como o casamento, em que os companheiros são conhecidos, no local em que vivem, nos meios sociais, principalmente de sua comunidade, junto aos fornecedores de produtos e serviços, apresentando-se, enfim, como se casados fossem. Diz o povo, em sua linguagem autêntica, que só falta aos companheiros “o papel passado”. Essa convivência, como no casamento, existe com continuidade; os companheiros não só se visitam, mas vivem juntos, participam um da vida do outro, sem termo marcado para se separarem.

A união estável, nessa perspectiva, é instituto que data de bem antes do surgimento do casamento, ombreando-se a este e se diferenciando, hoje, apenas no que se refere às formalidades e aos custos para sua formação/constituição, que são praticamente nulos.

Visto o conceito de união estável, passa-se agora a um breve estudo sobre o seu tratamento jurídico antes e após a CF/1988.

Nesse sentido, antes da nova ordem constitucional, a união estável era tida como sinônimo de concubinato, relação formada por duas pessoas que, livres ou não – e livre, aqui, entenda-se como sendo aquela pessoa que não era casada, ou, sendo, que pelo menos estivesse separada, ao menos, de fato –, mantinham relações amorosas e afetivas sem antes constituir casamento.

Nessa análise, Gagliano e Pamplona Filho (2019, p. 456) escrevem que “a união livre simplesmente não era considerada como família e a sua concepção era de uma relação ilícita, comumente associada ao adultério e que deveria ser rejeitada e proibida”.

Como se retira da própria citação acima, a figura do concubinato era objeto – ou fator – de várias espécies de discriminações. Uma destas era a existente entre a prole advinda de uniões livres (filhos naturais) e a tida na constância/vigência de um matrimônio (filhos legítimos). Em razão dessa diferenciação, os filhos legítimos tinham, por disposição legal, preferência sobre os filhos naturais, bem como maiores benefícios de ordem familiar e testamentária. Após a CF/1988, essa discriminação fora abolida – ao menos perante a lei –, em razão do art. 227, §6º, do diploma referido, cuja redação segue abaixo (BRASIL, 1988):

Art. 227. [...] §6º - Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.

As referidas discriminações mostraram-se presentes também no Código Civil de 1916, que trazia vários dispositivos com medidas adversas à referida relação, citando como exemplo a proibição de doações ou benefícios testamentários do homem casado à concubina. Sobre o assunto, Madaleno (2020, p. 1894):

A legislação brasileira também sempre se apresentou como em oposição ao concubinato, existindo diversos dispositivos no revogado Código Civil de 1916 a proibirem doações do cônjuge adúltero ao seu cúmplice e outorgando à mulher casada a legitimidade processual para reivindicar os bens comuns, doados ou transferidos pelo marido à concubina, assim como impedindo a instituição da concubina como beneficiária do contrato de seguro de vida, cujos dispositivos sempre tiveram em mira a concubina de homem casado, em defesa da família matrimonial, única expressão de legítima e exclusiva exteriorização de entidade familiar.

Também é de se mencionar a disposição constante do art. 183, inciso VII, do referido diploma, que estabelecia o impedimento matrimonial do “cônjuge adúltero com o seu co-réu, por tal condenado”, bem como a do art. 1.177 do mesmo código, determinando que “a doação de cônjuge adultero ao seu cúmplice pode ser anulada pelo outro cônjuge, ou por seus herdeiros necessários [...]”. O prazo para essa anulação era de dois anos, conforme os arts. 178, §7º, inciso VI, e 248, inciso IV, da referida legislação.

Percebe-se, pois, que, em tempos anteriores à CF/1988, a relação de concubinato puro – hoje entendida como união estável, mas que com essa não se confunde – era tida como vínculo inferior ao casamento, instituto que, conforme o entendimento da sociedade à época, legitimava a família e as relações amorosas.

Contudo, a legislação e jurisprudência brasileiras foram se adaptando, de modo que, aos poucos, alguns direitos fossem reconhecidos àqueles que integravam a relação de concubinato puro. Grande avanço nesse reconhecimento de direitos foi a adoção, no âmbito da jurisprudência, do entendimento segundo o qual a mulher teria direito à indenização pelos serviços domésticos prestados na constância do concubinato puro, nas hipóteses em que não se reconhecia, ao menos, a existência de uma sociedade de fato entre os interessados. Nesse contexto, o Superior Tribunal de Justiça possui julgados antigos a respeito do tema (REsp nº 151.238/PB):

DIREITO CIVIL. CONCUBINATO. INDENIZAÇÃO À MULHER POR SERVIÇOS DOMÉSTICOS. CABIMENTO. PRECEDENTES. RECURSO DESPROVIDO. - As duas Turmas que integram a Segunda Seção desta Corte, à qual incumbe o exame da matéria concernente ao Direito Privado, já assentaram o entendimento de que, nos casos em que não haja a comprovação da sociedade de fato entre os concubinos, que garantiria a meação do patrimônio, é possível ser deferida à mulher a indenização por serviços domésticos efetivamente prestados durante a vida em comum.

Dessa forma, passou-se a reconhecer, ao menos, o direito da mulher em receber quantia referente aos serviços domésticos prestados durante a vida em comum, quando não comprovada a existência de sociedade de fato.

Outro avanço foi a edição da Súmula nº 380 pelo Supremo Tribunal Federal, no ano de 1964, anterior ao advento da CF/1988, dispondo que, “comprovada a existência de sociedade de fato entre os concubinos, é cabível a sua dissolução judicial, com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum”. A redução desse entendimento à um enunciado de súmula só confirma o entendimento que já vinha sendo adotado antes, no sentido de que era possível o reconhecimento de sociedade de fato entre os concubinos, desde que fosse comprovado.

Entretanto, os reconhecimentos iniciais se deram com a legislação previdenciária, a exemplo do Decreto-lei nº 7.036/44, que reconheceu à concubina o direito de ser indenizada pela morte de seu companheiro em razão de acidente. Nessa esteira, Venosa (2017, p. 50):

Concedeu-se à companheira o direito de perceber a indenização do companheiro morto por acidente de trabalho e de trânsito, desde que não fosse casado e a tivesse incluído como beneficiária (Decreto-lei n. 7.036/44; Lei n. 8.213/91). No mesmo diapasão foram consolidados os direitos previdenciários da companheira na legislação respectiva (Leis n. 4.297/63 e 6.194/74), permitindo que ela fosse designada beneficiária do contribuinte falecido, tendo a orientação jurisprudencial encarregado-se de alargar o conceito, permitindo o mesmo direito também na falta de designação expressa, se provada a convivência ou a existência de filhos comuns. Nesse sentido, permitiu-se a divisão da pensão entre a esposa legítima e a companheira (Súmula 159 do extinto TFR).

No mesmo sentido é a Súmula nº 35 do STF, editada no ano de 1963, cujo teor é o seguinte: “Em caso de acidente do trabalho ou de transporte, a concubina tem direito de ser indenizada pela morte do amásio, se entre eles não havia impedimento para o matrimônio” (BRASIL, 1963).

