O inquérito policial e o indiciamento sob a perspectiva do modelo constitucional de processo penal

Police inquiry and indictment from the perspective of the constitutional model of criminal process

 

 

Paula Brener[1]

Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) – Belo Horizonte/MG

brener.paula@outlook. com

 

 

RESUMO: O presente artigo tem por objeto o inquérito policial, em especial o indiciamento do acusado. O objetivo do trabalho é analisar, de forma didática, os aspectos gerais do inquérito policial sob a ótica democrática, expondo o seu caráter estigmatizador e invasivo sobre a esfera jurídica do indivíduo. Busca-se ainda demonstrar a importância dos níveis de controle do poder punitivo, especialmente do indiciamento formal, como instrumento para a limitação da seletividade do inquérito e sua instrumentalização política. Para a articulação dos argumentos, o trabalho se valeu da metodologia do pensamento orientado a problemas, de modo a aproximar as reflexões teóricas da prática, demonstrando sua relevância concreta. Para responder aos problemas expostos, propõe-se a realização de uma investigação teórica, com prioridade para a análise de conteúdo com vistas à compreensão crítica do tema-problema e à elaboração de propostas de solução para o caso apresentado. Dessa forma, a proposta consiste em uma pesquisa de vertente jurídico-dogmática, de tipo compreensivo-propositivo, em que predomina a utilização do raciocínio indutivo-dedutivo. Os resultados apontam para a urgência das reflexões sobre a justiça procedimental no processo penal, percebendo que método e respeito às determinações formais dos atos que compõem os procedimentos criminais são os elementos que conferem segurança jurídica ao indivíduo, bem como afastam os riscos de instrumentalização do aparato Estatal para fins políticos ou para a simples satisfação de desejos e expectativas retributivas da sociedade.

Palavras-chave: Estado Democrático de Direito. Indiciamento. Inquérito policial. Processo Penal. Segurança jurídica.

ABSTRACT: The present article aims to analyse police inquiry, in particular the preliminary indictment of the defendant. The objective of the work is to analyse, in a didactic way, the general aspects of the police investigation from a democratic perspective, exposing its stigmatizing and invasive character over the individual's legal sphere. It also seeks to demonstrate the importance of levels of control of the punitive power, especially the formal preliminary indictment, as an important tool for limiting the selectivity of the investigation and its political instrumentalization. For the articulation of the arguments, the work used the methodology of problem-oriented thinking, in order to bring theoretical reflections to practice, demonstrating its concrete relevance. In order to answer the exposed problems, it is proposed a theoretical investigation, with priority for content analysis with a view to a critical understanding of the problem-theme and the elaboration of solution proposals for the case presented. Thus, the proposal consists of a legal-dogmatic research, of a comprehensive-propositional type, in which the use of inductive-deductive reasoning predominates. The results point to the urgency of reflections on procedural justice in criminal proceedings, realizing that method and respect for the formal determinations of the acts that make up criminal proceedings are the elements that provide legal security to the individual, as well as remove the risks of instrumentalization of the State apparatus for political purposes or for the simple satisfaction of society's desires and retributive expectations.

Keywords: Criminal proceedings. Democratic state. Indictment. Legal certainty. Police investigation.

 

SUMÁRIO: INTRODUÇÃO; 1 INVESTIGAÇÃO PRELIMINAR PELA POLÍCIA: COMPREENDENDO O INQUÉRITO POLICIAL; 2 A IMPORTÂNCIA CONSTITUCIONAL DA IMPUTAÇÃO CRIMINAL PRELIMINAR; 3 A IMPUTAÇÃO PRELIMINAR E AS PRISÕES NA FASE DE INQUÉRITO; 3.1 Prisão temporária; 3.2 Prisão em flagrante; 3.3 Prisão Preventiva; 3.4 Liberdade provisória e intervenção mínima; 4 ARQUIVAMENTO E EXCESSO DE PRAZO: A CELERIDADE COMO UM DIREITO FUNDAMENTAL; CONSIDERAÇÕES FINAIS; REFERÊNCIAS.

 

SUMMARY: INTRODUCTION; 1 PRELIMINARY INVESTIGATION BY THE POLICE: UNDERSTANDING THE POLICE INVESTIGATION; 2 THE CONSTITUTIONAL IMPORTANCE OF THE PRELIMINARY CRIMINAL IMPUTATION; 3 PRELIMINARY IMPUTATION AND PRISONS IN THE INVESTIGATION PHASE; 3.1 Temporary arrest; 3.2 Arrest for flagrant offense; 3.3 Preventive Arrest; 3.4 Provisional freedom and minimal intervention; 4 FILING AND EXCESSING THE TERM: CELERITY AS A FUNDAMENTAL RIGHT; FINAL CONSIDERATIONS; REFERENCES.

 

§ Introdução

 

Vive-se um contexto de recrudescimento penal, marcado pela crescente midiatização das investigações criminais preliminares e pela banalização da excepcionalidade das medidas interventivas do Estado. Percebe-se em muitos casos uma instrumentalização excessivamente simbólica do processo penal, voltada para atender a uma massa imediatista que busca a estabilização de suas expectativas por meio de uma agenda de enfrentamento ao crime (MARTINS, 2013). Nesse contexto, o estudo do inquérito policial sob uma perspectiva constitucionalmente orientada assume especial relevância, no sentido de permitir ao estudante e aos profissionais do direito um olhar crítico sobre a função democrática da investigação criminal preliminar, do instituto do indiciamento e da importância dos instrumentos de controle ao poder punitivo estatal.

Destarte, o objetivo do trabalho é analisar, de forma didática, os aspectos gerais do inquérito policial sob a ótica democrática, expondo o seu caráter estigmatizador e invasivo sobre a esfera jurídica do indivíduo. Em face a essa natureza imanente ao processo, buscar-se-á demonstrar a importância dos níveis de controle do poder punitivo, no sentido de limitar a seletividade do inquérito e sua instrumentalização política. A análise crítica dessas questões será desenvolvida a partir da técnica do pensamento orientado para problemas. Trata-se de um método interessante para a aproximação entre a teoria e a prática, tornando a argumentação mais compreensível e evidenciando a aplicabilidade concreta das soluções eventualmente alcançadas[2]. Assim, apresenta-se o seguinte caso:

CASO: A partir de um termo de colaboração premiada firmado pelo Ministério Público Federal e um colaborador C, homologado judicialmente, foi instaurado um procedimento criminal de investigações contra o Réu R, indiciado pelo crime de corrupção ativa (artigo 333 do Código Penal)[3]. Durante as investigações, foi requerida a prisão temporária de R pelo Ministério Público Federal sob o fundamento da imprescindibilidade para as investigações do inquérito policial, a qual foi decretada pelo Juiz pelo prazo de 05 dias, findos os quais foi solto. Após 120 dias de investigações, apenas foram apresentados elementos de corroboração da delação por C, sem que fossem encontrados novos elementos de prova, sendo levados os autos para o Juiz, requerendo-se a dilação do prazo para as investigações. Nesse caso, está-se diante de uma prisão temporária legal? E deve ser concedido novo prazo para as investigações?

