O aprisionamento do gênero pelas categorias do Direito e os efeitos na educação: apontamentos sobre a teoria queer, pedagogia da autonomia e questões sobre pessoas trans

Gender presentation by law categories and the effects on education: notes on queer theory, autonomy pedagogy and questions about trans people

 

 

Lettícia Lages Gusmão[1]

Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) – Ouro Preto/MG

lages.çler@gmail.com

 

Rainer Bomfim[2]

Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) – Ouro Preto/MG

rainerbomfim@outlook.com

 

Jéssica de Paula Bueno da Silva[3]

Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) – Belo Horizonte/MG

jessicadepaulabueno@gmail.com

 

Daniela Ebner[4]

Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) – Ouro Preto/MG

naniebner@gmail.com

 

 

RESUMO: Sob uma vertente metodológica jurídico-crítico-descritiva, explana-se sob a matriz teórica de Paulo Freire, a “Pedagogia da Autonomia”, para mostrar a relação do professor-aluno no contexto educação. Logo após, aduz dados sobre a violência contra a população trans e sua marginalização. Em seguida, mostra-se como que o projeto artístico pedagógico “Transvest” cumpre essa proposta de educação transformadora dentro da realidade da população trans com suas bases e objetivos específicos. Conclui-se sobre a viabilidade da teoria apresentada e da necessidade de expansão de projetos/ONGs/cursinho como o descrito no texto.

Palavras-chave: Direito à educação. Teoria Queer. Pessoas Trans. Pedagogia da autonomia.

ABSTRACT: Under a descriptive methodological strand, the "Pedagogy of Autonomy" is explored under the theoretical matrix of Paulo Freire to show the teacher-student relationship in the education context. Shortly thereafter, it records data on violence against the transgender population and their marginalization. Next, it is shown how the artistic pedagogical project "Transvest" fulfills this proposal of transformative education within the reality of the trans population with its bases and specific objectives. We conclude on the viability of the presented theory and the necessity of expansion of projects / NGOs / cursinho as described in the text.

Keywords: Law Education.  Teory queer. Trans subjects. Pedagogy of Autonomy.

 

SUMÁRIO: INTRODUÇÃO; 1 GÊNEROS E SEXUALIDADES: CONCEPÇÕES PLURI-VERSAS ;1.1 As categorias do Direito e os efeitos na educação; 2 PEDAGOGIA DA AUTONOMIA E SUAS BALISAS TEÓRICAS; 3. A VIOLÊNCIA CONTRA A POPULAÇÃO TRANS; 4. EXPERIÊNCIA DA ONG TRANSVEST; 4.1. A necessidade de democratização da educação; CONSIDERAÇÕES FINAIS; REFERÊNCIAS.

 

SUMMARY: INTRODUCTION; 1 GENDERS AND SEXUALITIES: PLURI-VERSA CONCEPTIONS 1.1 The categories of law and the effects on education; 2 PEDAGOGY OF AUTONOMY AND ITS THEORETICAL BALISTS; 3. VIOLENCE AGAINST THE TRANS POPULATION; 4. TRANSVEST NGO EXPERIENCE; 4.1. The need to democratize education; FINAL CONSIDERATIONS; REFERENCES.

 

§ INTRODUÇÃO

 

Sob a vertente metodológica jurídico-crítica, objetiva-se demonstrar que a população trans é marginalizada e subalternizada (SPIVAK, 2010) por padrões inerentes ao Direito.

O trabalho se justifica, pois, o Brasil é o país que mais mata transexuais no mundo, sendo que nos últimos oito anos, foram registradas cerca de 876 mortes no país, conforme apresenta o Grupo Gay da Bahia (2016). A expectativa de vida de uma pessoa trans é de 35 anos contra 75 anos das pessoas cisgêneros e heterossexuais. As/os transgêneros estão situados em um grupo social de alta vulnerabilidade que sofrem violência física, social, emocional psicológica e sexual (PRADO, 2019). De tal forma que são deixados/deixadas à margem – no seu sentido mais plural e perverso – da sociedade, tendo dificuldade em se inserirem no mercado de trabalho, no acesso à cultura, saúde, ensino (GRUPO GAY DA BAHIA, 2016).

Dessa maneira, são trazidas questões ligadas a teoria queer para na sequência apresentar a matriz teórica de Paulo Freire a “Pedagogia da Autonomia” (1999) para descrever a relação do professor-aluno no contexto educação. Em seguida, aduz dados sobre a violência contra a população trans, sua marginalização e a interface com o acesso à educação. Após isso, mostra-se como que o projeto artístico pedagógico “Transvest” cumpre essa proposta de educação transformadora dentro da realidade da população trans com suas bases e objetivos específicos. O setor da pesquisa é interdisciplinar, pois dialoga com educação e direito, além se problematizar as categorias impostas.

 

1    GÊNEROS E SEXUALIDADES: CONCEPÇÕES PLURI-VERSAS

 

Os “Estudos Culturais” surgiram nos Estados Unidos por volta dos anos 60 na eclosão de movimentos socioculturais, como: pós-modernismo, pós-colonialismo, multiculturalismo, dos movimentos sociais negros e a segunda vertente do feminismo. Esses buscavam compreender e discutir as questões de crescente questionamento da época, como as questões feministas, de raça, de sexualidade e de gênero. Tais estudos serviram para iniciar o processo de buscar por direitos, entendimento e desestigmatização do forte preconceito existente nessas áreas acadêmicas, sendo que, neste contexto, toda identidade é uma construção simbólica que se faz em relação a um referente (étnico, nacional, de gênero, etc.) (HALL, 1997).

Com esses caldos alguns teóricos começaram a pensar outras formas de existência além do reconhecimento dentro de um padrão específico, tipicamente higienizado. Os questionamentos foram até mesmo sobre a necessidade de existir padrões dentro de contexto de uma sociedade plural.