Outro exemplo foi o avanço gerado pela Lei dos Registros Públicos, que reconheceu o direito da concubina a usar o patronímico de seu companheiro, desde que a relação entre ambos contasse com pelo menos cinco anos de duração ou em tempo menor, se, nesta última hipótese, da relação adviesse prole e não existisse qualquer impedimento legal para o casamento.

Começou-se, também, a ser realizada uma distinção entre concubinato puro e concubinato impuro. Sobre a primeira espécie de concubinato, Tartuce (2019a, p. 507):

Tratar-se-ia da união estável, hipótese em que os companheiros são viúvos, solteiros, divorciados ou separados de fato, judicial ou extrajudicialmente; desde que preenchidos os demais requisitos caracterizadores da entidade familiar em debate.

Nesse sentido, o concubinato puro seria o vínculo formado por pessoas que não estariam sob o manto de circunstâncias impeditivas, caso dos solteiros, dos divorciados e dos que tiveram o casamento como nulo ou anulado.

A segunda espécie, por sua vez, assim é conceituada pelo referido autor (2019, p. 510):

[...] trata-se da convivência estabelecida entre uma pessoa ou pessoas que são impedidas de casar e que não podem ter entre si uma união estável, como é o caso da pessoa casada não separada de fato, extrajudicialmente ou judicialmente, que convive com outra. Imagine-se o caso do sujeito casado que tem uma amante, havendo aqui um concubinato impuro, ou concubinato em sentido estrito (stricto sensu).

O concubinato impuro, por sua vez, é o vínculo formado por pessoas que estão sob o manto de determinadas circunstancias impeditivas, como ocorre com os casados ainda não separados de fato. É o contrário do concubinato puro.

Conforme Gonçalves (2019, p. 674):

As restrições existentes no Código Civil passaram a ser aplicadas somente aos casos de concubinato adulterino, em que o homem vivia com a esposa e, concomitantemente, mantinha concubina. Quando, porém, encontrava-se separado de fato da esposa e estabelecia com a concubina um relacionamento more uxório, isto é, de marido e mulher, tais restrições deixavam de ser aplicadas, e a mulher passava a ser chamada de companheira.

Ou seja, passou-se a “reconhecer” – com a não incidência de várias restrições que antes eram aplicadas – o vínculo não formal existente entre duas pessoas que, de alguma forma, não estariam “impedidas”, como nos casos de separação e viuvez.

No entanto, tudo muda com o advento da Constituição Federal de 1988, fazendo com o que antes era denominado como concubinato puro passasse à condição de união estável, por força do art. 226, §3º, do diploma referido, sendo reconhecida como uma entidade familiar, devendo a lei facilitar a sua conversão em casamento.

Explica Madaleno (2020, p. 1897):

Alterava a Constituição Federal de 1988 os paradigmas socioculturais brasileiros, ao retirar o concubinato do seu histórico espaço marginal e passar a identificá-lo não mais como uma relação aventureira e de segunda categoria, mas, doravante, como uma entidade familiar denominada como união estável, assemelhada ao casamento, com identidade quase absoluta de pressupostos, e com a alternativa de ser transformada em casamento.

Significa afirmar também que a antiga classificação feita entre “concubinato puro” e “concubinato impuro” não mais possui sentido, eis que, atualmente, a expressão “concubinato” é designada apenas para referir-se às relações não eventuais entre duas pessoas que estão impedidas de casar. Assim, não tem como ser utilizada como sinônima de união estável. Esta não é a mesma coisa de “concubinato puro”. Essa ideia somente fazia sentido antes da entrada em vigor da CF/1988 (o que antes denominávamos como concubinato puro passou-se a se chamar de união estável, mas não quer-se afirmar que esta é uma espécie de concubinato).  No mesmo entendimento, Gagliano e Pamplona Filho (2019, p. 466):

A união estável, nesse diapasão, traduz uma constitucional forma de família, motivo pelo qual nem sequer recomendamos as expressões, consagradas pelo uso, de “concubinato puro” (como sinônimo de união estável) e “concubinato impuro” (para significar a relação paralela ao casamento ou mesmo à união estável), pela evidente confusão terminológica.

Portanto, com essa previsão constitucional da figura da união estável como sendo uma modalidade de entidade familiar, várias disposições relativas ao casamento foram – e continuam, progressivamente, sendo – reconhecidas à união estável, no que lhe for compatível, a exemplo dos direitos e deveres conjugais, inclusive os de ordem patrimonial e testamentária, que serão vistos em tópico mais à frente.

 

2      DIFERENÇA ENTRE UNIÃO ESTÁVEL E CONCUBINATO

 

Visto o conceito de união estável e seu tratamento legislativo antes e depois da CF/1988, passa-se agora ao estudo das principais diferenças do referido instituto com o concubinato. Antes, ressalte-se que, neste tópico, caberá ao presente trabalho apenas esclarecer e reafirmar alguns conceitos e entendimentos já vistos em tópico anterior, com a adição de outras afirmações ou argumentações antes não trabalhadas, de forma a melhor compreender a separação dos dois institutos referidos (união estável e concubinato).

Nesse sentido, o concubinato, para os dias de hoje, seria aquela relação amorosa e afetiva firmada entre uma pessoa casada e uma pessoa solteira ou casada. Contudo, nos ensinamentos de Gonçalves (2019, p. 675):

Malgrado a impropriedade da expressão utilizada, deve-se entender que nem todos os impedidos de casar são concubinos, pois o §1º do art. 1.723 trata como união estável a convivência pública e duradoura entre pessoas separadas de fato e que mantêm o vínculo de casamento, não sendo separadas de direito.

Significa dizer que nem toda relação amorosa e afetiva na qual um ou ambos os integrantes são casados constitui concubinato, tendo em vista que essas pessoas podem estar separadas de fato de seus “ex-cônjuges”, na forma do que fora argumentado pelo autor acima citado.

Eis aqui a diferença mais importante entre união estável e concubinato. No primeiro instituto, as pessoas relacionadas são livres, no sentido de que não estão impedidas de se casarem e nem possuem outras relações amorosas com outras pessoas. No segundo conceito, as pessoas envolvidas não estão livres, pois estão impedidas de casarem-se e/ou já possuem outra relação amorosa com outro indivíduo.

Sobre essa diferenciação, Nader (2016, p. 784-785):

No atual nível de evolução legislativa, a união estável e o concubinato distinguem-se em um ponto fundamental: naquela, o homem e a mulher são pessoas livres e podem se casar ou, pelo menos um deles, separado de fato ou formalmente, enquanto no concubinato há outros impedimentos matrimoniais. O denominador comum entre ambos consiste em que as relações entre o casal não são eventuais. As duas figuras se distinguem das relações eventuais, onde inexiste compromisso entre o casal, apenas meros interesses, quase sempre de ordem sexual. O elo não chega a constituir comunhão de vida.