Variante: Suponha-se que, em lugar da prisão temporária, tenha sido requerida e decretada prisão preventiva, fundamentada na conveniência da instrução criminal, face à verificação de concretas tentativas de ocultação de provas por R. Nesse caso, está-se diante de uma prisão legal?

Para responder aos problemas expostos, propõe-se a realização de uma investigação teórica, com prioridade para a análise de conteúdo com vistas à compreensão crítica do tema-problema e à elaboração de propostas de solução para o caso apresentado. Nomeadamente, o procedimento incialmente previsto orienta-se pelo levantamento de referências bibliográficas, a sistematização dos dados encontrados, a análise crítica das informações organizadas, articuladas para a formulação de uma proposta de solução ao caso problema.

Dessa forma, a proposta consiste em uma pesquisa de vertente jurídico-dogmática, de tipo compreensivo-propositivo, em que predomina a utilização do raciocínio indutivo-dedutivo. O presente trabalho se desenvolverá preponderantemente a partir do levantamento e análise crítica de dados provenientes de fontes diretas secundárias, consistentes em estudos doutrinários publicados sob a forma de monografias e artigos científicos. Será também relevante, ainda que em menor volume, a análise de fontes diretas primárias, como precedentes judiciais, leis e a Constituição.

O presente trabalho se desenvolve sob uma perspectiva garantista, tomando por base um modelo de processo penal constitucionalmente orientado e situado em um Estado Democrático de Direitos. Sob esta ótica, no que concerne ao inquérito policial, o presente artigo se estrutura a partir da obra de Johnny Wilson Batista Guimarães, Imputação criminal preliminar e indiciamento (2017). Segundo o autor – marco teórico adotado no presente trabalho – o modelo constitucionalmente orientado de inquérito policial deve ter por função a salvaguarda do indivíduo, sendo o indiciamento importante ferramenta de controle do procedimento. É a partir desses pressupostos que se desenvolverão os estudos propostos.

No primeiro tópico serão abordados os aspectos gerais que caracterizam o inquérito policial como espécie de investigação preliminar conduzida pela polícia. Serão abordados, especialmente, seu conceito, sua natureza e sua função em um Estado Democrático de Direitos. Em um segundo momento se discutirá a importância constitucional do indiciamento, como uma garantia do acusado e um mecanismo que assegura mais um nível de controle sobre o sistema punitivo.  No terceiro ponto serão trabalhadas as prisões na fase de inquérito, sob a ótica de princípios fundamentais que lhe impõem balizas. Será ainda trabalhado, em um quarto momento, o encerramento do inquérito Policial por seu arquivamento, com destaque para o princípio da celeridade e a questão do excesso de prazo. Por fim, serão apresentadas as conclusões do trabalho.

 

1          INVESTIGAÇÃO PRELIMINAR PELA POLÍCIA: COMPREENDENDO O INQUÉRITO POLICIAL

 

O Inquérito Policial é a espécie mais comum de investigação preliminar, aquela conduzida pela Polícia Judiciária. O gênero das Investigações Preliminares abarca diversas espécies, desde as investigações parlamentares (e.g. Comissão Parlamentar de Inquérito – CPI), o inquérito policial militar e, aquele que nos interessa no presente trabalho, o Inquérito Policial.

No Brasil, consiste o inquérito policial em um procedimento administrativo, de natureza inquisitorial, o qual se desenvolve sem a participação em contraditório do indiciado, destinatário do provimento que potencialmente ensejará a denúncia e a deflagração da ação penal[4]. Adota-se, portanto, um sistema bifásico de persecução, caracterizado em sua primeira etapa pelo procedimento administrativo pré-processual (a investigação preliminar) e, após o oferecimento da denúncia pelo Ministério Público, a sua segunda etapa (o processo penal)[5].

O conjunto de atos que compõem o procedimento são conduzidos pela polícia judiciária, atividade atualmente a cargo da Polícia Civil dos Estados e da Polícia Federal. Ao contrário do que o termo induziria a concluir, a Polícia Judiciária não integra o Poder Judiciário, mas pertence aos quadros do Poder Executivo. O uso do termo judiciária apenas informa qual a atividade exercida, no sentido de composição do inquérito policial que potencialmente instruirá um processo penal na justiça (BADARÓ, 2017, p. 121). Assim, cabe à Polícia desenvolver os atos de investigação de modo a compor o inquérito policial, o qual Michel Misse compreende como a forma jurídica que as investigações devem tomar para chegar à justiça (2010, p. 9-10). Para o autor, seria, portanto, como um relatório, consubstanciado pelos elementos de prova, depoimentos, transcritos, perícias, etc. 

O inquérito é, portanto, o procedimento formal pelo qual o Estado perseguiria as condutas que atentem contra o bem jurídico. Entretanto, embora constitua atividade administrativa inquisitorial e instrumento do sistema repressivo Estatal, “a persecução penal não pode causar gravames abusivos à liberdade do imputado e muito menos atingir sua incolumidade pessoal [...]” (FREDERICO MARQUES, 1980, p. 170). Noutros termos, em um Estado Democrático de Direito, mesmo a fase inquisitória do procedimento criminal deve se conformar aos parâmetros mínimos dos direitos humanos positivados na Constituição.

Sob uma ótica conforme a esse modelo de Estado, buscando uma compreensão do inquérito que melhor se amolde aos parâmetros constitucionais, as finalidades do inquérito policial voltam-se também para o indivíduo, protegendo-o de acusações infundadas[6]. Nesse contexto, o inquérito assume a função central de barreira de proteção do indivíduo frente ao Estado (GUIMARÃES, 2017, p. 45). E para isso, os direitos fundamentais positivados na Constituição na forma de princípios, como a presunção da inocência e o devido processo, possuem papel central, funcionando como informadores do método de desenvolvimento das investigações, bem como parâmetros de sua regularidade e de sua legitimidade. Sob essa ótica, o inquérito policial funciona como um filtro, uma contenção à “sanha punitivista da opinião pública e outras demandas menos nobres” (GUIMARÃES, 2017, p. 43).