Desta maneira, destaca-se os estudos da teoria queer surgiram nos anos 80 e foi consolidada somente na década de 90. O termo queer inicialmente era considerado com um xingamento em inglês, que pode ser traduzido por estranho ou rejeitado (MISKOLCI, 2017, p. 24). A linguagem depreciativa foi uma tentativa de inserir a Queer Nation no espaço de desprezo e nojo, em razão do medo da contaminação pelo vírus do HIV, ou mesmo por existências guetificadas dentro dessas sociedades e por corpos que não estavam dentro daqueles padrões de reconhecimento higienista (MISKOLCI, 2017, p. 25).

Judith Butler (2015) entende que “o termo queer não designa uma identidade, mas uma aliança, e é como um bom termo para invocar quando fazemos alianças imprevisíveis e desconfortáveis na luta pela justiça social, política e econômica”. Da mesma forma que Guacira Lopes Louro (2008) adverte que “algumas vezes queer é utilizado como um termo síntese para se referir, de forma conjunta, a gays e lésbicas”. Como explicita a autora:

Queer pode ser traduzido por estranho, talvez ridículo, excêntrico, raro, extraordinário. Mas a expressão também se constitui na forma pejorativa com que são designados homens e mulheres homossexuais. Um insulto que tem, para usar o argumento de Judith Butler (BUTLER, 1999), a força de uma invocação sempre repetida, um insulto que ecoa e reitera os gritos de muitos grupos homófobos, ao longo do tempo, e que, por isso, adquire força, conferindo um lugar discriminado e abjeto àqueles a quem é dirigido. Esse termo, com toda sua carga de estranheza e de deboche, é assumido por uma vertente dos movimentos homossexuais precisamente para caracterizar sua perspectiva de oposição e de contestação. Para esse grupo, queer significa colocar-se contra a normalização - venha de onde vier. Seu alvo mais imediato de oposição é, certamente, a heteronormatividade compulsória da sociedade; mas não escaparia de sua crítica a normalização e estabilidade propostas pela política de identidade do movimento homossexual dominante. Queer representa claramente a diferença que não quer ser assimilada ou tolerada, e, portanto, sua forma de ação é muito mais transgressiva e perturbadora” (BUTLER, 2004, p. 38).

As/os transgêneras/os são sujeitos/sujeitas que não se identificam com o gênero imposto pela sociedade com o qual foram designados/designadas no seu nascimento. Essa falta de identificação com o próprio corpo gera uma “incômoda e inassimilável diferença de corpos e almas que teimam em se fazer presentes” (PEREIRA, 2006, p. 469).

Ao estabelecer-se um padrão compulsório, aquele que não se adequa dentro dessa forma tem dificuldades em se entender frente aos outros, tendo em vista a heteronormatividade, conceituada por Michael Warner (1993), nas análises queer, como um termo que esclarece e direciona à ordem social e os seus procedimentos, o binarismo e sexualidades começaram a ser discutidas e questionadas pelos grupos criados a partir dos Estudos Culturais e pelos estudiosos de gênero que começaram a surgir com esse movimento. Toda essa normatividade presente na sociedade dificulta o entendimento e a mudança.

Teórica e metodologicamente, os estudos Queer surgiram do encontro entre uma corrente da Filosofia e dos Estudos Culturais norte-americanos com o pós-estruturalismo francês, que problematizou concepções clássicas de sujeito, identidade, agência e identificação. Central foi o rompimento com a concepção cartesiana (ou Iluminista) do sujeito como base de uma ontologia e de uma epistemologia. Ainda que haja variações entre os diversos autores, é possível afirmar que o sujeito no pós-estruturalismo é sempre encarado como provisório, circunstancial e cindido (MISKOLCI, 2017, p. 152).

Assim, a identidade de gênero tem um caráter de identificação social, ou seja, como certo indivíduo se identifica na sociedade. Esta pode ser com qualquer gênero, visto que gênero é uma construção social construída pelo próprio sujeito de acordo com a sua identificação, suas experiências e influências. Como é apresentado:  

A identidade de gênero é uma categoria da identidade social e refere-se à identificação do indivíduo como homem ou mulher, ou com alguma categoria diferente de homem ou de mulher. Essa identidade deve ser construída pelo próprio ser humano. Mesmo com todas as influências que receberemos, caberá a cada um sentir se está em concordância com sua orientação, seus desejos e suas práticas sexuais, entendendo que eles podem ser modificados (CAMARGO, 2018, p. 165).

Diante disso, faz-se necessário entenda a diferença entre gênero e sexualidade. Paul B. Preciado (PRECIADO, 2014) trabalha com o conceito de gênero por meio da definição de contrassexualidade, relacionando com a contraconduta,  e sob a ótica da sexualidade como um dispositivo de Michel Foucault, sendo que para ele a sexualidade ultrapassa apenas as questões discursivas.  Preciado utiliza, também, a concepção de Judith Butler que determina a contrassexualidade como uma análise crítica da diferença de gênero e de sexo, produto do contrato social heterocentrada cujas performatividades normativas foram inscritas nos corpos como verdades biológicas (BUTLER, 2001). De tal forma que

A contrassexualidade aponta para a substituição desse contrato social que denominamos natureza por um contrato contrassexual no âmbito do contrato contrassexual os corpos se reconhecem a si mesmos não como homens ou mulheres, e sim como corpos falantes, e reconhecem os outros corpos como falantes. Reconhecem em si mesmos a possibilidade de aceder a todas as práticas significantes, assim como a todas as posições de enunciação, enquanto sujeitos, que a história determinou como masculinas, femininas ou perversas. Por conseguinte, renunciam não só a uma identidade sexual fechada e determinada naturalmente, como também aos benefícios que poderiam obter de uma naturalização dos efeitos sociais, econômicos e jurídicos de suas práticas significantes (PRECIADO, 2014, p. 21).