Seguindo o engajamento, a outra diferença existente entre união estável e concubinato é o fato de que, na união, as relações não ocorrem em períodos isolados ou distantes no tempo, mas sim de forma contínua (eventual), pública e estável, com o objetivo de constituir família. É o contrário do concubinato, em que há relações não eventuais (art. 1.727 do CC/2002), sem o compromisso da comunhão de vidas e da constituição de uma família, como posto pelo autor acima citado.

Nesse sentido, lecionam Gagliano e Pamplona Filho (2019, p. 471):

Hoje em dia, o concubinato (relação entre amantes), sob o prisma eminentemente técnico, não pode ser confundido com a união estável, uma vez que, a teor do art. 1.727 do Código Civil – posto que possa gerar determinados efeitos jurídicos, como veremos em capítulo próprio – não consubstancia, em geral, um paradigma ou standard familiar, traduzindo, simplesmente, uma relação não eventual entre o homem e a mulher, impedidos de casar.

Portanto, observa-se que mesmo antes do advento da CF/1988 já existiam claras diferenças entre a união estável, antes chamada de concubinato puro, e o concubinato em seu conceito atual, antes denominado como concubinato impuro. Com o surgimento da nova ordem constitucional, as diferenças ficaram ainda mais claras, pois o legislador equiparou a união estável a uma forma específica de entidade familiar, aplicando-a, no que couber, as disposições relativas ao casamento.

Vistas as diferenças entre união estável e concubinato, passa-se agora ao estudo dos elementos caracterizadores do primeiro instituto, o que ajudará na compreensão do conceito anteriormente explicado.

 

3      ELEMENTOS CARACTERIZADORES DA UNIÃO ESTÁVEL

 

Quanto aos elementos ou requisitos para a caracterização da união estável, a doutrina os classifica em subjetivos e objetivos. Os de ordem subjetiva seriam a comunhão de vidas e o objetivo de constituir família, enquanto que os de ordem objetiva seriam a notoriedade, a estabilidade, a continuidade, a inexistência de impedimentos matrimoniais e, em entendimento adotado neste trabalho, a relação monogâmica.

Alguns autores mencionam a diversidade de sexos como sendo um requisito de ordem objetiva. Contudo, trata-se de regra discriminatória, cuja inconstitucionalidade fora declarada pelo Supremo Tribunal Federal no ano de 2011, no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 132 e da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4277[3], sendo este o entendimento adotado no presente trabalho.

Nas palavras de Gagliano e Pamplona Filho (2019, p. 479):

Conforme veremos em momento oportuno, no sistema aberto, inclusivo e não discriminatório inaugurado a partir da Constituição de 1988, espaço não há para uma interpretação fechada e restritiva que pretenda concluir pela literalidade da norma constitucional (art. 226, § 3.º, CF) ou até mesmo da legislação ordinária (art. 1.723, CC) com o propósito de somente admitir a união estável heterossexual.

Desse modo, somente temos como requisitos essenciais à união estável os seguintes: a) publicidade; b) continuidade; c) estabilidade; d) objetivo de constituir família; e) comunhão plena de vidas; e f) inexistência de impedimentos matrimoniais. A seguir trataremos sobre cada um deles.

O requisito da publicidade diz respeito à ideia de que a união livre entre duas pessoas deve ser conhecida por “toda” a sociedade na qual vivem os companheiros. Não pode ser a união estável caracterizada como um relacionamento clandestino, um “caso”. Nesse sentido, Gonçalves (2019, p. 688):

Não pode, assim, a união permanecer em sigilo, em segredo, desconhecida no meio social. Requer-se, por isso, notoriedade ou publicidade no relacionamento amoroso, ou seja, que os companheiros apresentem-se à coletividade como se fossem marido e mulher (more uxorio). Relações clandestinas, desconhecidas da sociedade, não constituem união estável.

Assim, para que um vínculo existente entre duas pessoas seja considerado como união estável, necessário que haja publicidade, ou seja, que a sociedade na qual vivem os possivelmente companheiros tenha conhecimento acerca da relação livre constituída por eles.

Outro requisito é a continuidade, pelo qual a união estável deve ser contínua, sem longas interrupções. Não se trata de um conjunto de relações eventuais. Constitui-se num vínculo sério e contínuo, em que duas pessoas relacionam-se como se casadas fossem. Sobre tal requisito, argumentam Gagliano e Pamplona Filho (2019, p. 480) que “a união estável não se coaduna com a eventualidade, pressupondo a convivência contínua, sendo, justamente por isso, equiparada ao casamento em termos de reconhecimento jurídico”.

Para que um relacionamento seja considerado como união estável, é preciso também que haja a característica da estabilidade, consistente na afirmação de que o vínculo existente deve ser duradouro, longo. Não se exige tempo mínimo de convívio. A lei não traz essa previsão. Contudo, é necessário que exista um lapso temporal considerável. Nesse sentido, pondera Veloso (2002, p. 112):

[...] o que não se marcou foi um prazo mínimo, um lapso de tempo rígido, a partir do qual se configuraria a união estável, no geral dos casos. Mas há um prazo implícito, sem dúvida, a ser verificado diante de cada situação concreta. Como poderá um relacionamento afetivo ser público, contínuo e duradouro se não for prolongado, se não tiver algum tempo, o tempo que seja razoável para indicar que está constituída uma entidade familiar?

Desse modo, deve o Juiz, analisando o caso concreto, verificar o tempo de duração do relacionamento que se pretende reconhecer como união estável, tendo-se em mente os princípios da proporcionalidade e razoabilidade.

Também é requisito da união estável o objetivo de constituir família, também chamada de “affectio maritalis”, consoante previsão do art. 1.723 do Código Civil. Trata-se da intenção de ambos os companheiros em constituir família, não necessariamente com a existência de uma prole, embora esta possa contribuir para a prova do referido requisito. Por ser requisito de índole subjetiva, sua prova se torna bastante difícil. Nos ensinamentos de Oliveira (2003, p. 133), podem ser verdadeiros indícios dessa intenção de constituir família “a mantença de um lar comum, frequência conjunta a eventos familiares e sociais, eventual casamento religioso, existência de filhos havidos dessa união, mútua dependência econômica, empreendimentos em parceria, contas bancárias conjuntas, etc.”. Ponderam, ainda, Gagliano e Pamplona Filho (2019, p. 482) que, ausente essa finalidade imediata de constituição de família, portanto, a tessitura do núcleo se desfaz, resultando na instabilidade típica de um simples namoro, [...]”.

Outro requisito de índole subjetiva é a comunhão plena de vidas, ou simplesmente convivência “more uxorio”. Percebe-se a identidade/igualdade existente entre a finalidade do casamento e o requisito ora analisado, até porque a união estável é figura decalcada do matrimonio. Trata-se da semelhança ou igualdade da convivência dos companheiros com a existente entre os casados. Nesse sentido, Rizzardo (2019, p. 1603):

Ou seja, é a manifestação da convivência dos companheiros na aparência de marido e esposa. O tratamento revela uma reciprocidade de afeição e respeito. Há uma maneira de vida própria de pessoas casadas. As referências que um faz do outro expressam as situações entre os cônjuges. Os costumes e as atividades exercidas se direcionam ao atendimento dos interesses da família.