Relevante parte da doutrina aponta, ainda, como função central do inquérito policial a apuração do fato oculto[7]. Esse posicionamento é, contudo, questionável por seu viés correspondentista. O próprio termo “apurar” cujo significado é também o de tornar-se puro ou purificar[8], denota a problemática ideia de que há uma verdade real a ser revelada por meio das investigações. Percebendo o problema da formulação tradicional, Johnny Wilson Batista Guimarães propõe a reformulação dessa função do processo penal no contexto democrático, compreendida como a “reconstrução histórica do fato, mediante a coleta lógico/racional de evidências, a fim de propiciar subsídios suficientes para a verificação de justa causa para a propositura de ação penal, caso haja lesão a bem jurídico material” (GUIMARÃES, 2017, p. 52).

Por fim, o processualista penal deve se atentar a uma terceira função que se atribui ao inquérito policial, a qual na verdade consiste em um desvio. Trata-se da função simbólica da instrução preliminar, no sentido de demonstrar a atuação do Estado no enfrentamento ao crime, buscando, na expressão de Rui Cunha Martins (2013, p. 100), a estabilização de expectativas sociais. O perigo nesse tipo de identificação funcional do inquérito realizada de forma acrítica está em menosprezar as implicações estigmatizantes e consequências pessoais resultantes da simples instauração de inquérito policial, o qual repercute nos mais diversos âmbitos da vida do investigado, muitas vezes de forma permanente.

 

2          A IMPORTÂNCIA CONSTITUCIONAL DA IMPUTAÇÃO CRIMINAL PRELIMINAR

 

Compreendida a invasividade do inquérito policial e sua repercussão estigmatizadora sobre o indivíduo, coloca-se em questão a caracterização deste como indiciado. Uma das questões mais discutidas no âmbito do inquérito policial é a imputação criminal preliminar, também chamada indiciamento. A percepção do caráter inquisitorial do inquérito, bem como os prejuízos causados ao sujeito levam a fortes discussões em torno inconstitucionalidade do indiciamento[9].

O instituto do indiciamento encontra-se disposto no artigo 2º, §6º da Lei nº 12.830/13[10] e nada mais é que um juízo preliminar, realizado pela autoridade policial – o delegado de polícia – em momento anterior à acusação pelo Ministério Público, pelo qual se atribui a alguém a prática de determinado crime. Dessa forma, indiciado “é o suspeito que, pelo formal indiciamento, teve externada sua condição preliminar de imputado”. (GUIMARÃES, 2017, p. 79).

Esse juízo preliminar é um poder-dever atribuído à autoridade policial de apresentar de modo autônomo a imputação preliminar. Essa imputação, contudo, é o resultado de uma convergência de indícios, e não apenas a impressão da autoridade ou reflexo da opinião pública (GUIMARÃES, 2017, p. 82). Deve ser elaborado de forma técnica, apresentando os fundamentos jurídicos que justificam a submissão do indivíduo ao procedimento de investigações. A motivação assume, então, relevante papel para o controle da regularidade do ato, reduzindo-se os espaços de subjetividade da valoração.

Compreendido sob o prisma do processo penal constitucional, o indiciamento pode ser percebido como um filtro a acusações infundadas e ao aparelhamento do inquérito policial para fins escusos, políticos ou desviados. Torna-se “instrumento de salvaguarda do indivíduo no âmbito da fase inquisitiva da persecução penal” (GUIMARÃES, 2017, p. 199) na medida em que torna transparente a atividade policial investigativa e permite o seu controle interno (pelos sujeitos processuais, o Ministério Público, o Juiz e especialmente o indiciado e sua defesa) e externo (exercido pela sociedade).

Nas palavras de Rodrigo Iennaco, o “exercício de poder sem controle é o exercício de autoridade que tende ao arbítrio” (2011, p. 28). É justamente pela instituição de instrumentos de controle do Estado e pelo fortalecimento das instituições democráticas que essas formas de poder adquirem legitimidade constitucional (LOEWENSTEIN, 1970)[11]. Conforme Karl Loewenstein, este é o telos de toda constituição, que para assegurar aos destinatários dos atos de poder sua legitima participação e autonomia precisa encontrar mecanismos de contenção e controle do poder absoluto dos dominadores, os quais se traduzem em regras e procedimentos metodológicos para o exercício de poder[12].

Especificamente no que concerne ao inquérito policial, atribuem-se aos instrumentos de controle importância central na contenção dos riscos de manipulação dos serviços, à disposição dos detentores do poder político para sua instrumentalização e uso abusivo, bem como ao risco de sua autonomização como um poder paralelo (IENNACO, 2011, p. 30).

É preciso seguir os procedimentos formais estabelecidos para as investigações preliminares, registrando-se, de modo transparente e motivado, os elementos que fundamentam a sua instauração em face do indivíduo. Afinal, esses procedimentos não se reduzem a meras formalidades impostas à Polícia Judiciária, mas constituem verdadeira garantia de proteção do indiciado (HASSEMER, 1998, p. 82). Somente nos limites da legalidade é que será legítima a atividade persecutória do estado.

 

3          A IMPUTAÇÃO PRELIMINAR E AS PRISÕES NA FASE DE INQUÉRITO

 

Toda essa análise desenvolvida sobre a importância do indiciamento torna-se mais clara pelo estudo das mais críticas intervenções que podem ser executadas contra o indiciado nesta etapa da persecução: as prisões. É com base nos procedimentos de investigação e na imputação preliminar que se baseará o Juiz para, diante do requerimento do Ministério Público ou da representação da autoridade policial, verificar os requisitos, os fundamentos e a necessidade da decretação dessas medidas interventivas[13].

Submeter o indivíduo a tamanha restrição de direitos, pela privação de sua liberdade – seja preventiva ou temporária –, exige um juízo de valor o qual será empreendido com base nos elementos objetivos de imputação preliminar descritos no inquérito, devendo manter-se circunscritas a esses limites. Nos subtópicos a seguir, o trabalho se debruçará sobre esse papel limitador do indiciamento em face da prisão temporária e da prisão preventiva, articulando-se os dados da análise em torno do caso apresentado na introdução.

 

3.1     Prisão temporária

 

No caso apresentado de partida, foi imposta restrição à liberdade do Réu R, indiciado pelo crime de corrupção ativa e cuja prisão temporária foi determinada sob o fundamento da sua imprescindibilidade para as investigações. Pergunta-se então: estão corretos o requerimento e a decretação da referida prisão? Antes de responder a essa questão, importante compreender o que é a prisão temporária e qual a relevância do indiciamento para essa modalidade de prisão.