A normatividade fez com que durante muito tempo a transgeneridade fosse classificada como doença. As/os transgêneras/os são considerados até hoje como doentes mentais e diversos tratamentos foram criados para trazer esses sujeitos de volta à “normalidade”. No dia 20 de junho de 2018, a Organização Mundial da Saúde (OMS) excluiu a transexualidade da lista de patologias mentais. Apesar do grande crescimento da luta LGBTI[5] e da crescente visibilidade das pessoas transgêneras, o caminho a ser percorrido ainda é longo, visto o tratamento arcaico ainda presente no século XXI (VECCHIATTI, 2019).

A classificação como doença busca o tempo todo corrigir o sujeito, trazer a ele novamente identidade de gênero que seja mais fácil de ser aceita e compreendida. Trata o sujeito como anormal. O preconceito é grande mesmo entre os/as próprios/próprias sujeitos/sujeitas, aqueles que se identificam com outro corpo, mas não pretendem mudar a genitália ou a aparência, apenas ser reconhecido como o gênero que se reconhecem.

Pedro Paulo Gomes Pereira (PEREIRA, 2006) traz que transexualidade se tornou um elemento normativo na sociedade trazer que todas as mudanças físicas e cirúrgicas feitas pelas/os transgêneras/os são na intenção de se identificar com algum gênero anteriormente já definido, homem ou mulher. A sociedade não aceita que ele transite entre eles ou não queira se identificar com nenhum.

O conjunto de práticas e discursos que atuam sobre os corpos e almas dos transexuais, regulando-os, Berenice denomina de “dispositivo da transexualidade”, que pode ser observado na intervenção médica que atua, invariavelmente, no sentido de restabelecer a heterossexualidade supostamente perdida ou ameaçada. A equipe médica opera - o deslize semântico do verbo “operar” é aqui bem apropriado - efetuando a manutenção do dimorfismo dos gêneros, considerado como natural, sempre na busca de afastar as ambiguidades. O dispositivo da transexualidade é, portanto, heteronormativo” (PEREIRA, 2006, p. 471)

Guacira Lopes Louro (LOURO, 2008) aduz que toda e qualquer identidade (sexual, étnica, de classe ou de gênero) é construída socialmente e toda identidade está sempre em processo, portanto nunca acabada, pronta ou fixa. Assim, o estabelecimento de um padrão em algum momento acaba por aprisionar os sujeitos dentro daquela “caixa conceitual” que fora imposta para si (BAHIA, 2017, p. 495).

 

1.1     As categorias do Direito e os efeitos na educação

 

Uma análise do instituto do Direito revela que desde sua origem é inerente ao mesmo a criação e fortalecimento de padrões. Nos séculos XVIII e XIX, a sociedade sofreu uma enorme transformação, a industrialização expulsa o homem do campo e o reconduz a ocupar as cidades. O capitalismo concorrencial cria uma realidade poderosa, capaz de moldar corpos e exigir um padrão de indivíduo, constitui o homem hegemônico, definição que divide os que exercem poder daqueles que ocupariam posição subalterna.

Mas, ainda, seria necessária algo a mais, uma forma de fiscalizar e legitimar a opressão imposta. Surge ante essa necessidade as ciências sociais. Como colocado por Castro-Gomez (2005), as ciências sociais se tornam peça fundamental para regulamentar e organizar a vida humana, fazendo mais do que somar à organização política do Estado-Nação, mas ser propriamente constitutiva do mesmo.

O Direito, dentro dessa ótica, não atua apenas como uma construção abstrata de regras, mas possui a consequência prática de legitimar as políticas reguladoras do Estado. Esse instrumento regulador finda por ser mais perverso do que aparenta, pois ao ser instituído dentro de uma padrão binário capaz de criar antagonismos, como certo e errado, bem e mal, legitima uma divisão de gênero catastrófica em dois sentidos, em um primeiro momento se prende a um machismo opressor, concedendo ao feminino uma subcondição; na sequência, se fixa entre o feminino e masculino, excluindo de seu viés garantista aqueles que não se encontram no padrão, mas punindo-os duplamente.

Butler (2000) é muito nítida ao prever que o Direito, assim como a construção dos corpos, é consequência da sociedade, nesse caso de uma sociedade heteronormativa com o desejo de manter seu status de dominação, mas mais brilhante foi a sua realização de como o Direito, por sua ação performática,  reiteradamente define a sociedade dentro de seus moldes, o quem retomando as já citadas palavras de Bahia (2017), aprisiona-a em “caixas conceituais”.

Dessa maneira, a naturalização dos padrões de gênero pelas normas de controle social e seu viés punitivo, que gera um estado de permanência e rigidez, que, em seu ato último, faz mais que reproduzir desigualdades, mas produz de forma obscura uma história linear, capaz de criar uma dominação inscrita em toda uma ordem social. 

Na atualidade esse papel de dominação ganha novo folego atacando a própria educação. Uma média de 164 Projetos de Lei[6], intitulados “Escola sem Partido”, se tornam um impulso na tentativa de eliminar as discussões sobre gênero e sexualidade nas escolas. O Projeto Escola sem Partido foi idealizado em 2004, sob o pretexto de que os professores estavam utilizando o espaço da sala de aula para uma doutrinação política e ideológica, interferindo e usurpando o direito dos pais de ministrar a educação moral dos filhos.