Juridicamente, a união estável é instituto decorrente do casamento, razão pela qual é mais do que lógico afirmar que a comunhão de vidas é requisito à sua caracterização.

O último requisito, dentro da linha de pesquisa feita por este trabalho, é a inexistência de quaisquer dos impedimentos matrimoniais indicados pelo art. 1.521 do Código Civil. Segundo o §1º do art. 1.723 do mesmo diploma, “a união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos do art. 1.521; não se aplicando a incidência do inciso VI no caso de a pessoa casada se achar separada de fato ou judicialmente”. Nesse contexto, Gonçalves (2019, p. 691-692):

Os impedimentos baseados no interesse público e com forte conteúdo moral, que representam um obstáculo para que uma pessoa constitua família pelo vínculo do casamento, são aplicáveis, também, para os que pretendem estabelecer família pela união estável. Quem não tem legitimação para casar não tem legitimação para criar entidade familiar pela convivência, ainda que observe os requisitos do caput do art. 1.723 do Código Civil.

Ressalta-se que apenas os impedimentos obstam a caracterização da união estável, não se aplicando as causas suspensivas do art. 1.523 do Código Civil, conforme bem determina o art. 1.723, §2º, da referida legislação.

Por fim, tem-se que alguns autores afirmam a existência de um outro requisito, que justamente é o objeto de estudo desse trabalho. Trata-se da relação monogâmica. Contudo, deixemos para tratar sobre esse elemento em tópico futuro, após a análise dos direitos e deveres decorrentes da união estável e seus efeitos patrimoniais.

 

4      DIREITOS E DEVERES DECORRENTES DA UNIÃO ESTÁVEL

 

Para melhor estruturar o presente trabalho, começaremos a abordar os deveres decorrentes da constituição de uma união estável, pois encontram previsão uniforme e objetiva no art. 1.724 do Código Civil, segundo o qual “as relações pessoais entre os companheiros obedecerão aos deveres de lealdade, respeito e assistência, e de guarda, sustento e educação dos filhos”. Didaticamente, Tartuce (2019a, p. 535) assim os elenca:

a) Dever de lealdade, que guarda relação com o dever de fidelidade, mas que com ele não se confunde. Isso porque a fidelidade é decorrência do casamento exclusivamente. Já a lealdade é gênero do qual fidelidade é espécie. Assim, pelo senso comum, a lealdade inclui a fidelidade, mas não necessariamente, o que depende de uma opção dos companheiros. b) Dever de respeito ao outro companheiro, em sentido genérico. c) Dever de mútua assistência, moral, afetiva, patrimonial e espiritual. d) Dever de guarda, sustento e educação dos filhos.

Observe que a maioria dos deveres aplicáveis à união estável correspondem àqueles previstos no art. 1.566 da legislação acima referida, mas ainda com distinções, como ocorre no dever de lealdade, que seria correspondente ao de fidelidade recíproca.

Como tratado pelo autor acima mencionado, lealdade é o gênero do qual fidelidade é espécie, significando afirmar que o dever de lealdade pode ser cumprido sem necessariamente haver respeito à fidelidade, embora que isso, na prática, seja inviável, pois não há como ser leal ao mesmo tempo em que não se é fiel. Nesse sentido, Nader (2016, p. 793) afirma que “quebra o dever de lealdade o companheiro que namora ou mantém relações íntimas com terceira pessoa, traindo o compromisso de fidelidade, implícito na união estável”.

Ademais, obtempera Gonçalves (2019, p. 695) que, “embora o Código Civil não fale em adultério entre companheiros, a lealdade é gênero de que a fidelidade é espécie. E o dispositivo em apreço exige que eles sejam leais”.

Outro dever decorrente da união estável é o de respeito mútuo, pelo qual os companheiros deverão se abster de ferir a dignidade, honra e a intimidade uns dos outros. É, segundo Nader (2016, p. 794), “inerente às relações sociais em geral e não pode faltar, evidentemente, na vida dos casais”.

A assistência também é dever da união estável, abrangendo tanto o amparo material como também o espiritual. Por tal dever, os conviventes devem manter-se financeira e afetivamente, em razão da comunhão plena de vidas. Novamente, Gonçalves (2019, p. 696) afirma que, “enquanto o dever de assistência imaterial implica a solidariedade que os companheiros devem ter em todos os momentos, bons ou maus, da convivência, a assistência material revela-se no âmbito do patrimônio, especialmente no tocante à obrigação alimentar”.

O último dever típico da união estável, isto é, daqueles que estão previstos no art. 1.724 do Código Civil, é o dever de guarda, sustento e educação dos filhos, segundo o qual os conviventes devem prestar amparo material, afetivo e educacional à prole que eventualmente advir da relação constituída. Nos ensinamentos de Madaleno (2020, p. 1953), dos pais “é o dever de assistir, criar e educar os filhos menores em todas as suas fases de desenvolvimento, até chegarem à idade adulta, quando devem estar preparados para assumirem as suas responsabilidades pessoais e sociais [...]”.

E a coabitação? Trata-se de dever decorrente da união estável, igualmente como acontece no casamento? Para os objetivos deste trabalho, será adotado o entendimento de que a coabitação é sim dever – “natural”, inclusive – que decorre da constituição de uma união estável, mas que não precisa ser de um todo observado.

Tal dever, embora não esteja mencionado no art. 1.724 do Código Civil, e, também, apesar de ser dispensável pelo entendimento ainda em vigor do Supremo Tribunal Federal (Súmula nº 382), decorre da própria natureza da união estável, tendo em vista que, como bem salienta Moura (1979, p. 33), “se as pessoas que entretêm relações sexuais fora do casamento não se dispõem a viver sob o mesmo teto, mas apenas trocarem visitas mais ou menos frequentes, demonstram não querer uma união séria”.

Claro que não se exige que o dever de coabitação seja observado a todo momento e de forma absoluta. Podem os conviventes se afastarem por período determinado por diversas razões, sem que o vínculo da união estável seja desfeito ou se desconfigure.

Embora não precise a coabitação ser seguida a todo momento e de forma absoluta, é evidente seu caráter “natural” em relação à união estável (e também ao casamento), no sentido de que, se há a intenção de constituir união estável ou um vínculo matrimonial, é presumível ou natural que os companheiros ou os cônjuges queiram morar juntos, o que não significa que, para a caracterização ou formação desses institutos, seja indispensável a condição de os companheiros ou cônjuges morarem sob o mesmo teto a todo momento. O referido dever é, portanto, um adendo que reforça o requisito subjetivo do objetivo de constituir família, anteriormente tratado.