A prisão temporária, regulamentada pela Lei nº 7.960, de 21 de dezembro de 1989, é utilizada durante a fase de investigação preliminar policial sobre certos crimes considerados de especial gravidade e possui a finalidade de evitar que, em liberdade, o indivíduo possa prejudicar a colheita de elementos de informação.

Essa modalidade de prisão possui um prazo limitado, em geral, de cinco dias, prorrogáveis por mais cinco desde que comprovada a necessidade extrema. No caso dos crimes hediondos, de tráfico ilícito de entorpecentes, de tortura e terrorismo, conforme o disposto no artigo 2º, § 4º da Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990[14], a prisão temporária pode ser decretada pelo prazo de trinta dias, prorrogáveis por mais trinta em face da extrema necessidade. Ultrapassado esse prazo, deve ser imediatamente posto em liberdade o investigado.

A prisão temporária somente pode ser determinada durante o inquérito policial, sendo inadmissível após oferecida a denúncia. Uma vez que sua finalidade se encontra justamente em assegurar o desenvolvimento das investigações policiais, a prisão temporária perde imediatamente a sua razão de ser, ou seja, o seu fundamento de cautelaridade, após o oferecimento da denúncia pelo Ministério Público. A partir desse momento, inicia-se a segunda etapa do modelo bifásico da persecução penal, o processo.

Além disso, vale chamar atenção para o fato de que a prisão temporária não pode ser determinada de ofício pelo Juiz, o qual é figura imparcial e equidistante entre as partes no processo. É necessário que o Ministério Público requeira, fundamentadamente, a sua decretação ou que a autoridade policial represente ao Juiz pela prisão[15]. Essa diferenciação se explica pelo fato de que, enquanto parte no processo e legítimo titular da opinio delicti e da ação penal, o Ministério Público pode pedir ao Juiz a adoção de medidas cautelares ao longo da persecução penal. Já a autoridade policial, não sendo parte no processo, mas apenas terceiro, não possui legitimidade para pedir ou requerer, podendo apenas representar pela prisão. Após a representação é ouvido o Ministério Público e somente então decide o Juiz.

Vale notar que, por imposição do princípio da presunção da inocência, os presos temporários devem permanecer separados dos demais detentos. Enquanto não houver o trânsito em julgado de ação penal condenatória, na forma como determina o artigo 5º inciso LVII da Constituição da República de 1988[16], mantém o indivíduo seu status de inocência, devendo ser tratado conforme a essa condição.

A questão central para a análise do problema está justamente no fato de que as hipóteses de cabimento da prisão temporária encontram limite em um específico rol de crimes elencados no artigo 1º, inciso III da referida Lei[17]. Assim, devem existir fundadas razões para a sua decretação, bem como provas de autoria ou participação do acusado em um dos crimes dispostos neste rol para que se possa aplicar tal cautelar. Além disso, devem-se a ela se somar, alternativamente: a) imprescindibilidade para as investigações; b) não possuir o indiciado residência física ou não fornecer elementos necessários ao esclarecimento de sua identidade.

No caso analisado, não obstante a decisão tenha se fundamentado na imprescindibilidade para as investigações do inquérito policial, percebe-se que o crime pelo qual fora indiciado o Réu R não se encontra entre aqueles dispostos no rol taxativo da Lei das Prisões Temporárias. Dessa forma, sem que o Ministério Público tenha elaborado nova imputação criminal de modo fundamentado em seu requerimento, a legalidade da referida prisão estará violada pelo descumprimento do disposto no artigo 1º, inciso III da referida Lei, impondo-se o seu relaxamento imediato.

Esse é um dos casos em que o papel do indiciamento de filtro processual se apresenta com maior clareza. Servirá como salvaguarda do indivíduo contra a determinação de prisões temporárias que não se amoldem às hipóteses de cabimento determinadas pela Lei, protegendo-o contra a arbitraria restrição de sua liberdade, ainda que apenas de modo temporário. É justamente a imputação preliminar que confere a transparência necessária para o controle dessa decisão, funcionando neste caso como relevante instrumento democrático.

 

3.2     Prisão preventiva

 

A análise se complementa pelo estudo da variante do caso narrado, na qual se decretou a prisão preventiva de R fundamentada na conveniência da instrução criminal, face à verificação de concretas tentativas de destruição de provas por R. Nesse caso, está-se diante de uma prisão legal?

A prisão preventiva consiste em uma modalidade de prisão cautelar que pode ser determinada pelo Juiz a requerimento pelo Ministério Público, do querelante ou assistente da acusação ou por representação policial em qualquer fase da persecução, seja na investigação preliminar policial, seja ao longo do processo penal. A decisão deverá ser devidamente motivada, indicando os fundamentos concretos acerca da necessidade cautelar da prisão, consubstanciada nos pressupostos do fumus commissi delicti e do periculum libertatis.

Por fumus commissi delicti se compreende a indispensabilidade de prova da existência do crime e de indícios suficientes de autoria. A esse pressuposto se soma a cerificação de uma das hipóteses ou requisitos do periculum libertatis dispostas no artigo 312 do Código de Processo Penal: a) garantia da ordem pública; b) garantia da ordem econômica; c) conveniência da instrução criminal; d) para assegurar a aplicação da lei penal.

Embora essa modalidade de prisão não se encontre adstrita a um rol taxativo de crimes, possui também limitadas hipóteses de cabimento, descritas no artigo 313 do Código de Processo Penal (CPP)[18]. Devem ser levados em consideração o tipo subjetivo, a quantidade de pena máxima, a reiteração delitiva ou mesmo o sujeito passivo do crime. É em função dessas hipóteses que a imputação preliminar assume relevância. Na fase da investigação policial a decretação da prisão preventiva dependerá justamente da análise do indiciamento para verificação das hipóteses do artigo 313 do CPP.

No caso em análise, tem-se uma hipótese de prisão instrumental, ou seja, fundamentada na conveniência da instrução criminal. Em outras palavras, busca-se a tutela da prova, a conservação dos meios ou instrumentos de prova. Diferentemente da hipótese anterior da prisão temporária, a hipótese da variante é a de uma prisão legal. A imputação preliminar do crime de corrupção passiva se amolda ao disposto no artigo 313 do CPP, sendo um crime doloso cuja pena máxima é superior a quatro anos.