O campo do Direito, por ser também o campo do exercício legislativo e das ações de constitucionalidade, passa a ser duplamente o palco de uma nova batalha carregada de simbolismos antigos que recriam uma realidade carregada de padrões. Nessa batalha, ressuscitam o combate a “ideologia de gênero”, demanda que surgiu em 1990 e foi tecida pelo Vaticano, como resposta aos debates internacionais sobre o gênero como coisa construída e a emancipação da mulher (VIANA, 2019).

Como já colocado por Bourdieu (2019), a escolha de reafirmar os padrões de gênero pelo uso da educação e, ainda, com a justificativa da família, se dá pelo fato de o trabalho de reprodução do gênero sempre ter sido garantido pela escola e a família, entre outros. A família pode reproduzir a dominação masculina pela imposição dos papeis de gênero e, a escola, pode transmitir os pressupostos de representação patriarcal, não só pela divisão entre masculino e feminino, mas também pela imposição de hierarquias que impedem o diálogo e exigem “respeito”.

Essa escola baseada em uma teoria antidialógica, como colocado por Freire (2018, p. 186-187), tem a pretensão de conquistar, das formas mais duras às mais sutis, tendo como consequência da conquista “oprimir mais, não só economicamente, mas culturalmente, roubando ao oprimido conquistado sua palavra também, sua expressividade, sua cultura”.

Dessa forma, com a construção teórica, passa-se a uma importante análise de como a educação contém em si a potência para apresentar um cenário de alteração da realidade ou que consiga produzir uma maior inclusão para a população trans.

 

2    PEDAGOGIA DA AUTONOMIA E SUAS BALISAS TEÓRICAS 

 

A pedagogia e o ato de lecionar estão ligados diretamente aos aspectos socioeconômico-culturais. Dessa forma, parte-se da teoria de Paulo Freire (FREIRE, 1999, p. 36), que diz “somos seres inacabados e inconclusos”, para então, sugerir que é preciso estar em constante busca por adquirir novos conhecimentos, práticos, técnicos ou por meio das nossas experiências. O educador está associado às práticas sociais e éticas advindas dos seres humanos. Em seu livro, “Pedagogia da Autonomia”, Freire (FREIRE, 1999) elenca uma série de críticas às formas de ensino tradicionais. Para este, “ensinar não é transferir conhecimento”, o educador deverá, assim, respeitar a autonomia e a identidade do educando. Há um questionamento sobre a função do educador autoritário e conservador, que não possibilita a participação dos alunos, não respeitam suas curiosidades, insubmissões e ignoram as suas vivências adquiridas no decorrer da vida e do seu meio social.

Paulo Freire (FREIRE, 1999) defende o ensino democrático entre discentes e docentes, sendo que a troca de experiência e aprendizado nas salas de aulas contribuem para o desenvolvimento e a formação dos seres humanos. Tendo em vista que atitudes vindas do professor para com o aluno poderão marcar a vida do sujeito e contribuir positivamente ou não para a sua evolução. Em seus métodos, ressalta a importância do comportamento curioso de um aluno, pois aflora no sujeito o seu senso crítico e questionador. Ressalta, ainda, que o ensino dinâmico desenvolve a curiosidade sobre o que ele chama de “o fazer e o pensar sobre o fazer”. Freire (FREIRE, 1999) evidencia, acima de tudo, a necessidade do respeito, da compreensão, da humildade e do equilíbrio das emoções entre professores e alunos em sua metodologia de ensino. Nas palavras de Freire:

Na relação entre professor e aluno se faz necessário à trova mútua de saberes, uma vez praticada esta relação proporcionará uma nova aprendizagem, sendo que o educador deixará de ser um mero transmissor de conhecimento e o aluno um sujeito, apenas receptor. Havendo essa relação ocorrerão novas aprendizagens, estás sendo significativa para ambos. Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender (FREIRE, 1999, p. 23).

Paulo Freire (FREIRE, 1999) nota, ainda, que há diferenças na forma de tratamento às pessoas em relação ao seu nível social. Para o autor, educar é, também, respeitar as diferenças sem preconceito. A discriminação, dentro e fora da sala de aula, é um ato imoral, vai contra a democracia e o princípio constitucional da dignidade do ser humano.

O escritor diferencia a autoridade docente democrática e a autoridade docente mandonista, sendo que explica que a autoridade mandonista não inclui no método de ensino a criatividade do aluno. Assim, a autoridade coerentemente democrática, fundando-se na certeza da importância de si mesma e da liberdade dos educandos, para construir um clima de real disciplina, jamais minimiza a liberdade, convicta de que a verdadeira disciplina não existe na estagnação, no silêncio dos silenciados, mas no alvoroço dos inquietos, na dúvida que instiga, na esperança que desperta (FREIRE, 1999). Freire aborda a autoridade e a liberdade de forma que a compreensão sobre a afetividade disposta no terreno da educação cria uma relação coerente com a ética, permitindo, assim, a ruptura e o risco, sem deixar de ter responsabilidade. À luz dessa teoria defende:

O professor autoritário impossibilita de o educando ter um crescimento. O mesmo tem que dar possibilidades para seu educando tenha autonomia, esta que possibilita a criança ter novas aprendizagens, além de que o educador deverá respeitar a curiosidade do seu aluno, fator este primordial no ambiente escolar. A curiosidade aguçada promove uma aprendizagem significativa e o professor ao ver este ponto deverá respeitar e trabalhar nesse sentido, para promover um ambiente estimulador e questionador. O respeito à autonomia e à dignidade de cada um é um imperativo ético e não um favor que podemos ou não conceder uns aos outros. (FREIRE, 1999, p. 59).

Dessa forma, frente o que foi trabalhado por Paulo Freire (FREIRE, 1999) resta-se claro que é preciso um ambiente sem preconceitos e com uma autoridade docente democrática para o desenvolvimento das pessoas. Entretanto, quando se trata da população trans tais sujeitos/sujeitas não tem nem suas existências respeitadas, de tal forma que são alvos constantes de violência.