Vistos os principais deveres decorrentes da constituição de uma união estável, passa-se agora ao estudo dos direitos dos companheiros, regulados de forma esparsa pelo ordenamento jurídico brasileiro, dentre os quais serão abordados: o direito aos alimentos, à sucessão hereditária e às condições de segurado e dependente da previdência social.

O primeiro deles é o direito aos alimentos, que decorre do dever de mútua assistência antes estudado. Dispõe o art. 1.694 do Código Civil que “podem os parentes, os cônjuges ou companheiros pedir uns aos outros os alimentos de que necessitem para viver de modo compatível com a sua condição social, inclusive para atender às necessidades de sua educação”.

Desse modo, desfeita uma união estável devidamente reconhecida, os companheiros podem pedir uns aos outros os alimentos de que precisarem, devendo-se observar o binômio necessidade-possibilidade previsto no §1º do referido dispositivo, segundo o qual “os alimentos devem ser fixados na proporção das necessidades do reclamante e dos recursos da pessoa obrigada”.

Cessa o referido direito se o credor dos alimentos casar-se, constituir nova união estável ou mantiver concubinato com outra pessoa, bem como se tiver procedimento indigno em relação ao devedor, nos termos do art. 1.708 do Código Civil. Também cessará a obrigação alimentícia caso fique provado em ação revisional que o beneficiário dos alimentos pode sustentar-se sozinho, com seus próprios recursos.

O segundo é o direito à sucessão hereditária, que, inicialmente, tinha recebido tratamento diferenciado com relação aos direitos sucessórios dos cônjuges, haja vista que o art. 1.790 do Código Civil, atualmente considerado inconstitucional, teria tratado a sucessão do(a) companheiro(a) viúvo(a) de forma discriminatória. Nas palavras de Gagliano e Pamplona Filho (2020, p. 2296):

Em vez de buscar uma equiparação que respeitasse a dinâmica constitucional — uma vez que diferença não deve haver entre a viuvez de uma esposa (ou de um marido) e a de uma companheira (ou companheiro), pois ambas mantinham com o falecido um núcleo de afeto —, o legislador, em franca violação do princípio constitucional da vedação ao retrocesso minimizou — e sob certos aspectos aniquilou — o direito hereditário da companheira(o) viúva(o).

Justamente por causa disso é que, no ano de 2017, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento dos Recursos Extraordinários nsº 646.721 e 878.694, fixou a seguinte tese: “No sistema constitucional vigente, é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado, em ambos os casos, o regime estabelecido no art. 1.829 do CC/2002”. Desse modo, superada está a questão dos direitos sucessórios do(a) companheiro(a), pois o art. 1.790 da legislação referida, que antes tratava a situação sucessória da união estável de forma discriminatória, fora declarado inconstitucional, tendo os conviventes o “mesmo” – já que serão aplicadas somente as disposições compatíveis com a união estável – direito à sucessão que os cônjuges possuem.

Os conviventes também possuem direito previdenciários em razão da união estável. A matéria encontra-se regulada na Lei nº 8.213/91 e no Decreto nº 3.048/99, estabelecendo o art. 16, inciso I, do primeiro diploma, que são beneficiários da previdência social, na qualidade de dependentes do segurado, “o cônjuge, a companheira, o companheiro e o filho não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido ou que tenha deficiência intelectual ou mental ou deficiência grave”. Além disso, a condição de dependência dessas pessoas é presumida, a teor do §4º do mesmo dispositivo. O segundo diploma traz as mesmas considerações acima feitas, a título de complementação ou reforço.

Na hipótese de existir mais de um beneficiário, como no caso em que um dos conviventes concorre com o cônjuge (na separação de fato), ex-cônjuge e/ou com os filhos do outro convivente, o benefício pleiteado será rateado entre os dependentes, nos termos do art. 76, §2º, da Lei nº 8.213/91, segundo o qual “o cônjuge divorciado ou separado judicialmente ou de fato que recebia pensão de alimentos concorrerá em igualdade de condições com os dependentes referidos no inciso I do art. 16 desta Lei”.

A doutrina debate intensamente acerca dos direitos previdenciários da amante ou daquela pessoa que, desconhecendo a qualidade de casado(a) de seu/sua parceiro(a), mantém com ela união estável. O tema, contudo, exigiria que fosse tratada a questão das famílias paralelas, quando um cônjuge ou companheiro mantém vínculo amoroso, paralelamente, com outra pessoa, constituindo duas famílias ao mesmo tempo, sem que nenhuma delas tenha conhecimento da outra, algo que difere das relações poligâmicas (relações amorosas espontâneas e voluntárias tidas entre mais de duas pessoas, publicamente). O objeto desse trabalho é verificar a possibilidade ou não das relações poligâmicas, e não a questão das famílias paralelas.

Existem vários outros direitos decorrentes da união estável, aplicando-se a essa basicamente toda a matéria atinente às relações de parentesco, ao reconhecimento de filhos, à guarda, ao nome, ao direito real de usufruto e habitação, etc., antes aplicável somente ao casamento.

Finalizado o estudo dos direitos e deveres decorrentes da constituição de uma união estável, adentraremos neste momento na temática referente aos efeitos patrimoniais desse tipo de relação, tópico em que será abordada principalmente a questão dos regimes de bens.

 

5      EFEITOS PATRIMONIAIS DA UNIÃO ESTÁVEL

 

Além das consequências patrimoniais decorrentes dos direitos acima estudados, tem-se a existência de outros efeitos patrimoniais decorrentes da união estável, cabendo a este trabalho abordar apenas os principais, haja vista que boa parte deles já fora analisada.

Incialmente, traçaremos considerações acerca do regime de bens. Nesse sentido, dispõe o art. 1.725 do Código Civil que, “na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens”.

Desse modo, o regime de bens padrão a ser aplicado à união estável é o da comunhão parcial de bens, também aplicável ao casamento caso as partes nada mencionem sobre. Por esse regime, o patrimônio adquirido por qualquer dos conviventes durante a constância da união estável presume-se de ambos os companheiros. Conforme Dias (2016, p. 249), “adquirido o bem por um, transforma-se em propriedade comum, devendo ser partilhado por metade na hipótese de dissolução do vínculo”.

Entretanto, como o próprio dispositivo alude, há a possibilidade de os conviventes alterarem esse regime por meio de um contrato escrito. Trata-se do contrato de convivência, que, de acordo com Gagliano e Pamplona Filho (2020, p. 1986) “traduz verdadeiro pacto firmado entre os companheiros, por meio do qual são disciplinados os efeitos patrimoniais da união, a exemplo da adoção de regime de bens diverso daquele estabelecido por lei”.

Salienta, ainda, Cahali (2002, p. 306):

O contrato de convivência não tem força para criar a união estável, e, assim, tem sua eficácia condicionada à caracterização, pelas circunstâncias fáticas, da entidade familiar em razão do comportamento das partes. Vale dizer, a união estável apresenta-se como conditio juris ao pacto, de tal sorte que, se aquela inexistir, a convenção não produz os efeitos nela projetados.