Importante observar que, embora não possua um limite de prazo determinado, a duração da prisão preventiva se orienta pela sua necessidade em face ao fundamento que a motivou. Vale destacar que, com a aprovação da Lei nº 13.964/2019, buscando-se evitar a manutenção da prisão após cessada a necessidade cautelar, foi inserida no Código de Processo Penal disposição determinando que o órgão emissor da decisão realize revisões periódicas, a cada noventa dias, da necessidade na manutenção da prisão preventiva. A a cada revisão deverá ser proferida nova decisão fundamentada, indicando os fundamentos legais para a manutenção da prisão e indicando a subsistência de sua necessidade cautelar (art. 316, parágrafo único, CPP)[19].

No caso em análise, a prisão foi decretada pela conveniência da instrução criminal em função das concretas tentativas de destruição de provas pelo Réu R. Uma vez colhidos os elementos de informação e finalizada a etapa de investigação preliminar, deve ser revogada a prisão, pois não mais subsistem os motivos que a fundamentaram.

 

4          ARQUIVAMENTO E EXCESSO DE PRAZO: A CELERIDADE COMO UM DIREITO FUNDAMENTAL

 

Ao alcançar seu marco final, o inquérito policial pode ensejar diferentes situações: a verificação dos elementos necessários à proposição da denúncia, especialmente a justa causa para a ação penal; a necessidade de dar continuidade às investigações com a dilação do prazo; ou a determinação de seu arquivamento por ordem e homologação do Ministério Público, seja pelo excesso de prazo, pela verificação da inocência do investigado ou pela completa ausência de elementos que fundamentem sua continuidade. O presente tópico analisará o encerramento do inquérito policial, especialmente em face do prazo de duração determinado para a investigação preliminar policial.

Como anteriormente apresentado, o inquérito policial possui caráter estigmatizador e sua instauração apresenta inúmeras consequências prejudiciais ao indivíduo. Nas palavras de Jordi Nieva Fenoll:

o certo é que o simples fato se assinalar uma pessoa como suspeita, gera automaticamente um receio social ante esse indivíduo. (...) Sempre que aparece uma notícia jornalística sobre um suspeito, ou acerca de uma simples detenção policial, o cidadão tende a sistematicamente dar por certa a informação e a ter não como suspeito, mas diretamente como culpável a esta pessoa. (NIEVA FENOLL, 2016, p. 5)

Por tal razão, é necessário que se imponha um prazo para o encerramento das atividades investigativas, de modo que os efeitos sobre a liberdade e demais direitos do indivíduo possam cessar.

O tempo no processo possui um papel imprescindível. Para Aury Lopes Jr. “o processo nasceu para retardar a decisão”. Seus atos se desenvolvem em uma sequência formal necessária não apenas para assegurar os direitos do indivíduo e a produção de provas, mas também para que se distancie do calor do acontecimento e da “tirania da urgência” (LOPES JR., 2015, p. 55). O método pelo qual se desenvolve o processo funciona, portanto, como uma garantia na medida em que limita o poder punitivo estatal e afasta a decisão das pressões das expectativas sociais.

No entanto, se a urgência pode representar um grave atentado contra a liberdade individual, também o representa a indevida demora para o encerramento da persecução criminal. Embora se deva evitar o imediatismo e a hiper aceleração, não se admite uma eterna duração do processo mantendo sobre o indivíduo a constante incerteza e o peso da rotulação como suspeito.

É sob essa perspectiva que atua no processo penal de um Estado Democrático de Direito o princípio da celeridade ou da razoável duração do processo (artigo 5º, inciso LXXVIII da Constituição da República de 1988)[20]. Enquanto direito fundamental titularizado pelo destinatário dos atos de poder, o investigado ou réu, a celeridade deve desenvolver sua eficácia justamente para a salvaguarda do indivíduo. Não em prol de uma urgência imediatista pela retribuição social, mas sim para limitar o excesso de prazo, submetendo o indivíduo a prolongada angustia e vulnerabilidade. Busca-se assegurar “a necessária maturação da cognição, mas sem excessos” (LOPES JR., 2015, p. 58).

Assim, compreendendo-se o peso do tempo, determina-se em lei um prazo para que se desenvolvam as investigações policiais preliminares. Em geral, estabelece o Código de Processo Penal um prazo de 10 dias para encerramento do inquérito, caso preso o investigado e um prazo de 30 dias quando este estiver solto. Para os inquéritos desenvolvidos pela Polícia Federal, conforme a Lei nº 5.010/1966, tem-se um prazo de 15 dias para o encerramento das investigações nas hipóteses em que o investigado se encontrar preso e de 30 dias nos casos em que estiver solto. Já para os crimes previstos na Lei de Drogas (Lei nº 11.343/2006) tem-se um prazo de 30 dias quando preso o investigado e de 90 dias quando solto. Esses prazos admitiriam uma prorrogação diante da demonstração de necessidade extrema em pedido fundamentado ao juízo.

Em um Estado Democrático de Direito em que se respeitam os direitos do indivíduo, devem ser respeitados esses prazos, sendo inadmissíveis as continuas e reiteradas dilações de prazo. É inaceitável o quadro de constante prorrogação do prazo determinado em Lei, tornando a única realidade do indivíduo o seu contÍnuo status de investigado. É preciso reconhecer com seriedade as hipóteses de excesso de prazo para o encerramento das investigações, o que pode ser feito mesmo de oficio pelo Juiz.

Entretanto, o controle típico desses prazos não costuma ser levado a sério Fauzi Hassan Choukr (2017) lança luz sobre a falta de rigidez desses prazos determinados em lei, considerados inoperantes e vazios. O único controle temporal que seria exercido sobre a duração das investigações seria um controle atípico, orientado apenas pelo prazo prescricional definido no Código Penal para cada crime. Essa ausência de rigor frente ao prazo para investigações acaba permitindo que estas se desenvolvam por um longo período de tempo, podendo pender sobre o indivíduo por um período que se aproxime dos 20 anos no caso de crimes mais graves. O que se pergunta é se após um período tão longo existiria ainda algum novo elemento de informação a ser descoberto ou qualquer nova informação que durante todo o período não pode ser obtida. A memória dos envolvidos se perde, as provas perecem, e após quase 20 anos inicia-se um processo que pode levar a condenação de um indivíduo após quase 40 anos dos fatos.