 

3    A VIOLÊNCIA CONTRA A POPULAÇÃO TRANS

 

No relatório divulgado pelo NUH (Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG) sobre LGBTIFOBIA[7], em abril de 2018, pode-se constatar que a maioria dos assassinatos são com armas de fogo, indicando, também, que a maioria dos crimes contra esses sujeitos/sujeitas são premeditados. O ganho qualitativo da pesquisa em relação dessas violências é significativo, pois, de forma resumida, as conclusões da pesquisa apontam: a) o apagamento da travestilidade na história social do indivíduo; b) a redesignação de um gênero para o corpo custodiado; e c) a qualificação de um gênero considerado criminoso, fora das convenções sociais, fora da categoria de corpo humano (PRADO, 2018).

Esses três aspectos produzem em atos e procedimentos o que apresenta como a construção do gênero criminoso que, ao adentrar o sistema de justiça como vítima, suporta autora e/ou testemunha, já inicia perdendo completamente qualquer qualidade de adequação à vida social.  Assim, resta um movimento de retirada da humanidade daqueles corpos, o que gera um sistema injusto de criminalização das pessoas que se auto-identificam como travestis e transexuais (PRADO, 2018, p. 68).

O relatório da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) (ANTRA, 2018) revela que “não é só matar. É matar, esquartejar. Para expurgar toda e qualquer possibilidade de existência e também de humanidade”. A ideia, pois, dos crimes é de aniquilar todo e qualquer direito civil do sujeito trans:

A associação mais comum é com a agressão física, tortura, espancamento e facadas. 85% dos casos os assassinatos foram apresentados com requintes de crueldade como uso excessivo de violência, esquartejamentos, afogamentos e outras formas brutais de violência. O que denota o ódio presente nos casos. Onde vemos notícias de corpos gravemente mutilados, tendo objetos introduzidos no ânus das vítimas, tendo seus corpos incendiados e jogadas de viadutos (ANTRA, 2018).

Nota-se que os crimes contra as pessoas trans são inúmeras vezes mais violentos. Há sempre uma necessidade de mutilar, humilhar e desacreditar a imagem desses indivíduos. Dessa maneira, o termo genocídio torna-se o mais adequado para definir os crimes acerca dos/das sujeitos/sujeitas trans.

Resta-se demonstrado a existência de uma Necropolítica trans em que estes são alvo do Racismo de Estado, nos moldes conceituados por Michel Foucault, e são corpos que não importam ou são feitos para morrer (BOMFIM; SALLES; BAHIA, 2020, p. 155).

Cumpre ressaltar que quando se trata de número de mortos pela lgbTifobia, muitas vezes o Movimento LGBTI, amplamente dominado pelos homens cis gays, utiliza-se estrategicamente do acrônimo para poder causar impacto quanto às estatísticas de violência, discriminação e mortes, sendo que a maioria dos casos é referente à população travesti/trans. No fim, para uns elas não são mulheres (e, às vezes, elas mesmas nem pretendem ser), para outros são estatísticas, entre outros são um campo minado de diversão e alívio do tesão, mas nunca sujeitas de direito que têm suas individualidades respeitadas. (BOMFIM; SALLES; BAHIA, 2020, p. 156)

Frente a isso, percebe-se que a população trans precisa ser respeitada, ouvida e ter acesso à educação (de forma autônoma e emancipatória). Porém a realidade posta é outra. Consequentemente, a partir desse ponto trabalha-se uma experiência que reconhece a vulnerabilidade da população trans e a partir de alguns conceitos encontrados na “Pedagogia da Autonomia” de Paulo Freire (1999) mostra-se como uma experiência ímpar de inclusão e acesso a essas pessoas.

 

4    EXPERIÊNCIA DA ONG TRANSVEST

 

A ONG/cursinho TransVest é um projeto denominado artístico-pedagógico que tem como objetivo combater a transfobia e incluir travestis, transexuais e transgêneros na sociedade. Desde 2016, o projeto que vem sendo idealizado, ganhando parceiros, força, conta com uma sede localizada no Edifício Maletta – centro de Belo Horizonte. A TransVest é um espaço queer[8], onde ocorre estudos sobre as culturas LGBT, formação de Drag Queens, aulas do ensino básico ao pré-vestibular para as pessoas trans e atividades que fomentam a visibilidade de suas identidades. Sem apoio governamental, todas as atividades realizadas são gratuitas e acontecem por meio de trabalho voluntário.

Idealizada pela travesti Duda Salabert[9], a TransVest surge em uma sala alugada e, de início, voltada para o pré-vestibular. Entretanto, mesmo com toda a divulgação e publicidade não se obteve retorno do público alvo, pois se deu conta de que a maioria das travestis e transexuais não concluíram o ensino fundamental e médio. Assim, a fundadora da TransVest precisou mudar o rumo do caminho da ONG, que passou a oferecer cursos de acordo com a demanda e necessidade daqueles que a procuravam. Dessa maneira, o cursinho da TransVest introduziu atividades diversas em seu plano: palestras sobre as culturas LGBTI, oficinas artísticas, pré-vestibular, supletivo, curso de libras e cursos de línguas (inglês, francês, espanhol e italiano).

A TransVest alcança, gradativamente, visibilidade não apenas na comunidade LGBTI. A ONG/cursinho ganhou em 2018 o Prêmio Beagá Cool[10], na categoria “Projeto Social Mais Criativo” de 2017. O prêmio valoriza iniciativas de pessoas que seguem diferentes percursos para fazer negócios e projetos na capital mineira.