Ou seja, para que o contrato de convivência tenha validade e eficácia, necessário, por óbvio, que a união estável já tenha sido constituída pelas circunstâncias fáticas vivenciadas pelos conviventes. Não se cria uma união estável por meio de um contrato. Tal modalidade familiar caracteriza-se por um fato da vida.

Portanto, como afirmado, os companheiros podem firmar outro tipo de regime de bens por meio do contrato de convivência, assim como os noivos o fazem por meio do pacto antenupcial.

Quanto à necessidade da outorga marital ou uxória na união estável, a lei é omissa. No entanto, parte da doutrina compreende que é aplicável assim como acontece no casamento, em razão do regime da comunhão parcial de bens – ou outro que importe o vínculo da propriedade comum. Em sentido contrário, o Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento segundo o qual “não é nula nem anulável a fiança prestada por fiador convivente em união estável sem a outorga uxória do outro companheiro”. Veja a ementa do julgado do qual adveio esse entendimento (REsp nº 1.299.866/DF):

DIREITO CIVIL-CONSTITUCIONAL. DIREITO DE FAMÍLIA. CONTRATO DE LOCAÇÃO. FIANÇA. FIADORA QUE CONVIVIA EM UNIÃO ESTÁVEL. INEXISTÊNCIA DE OUTORGA UXÓRIA. DISPENSA. VALIDADE DA GARANTIA. INAPLICABILIDADE DA SÚMULA N. 332/STJ. 1. Mostra-se de extrema relevância para a construção de uma jurisprudência consistente acerca da disciplina do casamento e da união estável saber, diante das naturais diferenças entre os dois institutos, quais os limites e possibilidades de tratamento jurídico diferenciado entre eles. 2. Toda e qualquer diferença entre casamento e união estável deve ser analisada a partir da dupla concepção do que seja casamento - por um lado, ato jurídico solene do qual decorre uma relação jurídica com efeitos tipificados pelo ordenamento jurídico, e, por outro, uma entidade familiar, dentre várias outras protegidas pela Constituição. 3. Assim, o casamento, tido por entidade familiar, não se difere em nenhum aspecto da união estável - também uma entidade familiar -, porquanto não há famílias timbradas como de "segunda classe" pela Constituição Federal de 1988, diferentemente do que ocorria nos diplomas constitucionais e legais superados. Apenas quando se analisa o casamento como ato jurídico formal e solene é que as diferenças entre este e a união estável se fazem visíveis, e somente em razão dessas diferenças entre casamento - ato jurídico - e união estável é que o tratamento legal ou jurisprudencial diferenciado se justifica. 4. A exigência de outorga uxória a determinados negócios jurídicos transita exatamente por este aspecto em que o tratamento diferenciado entre casamento e união estável é justificável. É por intermédio do ato jurídico cartorário e solene do casamento que se presume a publicidade do estado civil dos contratantes, de modo que, em sendo eles conviventes em união estável, hão de ser dispensadas as vênias conjugais para a concessão de fiança. 5. Desse modo, não é nula nem anulável a fiança prestada por fiador convivente em união estável sem a outorga uxória do outro companheiro. Não incidência da Súmula n. 332/STJ à união estável. 6. Recurso especial provido.

Como se retira da leitura do julgado, a dispensa da outorga uxória ou marital na união estável seria devida apenas quando o negociante não sabia do fato de que a outra parte mantinha união estável com outra pessoa. Tem-se, aqui, a incidência do princípio da boa-fé objetiva.

Entendemos pela aplicabilidade da regra da outorga uxória ou marital à união estável, tendo em vista que a essência dessa necessidade está contida no fato de que os bens tidos durante a relação matrimonial ou de convivência estável são de propriedade comum do casal ou dos conviventes, razão pela qual apenas um dos cônjuges ou companheiro não pode alienar o bem sem a autorização do outro. Nesse sentido, Dias (2016, p. 251):

Todavia, como a limitação é imposta pela lei a todo e qualquer regime de bens (exceto ao regime da separação absoluta), não há como afastar a mesma exigência em sede de união estável em que vigora o regime da comunhão parcial. Reconhecida a união estável como entidade familiar, é necessário impor as mesmas limitações, para salvaguardar o patrimônio do casal e proteger terceiros de boa-fé. Assim, também cabe aplicar a Súmula do STJ que proclama a ineficácia total da fiança prestada por somente um do par.

O enunciado de súmula referido pela autora acima mencionada é o de nº 332 do STJ, segundo a qual “a fiança prestada sem autorização de um dos cônjuges implica a ineficácia total da garantia”. Aplica-se esse entendimento a depender da natureza do regime de bens escolhido pelos conviventes, ressalvando-se o entendimento indicado em parágrafos anteriores, pelo qual não se aplica a referida súmula nos casos em que um dos contratantes não sabia que a outra parte mantinha união estável com outra pessoa, incidindo o preceito da boa-fé objetiva.

Por fim, cabe mencionar outro efeito patrimonial importante, consistente na proteção da impenhorabilidade conferida ao bem de família pela Lei nº 8.009/90. É certo afirmar que os conviventes também possuem direito a esse benefício, pois o art. 1º da referida lei estabelece que “o imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza [...]” (BRASIL, 1990). Ao indicar o termo “entidade familiar”, o legislador quis também compreender a união estável, por disposição constitucional contida no art. 226, §3º, da Constituição Federal de 1988, segundo o qual, “para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”.

Vistos os principais efeitos patrimoniais decorrentes da união estável, passa-se agora ao estudo da monogamia como requisito (im)prescindível à sua constituição, traçando os pontos contrários e favoráveis à união estável composta por mais de duas pessoas (poliamorismo).

 

6      A MONOGAMIA COMO ELEMENTO (IM)PRESCINDÍVEL PARA A CARACTERIZAÇÃO DA UNIÃO ESTÁVEL

 

Quando da análise dos requisitos para a caracterização de uma união estável, afirmamos que alguns autores do Direito Civil concordam no sentido de ser a monogamia um desses pressupostos. Mas no que ou em que esse debate se funda?

A divergência gira em torno da seguinte pergunta: é possível a formação de uma união estável a partir de vários vínculos afetivos constituídos entre duas ou mais pessoas, numa relação aberta e múltipla (poliamorismo)?

Pois bem. Conceituando esse fenômeno, tem-se a existência de várias pessoas mantendo abertamente relações afetivas e amorosas entre si, situação não admitida no casamento, pois este somente é possível entre duas pessoas, levando-se em consideração interpretação sistemática do ordenamento jurídico brasileiro, que consagra a finalidade do matrimônio como sendo a comunhão plena de vidas entre duas pessoas (art. 1.511 do Código Civil), impedindo as pessoas já casadas – enquanto assim permanecerem – de casarem-se novamente (art. 1.521, inciso VI, do referido diploma), penalizando, inclusive, aqueles que tentarem burlar essa regra (crime de bigamia – art. 235 do Código Penal).