Recentemente a percepção da relevância dos prazos para o encerramento de investigações voltou a ganhar importância, sendo determinado o arquivamento de uma série de inquéritos policiais no âmbito da Operação Lava Jato, os quais, após uma série de dilações de prazo, não lograram localizar novos elementos informativos além dos elementos de corroboração apresentados pelos próprios delatores. O giro interpretativo no âmbito de uma das operações recentes que mais alimentou expectativas sociais, sendo acompanhada constantemente pela mídia (BRASIL, 2018a; 2018b; 2018c; 2018d) é um importante reconhecimento à relevância da celeridade como garantia individual. Tamanha a importância dessas decisões que vale apresentar a seguir um dos acórdãos que marcam esse giro no Supremo Tribunal Federal:

PENAL E PROCESSO PENAL. INQUÉRITO. ARQUIVAMENTO PELO RELATOR EM CASO DE MANIFESTO CONSTRANGIMENTO ILEGAL. ART. 231, §4º, DO RISTF. ART. 654, §2º, CPP. COLABORAÇÃO PREMIADA. NECESSIDADE DE CORROBORAÇÃO MÍNIMA DAS DECLARAÇÕES. FALTA DE SUPORTE FÁTICO-PROBATÓRIO PARA PROSSEGUIMENTO DAS INVESTIGAÇÕES. AUSÊNCIA DE PRAZO RAZOÁVEL. CONSTRANGIMENTO MANIFESTAMENTE ILEGAL. QUESTÃO DE ORDEM NA AP 937/RN. POSSIBILIDADE DE ARQUIVAMENTO. 1. Na forma do art. 231, §4°, “e”, do Regimento Interno do STF (RISTF) e do art. 654, §2º, do CPP, o Relator deve determinar o arquivamento do inquérito quando verificar a ausência de indícios mínimos de autoria e materialidade e/ou nos casos em que foram descumpridos os prazos para a instrução. Trata-se de dispositivo que possibilita, expressamente, o controle das investigações pelo Poder Judiciário que atua, nesta fase, na condição de garantidor dos direitos fundamentais dos investigados; 2. Os precedentes do STF assentam que as declarações de colaboradores não são aptas a fundamentar juízo condenatório, mas suficientes dar início a investigações. Contudo, tais elementos não podem legitimar investigações indefinidas, sem que sejam corroborados por provas independentes. 3. A EC 45/2004 introduziu norma que assegura a razoável duração do processo judicial e administrativo (art. 5º. LXXVIII). Conforme a doutrina, esta norma deve ser projetada também para o momento da investigação. As Cortes Internacionais adotam três parâmetros: a) a complexidade do caso; b) a atividade processual do interessado; c) a conduta das autoridades judiciárias. No caso de inquéritos em tramitação perante o STF, os arts. 230-C e 231 do RISTF estabelecem os prazos de 60 dias para investigação e 15 dias para oferecimento da denúncia ou arquivamento, com possibilidade de prorrogação (art. 230-C, §1º, RISTF). 4. No julgamento da Questão de Ordem na Ação Penal nº 937, o Plenário do STF fixou o entendimento que terminada a instrução processual, a ação penal deveria ser julgada pelo Tribunal, independentemente de se tratar de hipótese que determinaria a baixa dos autos. Aplicando este entendimento de modo análogo, a Primeira Turma assentou, no INQ n° 4.647, que o inquérito pronto para juízo de admissibilidade da denúncia deveria ser apreciado pela Corte. Este entendimento também se aplica aos casos de arquivamento pela ausência de indícios mínimos de materialidade e autoria delitiva. 5. Caso em que inexistem indícios mínimos de materialidade e autoria delitiva, mesmo após 15 meses de tramitação do inquérito. Depoimentos genéricos e inespecíficos relatando o recebimento de recursos eleitorais em pleito no qual o investigado sequer disputou qualquer mandato eletivo. Apresentação apenas de elementos de corroboração produzidos pelos próprios investigados. Arquivamento do inquérito, na forma do art. 21, XV, “e”, art. 231, §4º, “e”, ambos do RISTF, e art. 18 do CPP (BRASIL, 2018d).

A partir da leitura do acórdão, representativo do novo giro interpretativo do Supremo Tribunal Federal, e da análise apresentada, chega-se então à resolução do questionamento final do caso apresentado na introdução deste trabalho: deve ser concedido novo prazo para a continuidade das investigações?

No caso descrito o procedimento de investigações já alcançou o marco de 120 dias, muito além dos 30 dias determinados para o inquérito pela Polícia Federal. Além do descumprimento do prazo para as investigações, durante todo esse período não se acrescentou nenhum novo fato ou elemento de informação ao inquérito, além dos elementos de corroboração juntados pelo próprio colaborador, insuficientes para consolidar a prova da materialidade ou os indícios de autoria. Assim, em respeito ao princípio da razoável duração do processo, para que cessem os prejuízos e a angústia causados ao investigado, melhor seria a determinação do arquivamento mesmo que de ofício pelo Juiz[21].

Vale notar que o arquivamento do inquérito não se encontra à disposição das autoridades policiais. Até dezembro de 2019, o arquivamento dependia de decisão judicial, de modo que no caso de sua indicação no relatório policial e do seu requerimento pelo Ministério Público, o arquivamento de um inquérito ainda estaria sujeito ao reconhecimento de sua procedência pelo juiz[22]. Com a aprovação da Lei 13.964/2019, o arquivamento de inquéritos não mais dependeria de decisão judicial, mas passa a ser ordenado e homologado pelo Ministério Público, ainda que em decorrência de relatório policial representando pelo arquivamento. Atualmente, a modificação trazida pelo Pacote Anticrime se encontra suspensa em função de concessão de uma liminar na Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.298 MC/DF no âmbito do Supremo Tribunal Federal, de modo que, em princípio, permanece vigente a antiga regra do artigo 28 do CPP (BRASIL, 2020ª).

 

§ CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

No contexto de um Estado Democrático de Direito, o processo penal deve ser interpretado sob a ótica constitucional, a partir dos direitos fundamentais do acusado e de suas garantias processuais, os quais funcionam de baliza para o poder do Estado. Assim, os institutos do inquérito policial devem ser reinterpretados, de modo a se conformarem à ordem constitucional, viabilizando o controle dos atos de poder e salvaguardando o investigado perante a superioridade do Estado.

Sob esse prisma, as investigações preliminares pela polícia devem seguir um método formal e transparente, com um indiciamento fundamentado nos elementos que lastreiam a instauração do procedimento. As medidas cautelares e demais invasões à esfera jurídica do investigado devem tomar como parâmetro e barreira a essa imputação preliminar, sendo permitido o controle decisório pela defesa e também pelo Ministério Público, representante da sociedade, quando ultrapassados os limites legais. Deve-se ainda reconhecer o potencial simbólico e estigmatizador do Inquérito Policial, limitando seus efeitos sobre o indivíduo a uma razoável duração.