No contexto da ONG Transvest, compreende-se que houve uma primordialidade em implantar não só um cursinho pré-vestibular, mas, também, uma instituição que suprisse algumas necessidades básicas daqueles que o frequentam, uma vez que, o público alvo pertence a um grupo vulnerável. Nesses casos, Paulo Freire (1999) reforça a ideia de que os professores têm uma responsabilidade social e democrática perante os alunos. Estes têm a obrigação de desfazer de sua ignorância para ouvir os alunos, sem limitá-los. Freire (FREIRE, 1999) sugere a necessidade de uma mudança de postura dos profissionais para colaborar com a melhoria de condições e qualidade de vida. Dessa forma, ocorre uma tentativa de ruptura com qualquer forma de discriminação e injustiça.

Fica evidente que a essência do trabalho visado e desenvolvido por Freire, seria, como dito nas palavras de Pelbert (2014), um modo de instaurar existências. Frisa-se que instaurar não é utilizado pelo autor como ato solene ou cerimonial, mas a maneira como, nesse caso, Freire é capaz de levar ao patamar de realidade as existências antes ignoradas, inaugurando, assim, um mundo singular, norteado pelo pluralismo ontológico e existencial.

Neste aspecto, Paulo Freire (FREIRE, 1999) é contra a minimização da população mais carente quanto à imposição da sociedade mais favorável de colocá-la em circunstâncias degradáveis e imutáveis. Este afirma que essa atitude os conduz a uma alienação, resignação e conformismo. Nestes casos, os docentes exercem grande influência para que haja mudança social. Apresenta que há uma necessidade de se fazer florescer uma nova consciência nos discentes. A profissão de educador está ligada às práticas sociais e éticas, com situações de fragilidade física e emocional dos seres humanos.

Paulo Freire (1999) aponta a necessidade de reinvenção do educador e estabelece:

O professor constantemente deve fazer uma auto avaliação, verificando onde precisa melhorar, fazendo os seguintes questionamentos: em que devo melhorar, por que melhorar. A partir do momento em que o educador faz estes questionamentos, o mesmo buscará novas formas de repensar a sua prática pedagógica, uma vez que, fazendo estes questionamentos, possibilitará o educador a rever as suas metodologias, das quais são necessárias para sua prática pedagógica, assim obtendo um bom êxito no ambiente escolar. Por isso é que, na formação permanente dos professores, o momento fundamental é o da reflexão crítica sobre a prática. É pensando criticamente a prática de hoje ou de ontem que se pode melhorar a próxima prática. (FREIRE, 1999, p. 39).

Assim, assegura que cabe ao educador transmitir confiança e credibilidade, dispor de meios de linguagem de fácil entendimento para a população, ouvir e aceitar críticas, ceder espaço e liberdade de opinião a essas pessoas marginalizadas pela sociedade e carente de recursos. Cabe à sociedade obter a consciência de que o ser humano é único e as leis e direitos são universais, lutar pelos nossos direitos, visando viver e fazer os outros viverem dignamente, e defender o que ou quem necessitar.

A Educação popular adota uma metodologia educacional voltada a privilegiar o contexto cultural enraizado na realidade social dos educandos como meio de constituir novos saberes. Assim, por meio do desenvolvimento de uma noção crítica, eleva-se o diálogo e a participação comunitária como forma de transpor os educandos a uma posição ativa frente ao contexto social, político e econômico em que vivem. O conceito de educação popular é defendido pelos autores Paulo Freire e, com base em seus métodos, por Carlos Rodrigues Brandão (BRANDÃO, 1986).

Para os mais entusiasmados, educação popular parece não só existir apenas fora da escola e à margem, de educação escolar, de um sistema de educação e, até mesmo, da educação e resiste a todas, sustenta o psicólogo e autor Carlos Rodrigues Brandão (BRANDÃO, 1986, p. 6). Além disso, sugere que a educação popular “não parece ser um modelo único e paralelo de prática pedagógica, mas um domínio de ideias e práticas regido pela diferença, para explorar o próprio sentido da educação”.

Brandão subdivide a educação popular em quatro sentidos: educação da comunidade primitiva, anterior à divisão social do saber; educação do ensino público; educação das classes populares; e educação da sociedade igualitária. É incontestável a necessidade de ensinar-e-aprender para a sobrevivência dos grupos humanos, desde os primórdios de sua existência. “É necessário que se criem situações onde o trabalho e a convivência sejam também momentos de circulação do saber” (BRANDÃO, 1986, p. 9). É possível dizer, então, que esse é o primeiro sentido de educação popular. “As primeiras situações em que a convivência estável e a comunicação simbólica transferem intencionalmente tipos e modos de saber necessários à reprodução da vida individual e coletiva” (BRANDÃO, 1986, p. 9).

Por outro lado, a primeira exemplificação de educação popular surge com a divisão social de trabalho e com a separação do poder comunitário e da vida social. Como explica o contexto na sociedade:

Poucos especialistas de artes e ofícios, como os da religião primitiva, em algumas tribos, com pequenas diferenças todos sabiam tudo e entre si se ensinavam-e-aprendiam, seja na rotina do trabalho, seja durante raros ritos onde, solenes e sagrados, os homens falavam aos deuses para, na verdade, ensinarem a si próprios que eram eles, e por quê (BRANDÃO, 1986, p. 11).