Podemos encontrar dispositivos legais semelhantes tratando da união estável, a exemplo do art. 1.723, §1º, do Código Civil, segundo o qual “a união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos do art. 1.521; não se aplicando a incidência do inciso VI no caso de a pessoa casada se achar separada de fato ou judicialmente”. Interpretação interessante pode ser retirada desse trecho legal, no sentido de que, já que não é possível a caracterização de uma união estável envolvendo uma pessoa já casada, admitindo, contudo, essa possibilidade caso haja separação de fato e/ou judicial, o legislador entendeu que as relações afetivas matrimoniais e convivenciais somente poderiam se dar de forma única, com exclusividade, entre duas pessoas. Na separação de fato ou judicial, já não existe a anterior exclusividade, razão pela qual admite-se a constituição de uma nova união estável pela pessoa separada.

A nível constitucional, tem-se que, embora a Constituição Federal de 1988, em seu art. 226, §3°, tenha reconhecido a união estável como entidade familiar autônoma – possuindo, contudo, raízes na figura do casamento -, não há, dentro do corpo constitucional, norma permissiva expressa no sentido de prever a legalidade e legitimidade das relações poligâmicas. Também não há tal expressividade nas normas infraconstitucionais. Doutro lado, vê-se que, adotando uma interpretação literal e sistemática do texto constitucional com a legislação inferior, a monogamia é o princípio ou ideia que prevalece no ordenamento jurídico brasileiro.

Tanto é que o STF, no julgamento recente do Recurso Extraordinário 1.045.273/SE, em regime de Repercussão Geral, fixou a seguinte tese:

A preexistência de casamento ou de união estável de um dos conviventes, ressalvada a exceção do artigo 1.723, § 1º, do Código Civil, impede o reconhecimento de novo vínculo referente ao mesmo período, inclusive para fins previdenciários, em virtude da consagração do dever de fidelidade e da monogamia pelo ordenamento jurídico-constitucional brasileiro.

Pelo julgado, observa-se que a maioria dos Ministros que compõem do STF entendeu pela impossibilidade do reconhecimento de vínculos concomitantes de união estável, esclarecendo que, efetivamente, o que vigora em nosso ordenamento jurídico é o princípio da monogamia.

Mais uma vez, a união estável fora equiparada ao casamento, no sentido dos efeitos sucessórios e post mortem.

Dessa forma, verifica-se que as relações de união estável fundam-se na monogamia, pois, juridicamente, tal entidade familiar decorre do casamento. Nesse sentido, Gonçalves (2019, p. 692):

Como também ocorre nas uniões conjugais, o vínculo entre os companheiros deve ser único, em face do caráter monogâmico da relação. Não se admite que pessoa casada, não separada de fato, venha a constituir união estável, nem que aquela que convive com um companheiro venha a constituir outra união estável. A referência aos integrantes da união estável, tanto na Constituição Federal como no novo Código Civil, é feita sempre no singular.

De acordo com o referido autor, embora a monogamia não tenha previsão expressa no ordenamento jurídico brasileiro, pode-se retirar interpretação no sentido de que as relações matrimoniais e convivenciais devem ser monogâmicas.

Tal entendimento pode ser retirado, mais uma vez, da redação do parágrafo único do art. 1.723, §1º, do Código Civil, que veda a constituição de união estável sob a vigência de alguma das causas impeditivas do casamento. E uma dessas causas é justamente a que incide sobre as pessoas já casadas, salvo se essas estiverem separadas de fato ou judicialmente. Essa exceção trazida pelo dispositivo legal demonstra, novamente, que a união estável é, por natureza, monogâmica.

Nesse sentido, as relações afetivas e amorosas tidas fora daquele relacionamento exclusivo fundado no casamento ou em uma união estável enquadrar-se-iam no conceito de concubinato previsto no art. 1.727 do Código Civil, pelo qual “as relações não eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de casar, constituem concubinato”. Tais relações não eventuais tidas por pessoas impedidas de casarem-se ou constituir união estável ainda encontram óbices na lei e jurisprudência brasileiras no que se refere ao reconhecimento de direitos.

Admite-se, contudo, o reconhecimento da união estável putativa, ou seja, daquele relacionamento afetivo e amoroso contraído por alguém de boa-fé com uma pessoa casada ou que já tinha união estável constituída. O Superior Tribunal de Justiça já reconhece esse tipo de vínculo, desde que seja comprovada a boa-fé daquele que pleiteia o reconhecimento da união estável putativa tida com uma pessoa casada e não separada de fato (TARTUCE, 2019b). Nesses casos, a pessoa de boa-fé não tem conhecimento acerca da qualidade de cônjuge ou companheiro da outra pessoa com a qual decidiu contrair relações afetivas e amorosas. Logo, não haveria a intenção de constituir o poliamorismo (único núcleo familiar composto por várias pessoas que se relacionam afetiva e amorosamente, de forma espontânea e consciente), mas sim uma simples união estável com aquela pessoa casada ou já convivente, estando essas condições desconhecidas pela outra parte.

Os autores que defendem a ideia do poliamorismo argumentam, principalmente, os princípios da afetividade e autonomia da vontade, ambos plenamente aplicáveis às relações familiares. Contudo, deve-se ter em mente que grande parte das normas atinentes ao Direito de Família, especialmente as de caráter existencial, são de ordem pública, portanto indisponíveis.

Nos ensinamentos de Tartuce (2019a, p. 23):

Pois bem, é cediço que as normas de Direito de Família são essencialmente normas de ordem pública ou cogentes, pois estão relacionadas com o direito existencial, com a própria concepção da pessoa humana. No tocante aos seus efeitos jurídicos, diante da natureza dessas normas, pode-se dizer que é nula qualquer previsão que traga renúncia aos direitos existenciais de origem familiar, ou que afaste normas que protegem a pessoa.

Significa que o que está em “jogo” não são apenas interesses particulares – daqueles que querem que a lei reconheça seu vínculo poliafetivo –, mas também interesses coletivos. Mais do que isso, interesses públicos, de toda a sociedade. A afetividade e a autonomia da vontade não possuem o condão de romper tais normas a esse nível de profundidade.

Como exemplo de interesse público, mencione-se o fato de que, ao adotar uma interpretação ampla e arbitrária a partir de conceitos indeterminados e abertos trazidos pela CF/1988, o Poder Judiciário acabaria por legislar no lugar do Poder Legislativo, ao qual é atribuída a função constitucional de elaborar leis e demais atos normativos em espécie. Haveria violação, aqui, ao princípio máximo da separação dos poderes.