Na seara criminal, forma é garantia. O método e o respeito às determinações formais dos atos que compõem os procedimentos criminais são os elementos que conferem segurança jurídica ao indivíduo, bem como afastam os riscos de instrumentalização do aparato Estatal para fins políticos ou para a simples satisfação de desejos e expectativas retributivas da sociedade. É passada a hora de levar a democracia a sério, concretizando os ideais constitucionais e a ordem democrática.

 

REFERÊNCIAS

 

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Informações adicionais e declarações dos autores

(integridade científica)

 

Declaração de conflito de interesses (conflict of interest declaration): a autora confirma que não há conflitos de interesse na realização das pesquisas expostas e na redação deste artigo.

 

Declaração de autoria e especificação das contribuições (declaration of authorship): todas e somente as pessoas que atendem os requisitos de autoria deste artigo estão listadas como autores; todos os coautores se responsabilizam integralmente por este trabalho em sua totalidade.

 

Declaração de ineditismo e originalidade (declaration of originality): a autora assegura que o texto aqui publicado não foi divulgado anteriormente em outro meio e que futura republicação somente se realizará com a indicação expressa da referência desta publicação original; também atesta que não há plágio de terceiros ou autoplágio.

 

 

Dados do processo editorial

· Recebido em: 09/02/2021

· Controle preliminar e verificação de plágio: 12/02/2021

· Avaliação 1: 21/02/2021

· Avaliação 2: 21/02/2021

· Decisão editorial preliminar: 21/02/2021

· Retorno rodada de correções: 22/02/2021

· Decisão editorial final: 23/02/2021

· Publicação: 24/02/2021

 

 

Equipe editorial envolvida

·  Editor-Chefe: FQP

·  Assistente-Editorial: MR

·  Revisores: 02

COMO CITAR ESTE ARTIGO

BRENER, Paula. O inquérito policial e o indiciamento sob a perspectiva do modelo constitucional de processo penal. Revista de Direito da Faculdade Guanambi, Guanambi, v. 7, n. 02, e323, jul./dez. 2020. doi: https://doi.org/10.29293/rdfg.v7i02.323. Disponível em: http://revistas.faculdadeguanambi.edu.br/index.php/Revistadedireito/article/view/323. Acesso em: dia mês. ano.

 

 



* Editor: Prof. Dr. Flávio Quinaud Pedron. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4259444603254002. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4804-2886.

[1] Doutoranda em Direito pela UFMG. Mestra em Direito pela UFMG. Bacharel em Direito pela UFMG. Professora da Pós-Graduação em advocacia criminal da ESA/OAB-MG. Advogada criminalista. Lattes: http://lattes.cnpq.br/7955936197870150. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9588-0332.

[2] Para um maior detalhamento sobre as vantagens do pensamento problemático e os cuidados que devem ser observados em sua aplicação, confira-se a obra de Claus Roxin (2002, p. 211-229).

[3] “Corrupção ativa: Art. 333 - Oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público, para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa. (Redação dada pela Lei nº 10.763, de 12.11.2003)” (BRASIL, 1940).

[4] Vale observar em nota que é justamente pela ausência do contraditório que se caracteriza o inquérito policial como procedimento e não processo. Nesse ponto relembra-se a concepção fazzalariana, segundo a qual procedimento é uma sequência de atos e posições subjetivas, previstos e valorados por normas, cada uma das quais regula uma determinada conduta na estrutura do procedimento, cujo cumprimento é pressuposto para uma atividade subsequente, regulada por uma outra norma da série (FAZZALARI, 1999). Assim, seguem em sequência até a norma reguladora do ato final, do provimento. O que caracteriza o processo e permite identificá-lo e diferenciá-lo como determinada espécie de procedimento é a presença de contraditório. O processo se caracteriza, portanto, como procedimento realizado em contraditório entre as partes (FAZZALARI, 2006, p. 113-114). No caso do inquérito policial, em face à ausência de contraditório, tem-se tão somente procedimento. Vale notar que a Lei nº 13.964/2019, popularmente chamada Pacote Anticrime, inseriu no Código de Processo Penal disposição afirmando a natureza acusatória – e não inquisitória – do processo penal como um todo, incluindo a fase de investigações (art. 3º-A do CPP). Não obstante, entende-se aqui que a mera modificação formal de nomenclatura, sem a implementação de oportunidades concretas para o exercício do contraditório não é suficiente para que possamos admitir a mudança de natureza das investigações preliminares (BRASIL, 1941).

[5] Vale notar que, embora tenha-se adotado o sistema bifásico, diferenciando a persecução penal usualmente em duas fases – investigação preliminar e processo penal –, a existência dessa fase preliminar não é atualmente obrigatória. Em diversas hipóteses pode ser considerada dispensável, pela obtenção de elementos de informação por outros meios (BADARÓ, 2017, p. 121).

[6] Sobre a relevância na mudança de mentalidade de operadores do direito em face às transformações necessárias à adaptação do Processo Penal brasileiro à ordem constitucional, confira-se o estudo de José de Assis Santiago Neto (2016).

[7] Nesse sentido, os trabalhos de Gustavo Badaró (2017, p. 122), José Frederico Marques (1980, p. 170) e Aury Lopes Jr. (2003).

[8] Conforme definição do Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, “apurar” é primeiramente “tornar(-se) puro; purificar(-se)”, bem como “examinar minuciosamente; averiguar”. (2009, p. 167-168).

[9] Fauzi Hassan Choukr considera o instituto inconstitucional (CHOUKR, 2017, p. 134-135). Sylvia Steiner considera ilegal o indiciamento antes que tenham se encerrado as investigações, já sendo verificáveis indícios de autoria e prova da materialidade, ou seja, estando-se na iminência da ação penal (STEINER, 1998. p. 305-308). Em seu manual, embora não chegue ao ponto de considerar inconstitucional o indiciamento, Aury Lopes Jr. Denuncia a falta de regulamentação do instituto, de definição do seu momento, de sua configuração formal e da necessidade de sua fundamentação (LOPES JR., 2014).

[10] Lei nº 12.830/2013: “§ 6o O indiciamento, privativo do delegado de polícia, dar-se-á por ato fundamentado, mediante análise técnico-jurídica do fato, que deverá indicar a autoria, materialidade e suas circunstâncias.” (BRASIL, 2013).

[11] No mesmo sentido a obre de Jürgen Habermas (2001, p. 147).