O conceito de educação popular surge por meio dos movimentos civis e lutas pela democratização do ensino brasileiro. Apresenta-se uma discussão em torno da relação entre o Estado, a sociedade civil e a educação das classes populares no Brasil. A escola pública é a primaz do movimento de mobilização nacional pela educação universal. Porém, apesar deste avanço, a omissão de uma política educacional e deserção da responsabilidade para com o ensino gratuito, agregado aos fatores sociais externos à educação, acabaram ocasionando em progressos lentos, que maleficiam a melhora dos índices escolares às minorias. Fundamentado na luta pela escola pública e das iniciativas de combate ao analfabetismo, a educação alcançou grande melhorias. Contudo, à luz da pesquisa de Brandão (BRANDÃO, 1986) e da percepção social que temos, é nítido que “o ideal de uma educação popular liberal foi um projeto nunca plenamente realizado no Brasil”. O índice de analfabetismo, ainda, é exorbitante, principalmente em áreas de exclusão urbana. Embora seja uma luta social comum a todos, ainda é uma pequena parcela da sociedade que se mobiliza pela causa. A política pública não é eficaz para atender a demanda que o tema exige. Assim, explana Brandão:

Mesmo em graus elementares, a escola pública é deficiente e deixa ainda à margem de uma educação escolar adequada um número muito grande e persistente de crianças e adolescentes pobres. Finalmente, todo o processo de modernização do sistema escolar não resultou, até agora, em uma oferta de educação compatível com as necessidades de instrução, formação, instrumentalização e capacitação das pessoas de povo (BRANDÃO, 1986, p. 21).

Por consequência dessa diligência, aparece “ideias e propostas de uma educação popular, no lugar onde antes ela foi pensada como escola pública”. A característica substancial do conceito de educação popular é a ampliação da sua possibilidade de ser livre.

 

4.1 A necessidade de democratização da educação

 

A educação popular é voltada a sujeitos/sujeitas, grupos e classes sociais proscrita da sociedade, possibilitando suas presenças e a manifestações de poder, diminuindo, assim, o grau de marginalização. À vista disso, o poder público:

É responsável pela distribuição do saber escolar e esta foi, não esqueçamos, uma conquista democrática. Outra, mais avançada, mais no horizonte a frente de uma nova luta pela educação democrática, é a progressiva conquista do poder de participação popular na decisão dos modos e destinos de realização de uma educação que o poder público dirige ao povo (BRANDÃO, 1986, p. 29).

No âmbito educacional, é responsabilidade do educador conduzir à produção e reprodução do poder popular por meio de uma construção coletiva, ministrando um saber popular. Para tal, se faz necessária a exteriorização do modelo oficial da escola e da educação. Por essa razão, “houve um esforço para associar a educação popular a um modo alternativo de trabalhar com o povo através da educação” (BRANDÃO, 1986, p. 28).

Ainda conforme os estudos de Carlos Rodrigues Brandão, o propósito histórico é popularizar e democratizar a sociedade por meio de uma educação popular e, com isso, conclui:

Ao mesmo tempo que é necessária e legítima a ampliação de experiências autônomas e alternativas de uma educação popular realizada entre movimentos populares, movimentos sociais e agências civis de educadores participantes, é também importante a redefinição da educação pública de modo a que, à custa de lutas e conquistas, ela venha a se transformar em uma educação oferecida, pelo poder de Estado, a serviço de interesses e projetos das classes populares (BRANDÃO, 1986, p. 29).

Brandão aborda, ainda, em sua pesquisa duas vertentes da educação popular: primeiro, como processo geral de reprodução do saber e como educação da comunidade; segundo, como trabalho político de luta pela democratização do ensino escolar por meio da escola laica e pública (BRANDÃO, 1986, p. 30). O autor julga que nessa sociedade desigual a qual pertencemos, o sistema institucional de educação ocasiona instruídos e excluídos, e frui a concepção de que a educação é para além das escolas e salas de aula. Posto isto, este elucida como o processo de educação popular pode ser considerado um projeto eficaz:

Assim, ao lado dos sistemas formais e regulares de ensino escolar, coexistem domínios profissionalizantes de saber de confraria[11]. Coexistem formas livres, familiares, vicinais, comunitárias de trocas de conhecimentos imersas em outras práticas sociais, como as que vão do trabalho na lavoura aos ofícios de ferro do catolicismo popular. Artifícios múltiplos de educação do povo (1986, p. 30).

Paulo Freire (FREIRE, 1999) e Carlos Rodrigues Brandão (BRANDÃO, 1986) defendem o método da educação popular para alcançar o êxito de uma sociedade democrática e devidamente multisciente. Para tanto, há, atualmente, uma gradativa propensão de articulação do que Brandão chama de “movimentos profissionais e populares”, cujo objetivo é agregar forças em prol da conquista imediata e crescente de mais direitos populares à educação escolar pública e de mais deveres sociais de participação popular na gestão de sua própria educação escolar. Por esse motivo, torna-se complexo transformar uma educação pública em uma educação popular, de todos os seus modos e níveis (BRANDÃO, 1986, p. 66).

Tal medida, que além de criar oportunidades múltiplas é capaz, ainda, de garantir que realidades existam em seu “gênero” próprio, se encontra em risco. As demandas pelo fim da “ideologia de gênero” e os múltiplos projetos de lei que reivindicam o “Escola sem Partido” voltam-se a uma dissociação da realidade vivida, onde parte da população deixa de existir por não haver correspondência de sua psique com sua genitália. Esse projeto de mundo se distancia drasticamente de proposta como a do Tranvest ou uma educação popular e democrática, limita as possibilidades de mundo e do existir.

Um projeto que se volte à educação em um Estado Democrático com fundamento no pluralismo político deve ser aberto, contendo a intenção de implementar reiteradamente uma democracia no aqui e no agora. Deve, tendo consciência da força de opressão contida no próprio instituto do Direito, abrir espaço para a autocorreção do mesmo, usar do poder emancipatório contido na educação com enfoque em uma pedagogia da autonomia, dar voz àqueles que foram desconstituídos de sua essência, para então se fundar, e fundar o próprio Estado em uma verdadeira soberania popular. 