Com efeito, a interpretação é uma ótima ferramenta para suprir eventuais lacunas existentes na lei. Contudo, é necessário compreender que tal atividade cognitiva deve limitar-se à própria escrita e ao próprio sentido do texto interpretado. Conforme visto anteriormente, se a própria CF/1988, em suplemento ao Código Civil de 2002, demonstra que a monogamia é princípio adotado pelo ordenamento brasileiro (e não a poligamia), tem-se que uma interpretação a partir de conceitos abstratos como a dignidade da pessoa humana é, no mínimo, extrapolar os limites da competência dada constitucionalmente ao Poder Judiciário.

Se a norma constitucional ou infraconstitucional quisesse reconhecer e validar as relações poligâmicas, seria expressa nesse sentido, haja vista se tratar, repita-se, de norma de ordem pública.

Portanto, do ponto de vista estritamente jurídico e para efeitos de estudo do presente trabalho, entendemos que ainda não há como reconhecer as chamadas uniões plurais, eis que a monogamia, levando-se em consideração interpretação literal e sistemática do ordenamento jurídico brasileiro (CF/1988 e legislação infraconstitucional), é requisito essencial à caracterização da união estável.

 

§ CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Viu-se nesse trabalho, portanto, os elementos mais importantes quanto ao instituto da união estável, tais como o conceito e evolução jurídica, a diferenciação com o concubinato, os elementos caracterizadores, os direitos e deveres decorrentes, seus efeitos patrimoniais e, por fim, o debate puramente jurídico acerca da imprescindibilidade ou não da monogamia como requisito para a sua constituição.

No último ponto, concluiu-se que a monogamia, assim como no casamento, é elemento essencial para a caracterização de uma união estável, não sendo admitido no ordenamento jurídico brasileiro atual a constituição de relações plurais (poliamorismo), devendo o vínculo afetivo e amoroso constituído entre uma pessoa já casada (ou em união estável) e não separada de fato e uma pessoa livre ou não, estando essa consciente da qualidade de cônjuge ou companheiro do outro indivíduo, ser reconhecido como uma mera relação de concubinato, que ainda encontra forte resistência por parte da lei e da jurisprudência brasileiras.

Portanto, do ponto de vista jurídico, ainda que os defensores do poliamorismo argumentem a existência dos princípios da afetividade e da autonomia da vontade no âmbito das relações familiares, não há como negar a soberania das normas de ordem pública existentes no atual Código Civil e na atual Constituição Federal – principalmente as relacionadas com o princípio máximo da separação dos poderes –, aliada à interpretação literal e sistemática entre esses dois diplomas, razão pela qual considera-se a monogamia como elemento imprescindível para a caracterização da união estável e como princípio regente das relações familiares, conforme se retira de julgado recentíssimo do próprio STF, guardião da CF/1988, o que não impede, por óbvio, a constituição de uniões estáveis sucessivas ou de uniões estáveis putativas, bem como de relações meramente factuais. Se forem levadas em consideração ideias filosóficas-políticas, podemos entender pela possibilidade do poliamorismo. Contudo, não é o caso da ordem jurídica nacional, como visto em tópico anterior.

 

REFERÊNCIAS

 

AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Comentários ao Código Civil. v. 19. São Paulo: Saraiva, 2003.

 

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [1988]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 15 nov. 2020.

 

BRASIL. Lei nº 8.009, de 29 de março de 1990. Dispõe sobre a impenhorabilidade do bem de família. Brasília, DF: Presidência da República, [1990]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8009.htm. Acesso em: 18 nov. 2020.

 

BRASIL. Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991. Dispõe sobre os planos de benefícios da Previdência Social e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, [1991]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8213compilado.htm. Acesso em: 18 dez. 2020.

 

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Informações adicionais e declarações dos autores

(integridade científica)

 

Declaração de conflito de interesses (conflict of interest declaration): os autores confirmam que não há conflitos de interesse na realização das pesquisas expostas e na redação deste artigo.

 

Declaração de autoria e especificação das contribuições (declaration of authorship): todas e somente as pessoas que atendem os requisitos de autoria deste artigo estão listadas como autores; todos os coautores se responsabilizam integralmente por este trabalho em sua totalidade.

 

·      Ozório Nonato de Abrantes Neto: projeto e esboço inicial (conceptualization), desenvolvimento da metodologia (methodology), coleta e análise de dados (data curation), levantamento bibliográfico (investigation), revisão bibliográfica (investigation), redação (writing – original draft), participação ativa nas discussões dos resultados (validation), revisão crítica com contribuições substanciais (writing – review and editing), aprovação da versão final (approval of the final version).

 

·      Maria dos Remédios de Lima Barbosa: participação ativa nas discussões dos resultados (validation), revisão crítica com contribuições substanciais (writing – review and editing), aprovação da versão final (approval of the final version), revisão ortográfica (orthographic review) e orientação geral (general orientation).

 

Declaração de ineditismo e originalidade (declaration of originality): os autores asseguram que o texto aqui publicado não foi divulgado anteriormente em outro meio e que futura republicação somente se realizará com a indicação expressa da referência desta publicação original; também atestam que não há plágio de terceiros ou autoplágio.

 

Dados do processo editorial

· Recebido em: 05/01/2021

· Controle preliminar e verificação de plágio: 05/01/2021

· Avaliação 1: 15/01/2021

· Avaliação 2: 01/02/2021

· Decisão editorial preliminar: 01/02/2021

· Retorno rodada de correções: 22/02/2021

· Decisão editorial final: 22/02/2021

· Publicação: 25/02/2021

Equipe editorial envolvida

·  Editor-Chefe: FQP

·  Assistente-Editorial: MR

·  Revisores: 02

COMO CITAR ESTE ARTIGO

ABRANTES NETO, Ozório Nonato de; BARBOSA, Maria dos Remédio de Lima. A união estável no direito brasileiro e a monogamia como elemento (im)prescindível para a sua caracterização. Revista de Direito da Faculdade Guanambi, Guanambi, v. 7, n. 02, e318, jul./dez. 2020. doi: https://doi.org/10.29293/rdfg.v7i02.318. Disponível em: http://revistas.faculdadeguanambi.edu.br/index.php/Revistadedireito/article/view/318. Acesso em: dia mês. ano.



* Editor: Prof. Dr. Flávio Quinaud Pedron. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4259444603254002. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4804-2886.

[1] Graduando em Direito pela UFCG. Membro do Núcleo de Estudos Jurídicos e Sociais em Direito de Família. Lattes: http://lattes.cnpq.br/2205839561841169. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7782-4305.

[2] Doutora em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidad del Museo Social Argentino (UMSA). Especialista em Direito do Trabalho pela Universidade Potiguar (UNP). Bacharela em Direito pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Professora efetiva da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). Membro-pesquisadora do Projeto de Pesquisa Direito e Literatura: uma abordagem jurídica e socioeducacional. Integrante do Núcleo de Estudos Jurídicos e Sociais em Direito de Família. Lattes: http://lattes.cnpq.br/8274225735049769. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2363-0702.

[3] Para visualizar uma discussão mais profunda sobre o julgamento realizado pelo STF, vide Vecchiatti (2019, 2020).