[12] Nas palavras do autor: “Em um sentido ontológico, se deverá considerar como o telos de toda constituição a criação de instituições para limitar e controlar o poder político. Neste sentido, cada constituição apresenta uma dupla significação ideológica: liberar aos destinatários do poder do controle social absoluto de seus dominadores, e atribuir-lhes uma legitima participação no processo de poder. Para alcançar esse propósito se teve de submeter o exercício do poder político a determinadas regras e procedimentos que deveriam ser respeitados pelos detentores do poder” (LOEWENSTEIN, 1970, p. 151, tradução livre).

[13] Importante constar em nota que o raciocínio a seguir apresentado também se aplica às demais formas de restrição à liberdade do indivíduo ao longo das investigações preliminares, como às medidas assecuratórias. Era, contudo, preciso optar por um recorte para o aprofundamento da análise e, por sua drasticidade, as prisões foram escolhidas como a opção mais didática para o presente estudo.

[14] Lei nº 8.072/90: “§ 4o A prisão temporária, sobre a qual dispõe a Lei no 7.960, de 21 de dezembro de 1989, nos crimes previstos neste artigo, terá o prazo de 30 (trinta) dias, prorrogável por igual período em caso de extrema e comprovada necessidade” (BRASIL, 1990).

[15] Lei nº 7.960/89: “Art. 2° A prisão temporária será decretada pelo Juiz, em face da representação da autoridade policial ou de requerimento do Ministério Público, e terá o prazo de 5 (cinco) dias, prorrogável por igual período em caso de extrema e comprovada necessidade” (BRASIL, 1989).

[16] CRFB/88: “LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (BRASIL, 1988).

[17] Lei nº 7.960/89: “Art. 1° Caberá prisão temporária: I - quando imprescindível para as investigações do inquérito policial; II - quando o indicado não tiver residência fixa ou não fornecer elementos necessários ao esclarecimento de sua identidade; III - quando houver fundadas razões, de acordo com qualquer prova admitida na legislação penal, de autoria ou participação do indiciado nos seguintes crimes: a) homicídio doloso (art. 121, caput, e seu § 2°); b) seqüestro ou cárcere privado (art. 148, caput, e seus §§ 1° e 2°); c) roubo (art. 157, caput, e seus §§ 1°, 2° e 3°); d) extorsão (art. 158, caput, e seus §§ 1° e 2°); e) extorsão mediante seqüestro (art. 159, caput, e seus §§ 1°, 2° e 3°); f) estupro (art. 213, caput, e sua combinação com o art. 223, caput, e parágrafo único); g) atentado violento ao pudor (art. 214, caput, e sua combinação com o art. 223, caput, e parágrafo único); h) rapto violento (art. 219, e sua combinação com o art. 223 caput, e parágrafo único);  i) epidemia com resultado de morte (art. 267, § 1°); j) envenenamento de água potável ou substância alimentícia ou medicinal qualificado pela morte (art. 270, caput, combinado com art. 285); l) quadrilha ou bando (art. 288), todos do Código Penal; m) genocídio (arts. 1°, 2° e 3° da Lei n° 2.889, de 1° de outubro de 1956), em qualquer de sua formas típicas; n) tráfico de drogas (art. 12 da Lei n° 6.368, de 21 de outubro de 1976); o) crimes contra o sistema financeiro (Lei n° 7.492, de 16 de junho de 1986). p) crimes previstos na Lei de Terrorismo.   (Incluído pela Lei nº 13.260, de 2016)” (BRASIL, 1989).

[18] Decreto-Lei nº 3.689/41: Art. 313.  Nos termos do art. 312 deste Código, será admitida a decretação da prisão preventiva: (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011); I - nos crimes dolosos punidos com pena privativa de liberdade máxima superior a 4 (quatro) anos; (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011); II - se tiver sido condenado por outro crime doloso, em sentença transitada em julgado, ressalvado o disposto no inciso I do caput do art. 64 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal; (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011); III - se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência; (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011); IV - (revogado). (Revogado pela Lei nº 12.403, de 2011); § 1º Também será admitida a prisão preventiva quando houver dúvida sobre a identidade civil da pessoa ou quando esta não fornecer elementos suficientes para esclarecê-la, devendo o preso ser colocado imediatamente em liberdade após a identificação, salvo se outra hipótese recomendar a manutenção da medida. (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019); § 2º Não será admitida a decretação da prisão preventiva com a finalidade de antecipação de cumprimento de pena ou como decorrência imediata de investigação criminal ou da apresentação ou recebimento de denúncia. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)” (BRASIL, 1941).

[19] Embora a reforma do Código de Processo Penal com a determinação da realização de revisões periódicas das prisões preventivas represente um grande avanço em termos da consolidação de direitos fundamentais, a eficácia da nova determinação sofreu já em seus primeiros dias uma relevante relativização. Isso porque foi formado precedente pelo Pleno do Supremo Tribunal Federal que proferiu um acórdão em procedimento de suspensão de liminar no qual se afirmou que o decurso do prazo de 90 dias para a revisão sobre os fundamentos da prisão preventiva não ensejaria a revogação automática da prisão pelo excesso de prazo. Para maior aprofundamento, confira-se: “[...] 5. Tese fixada no julgamento: “A inobservância da reavaliação prevista no parágrafo único do artigo 316 do Código de Processo Penal (CPP), com a redação dada pela Lei 13.964/2019, após o prazo legal de 90 (dias), não implica a revogação automática da prisão preventiva, devendo o juízo competente ser instado a reavaliar a legalidade e a atualidade de seus fundamentos. [...]” (BRASIL, 2020a; 2020b).

[20] CRFB/88: “LXXVIII a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)” (BRASIL, 1988); Vide Soares (2017).

[21] O presente trabalho concentrou sua análise sobre a legalidade da prisão em face ao princípio da razoável duração do processo como um direito fundamental. De modo similar, uma análise interessante sobre a legalidade das prisões é realizada por Nicolitt e Neves, tomando por centro de análise o estado de coisas do sistema prisional brasileiro e as violações de direitos fundamentais no âmbito penitenciário, obra que vale a indicação em nota para um maior aprofundamento (NICOLITT; NEVES, 2018).

[22] Redação original do artigo 28 do Código de Processo Penal: “Art. 28.  Se o órgão do Ministério Público, ao invés de apresentar a denúncia, requerer o arquivamento do inquérito policial ou de quaisquer peças de informação, o juiz, no caso de considerar improcedentes as razões invocadas, fará remessa do inquérito ou peças de informação ao procurador-geral, e este oferecerá a denúncia, designará outro órgão do Ministério Público para oferecê-la, ou insistirá no pedido de arquivamento, ao qual só então estará o juiz obrigado a atender” (BRASIL, 1941).