 

§ CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Frente a isso, sem o objetivo de esgotar a questão, apresentou-se o debate sobre a educação como meio emancipador, a teoria queer, a pedagogia da autonomia como pressupostos científicos e localizar a população trans dentro de um nicho específico. Assim, existem projetos com trabalhos e ações que são ligadas a educação que visam trazer cidadania a uma população trans e estas podem contribuir para uma maior pluralidade dentro da sociedade e uma menor marginalização social.

Igualmente se tem o Direito que legitima as políticas reguladoras do Estado e com isso é um instrumento violento com as pessoas trans, pois atua como um mecanismo performático de exclusão e subalternização daquelas vidas que são correspondem aos corpos padronizados. Com isso existe uma naturalização dos padrões de gênero pelas normas de controle social e seu viés punitivo, gerando um estado de permanência e rigidez.

Dessa maneira é preciso que experiências como da ONG/cursinho Transvest sejam reconhecidas e valorizadas como exemplo para outros lugares. Mesmo que as adequações teóricas sejam importantes e que a valorização do trabalho desenvolvido por Paulo Freire nos estudos mencionados, faz-se necessário empoderar tal população para que estes consigam produzir um conhecimento específico para suas necessidades.

Contra essa luta por empoderamento e desconstrução de padrões naturalizados diversos projetos de lei surgem no campo jurídico-político afirmando a intenção de combater a “ideologia de gênero” e pleiteando uma “Escola sem Partido”. Tais projetos ofendem uma educação popular e democrática, bem como a própria democracia e soberania popular, por visarem o apagamento de parte da população e subalternização de outro, confiando o social a um domínio hegemônico.

Diante desse contexto, a articulação entre a teoria e a prática se mostra como um fator fundamental para conseguir aproximar a militância dos espaços acadêmicos e vice e versa para dessa forma realizar um conhecimento que produza impactos sociais diretos, possibilitando que seres em eclosão reclamem sua própria vivência.

 

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Informações adicionais e declarações dos autores

 

Declaração de conflito de interesses (conflict of interest declaration): os autores confirmam que não há conflitos de interesse na realização das pesquisas expostas e na redação deste artigo.

 

Declaração de autoria e especificação das contribuições (declaration of authorship): todas e somente as pessoas que atendem os requisitos de autoria deste artigo estão listadas como autores; todos os coautores se responsabilizam integralmente por este trabalho em sua totalidade.

 

Declaração de ineditismo e originalidade (declaration of originality): os autores asseguram que o texto aqui publicado não foi divulgado anteriormente em outro meio e que futura republicação somente se realizará com a indicação expressa da referência desta publicação original; também atestam que não há plágio de terceiros ou autoplágio.

 

Dados do processo editorial

· Recebido em: 04/02/2020

· Controle preliminar e verificação de plágio: 28/02/2020

· Avaliação 1: 22/05/2020

· Avaliação 2: 03/06/2020

· Decisão editorial preliminar: 20/06/2020

· Retorno rodada de correções: 27/06/2020

· Decisão editorial final: 27/06/2020

· Publicação: 27/06/2020

Equipe editorial envolvida

·  Editor-Chefe: FQP

·  Assistente-Editorial: MR

·  Revisores: 02

COMO CITAR ESTE ARTIGO

GUSMÃO, Lettícia; BOMFIM, Rainer; SILVA, Jéssica de Paula Bueno da; EBNER, Daniele. O aprisionamento do gênero pelas categorias do Direito e os efeitos na educação: apontamentos sobre teoria queer, pedagogia da autonomia e questões sobre pessoas trans. Revista de Direito da Faculdade Guanambi, Guanambi, v. 7, n. 01, e274, jan./jun. 2020. doi: https://doi.org/10.29293/rdfg.v7i01.274. Disponível em: http://revistas.faculdadeguanambi.edu.br/index.php/Revistadedireito/article/view/274. Acesso em: dia mês. ano.

 



* Editor: Prof. Dr. Flávio Quinaud Pedron. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4259444603254002. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4804-2886.

[1] Bacharela em Jornalismo pela UFOP. Lattes: http://lattes.cnpq.br/7963306399586255. ORCID: http://orcid.org/0000-0003-3829-5628.

[2] Mestrando em Direito pela UFOP. Bacharel em Direito pela UFOP. Membro do Grupo de Pesquisas “RESSABER – Estudos Decoloniais”. Lattes: http://lattes.cnpq.br/3064395260276586. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2934-0653.

[3] Doutoranda em Direito pela UFMG. Mestra em Direito pela UFOP. Especialista em Direito Processual pela PUC/MG. Bacharela em Direito pela Faculdade Milton Campos. Lattes: http://lattes.cnpq.br/8056938446504477. ORCID: http://orcid.org/0000-0002-5993-3249.

[4] Bacharela em Jornalismo pela UFOP. Lattes: http://lattes.cnpq.br/7822741919301248. ORCID: http://orcid.org/0000-0002-0305-6857.

[5] Será utilizado no trabalho o acrônimo LGBTI que significa Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Intersexuais.

[6] 125 projetos de lei municipais, 25 projetos de lei estaduais e 14 projetos de lei federais. Tais dados foram catalogados por uma ONG que combate o Projeto Escola sem Partido, podendo, na realidade, ser muito superior. (PROJETO ESCOLA SEM PARTIDO NO BRASIL, 2020).

[7] Apesar de todos os retrocessos que se vivencia no país, é importante anotar a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2019 no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão n. 26 e do Mandado de Injunção n. 4733. O Tribunal, por maioria, julgou parcialmente procedentes as ações para determinar que o Congresso Nacional aprove uma legislação que puna a LGBTIfobia e, ademais, que até que o Parlamento saia da inércia, que seja aplicada a lei do racismo (Lei n ° 7.716/89) para aqueles casos (BOMFIM; BAHIA, 2019). Não há dúvida que de que a mera decisão do STF não resolve o problema do dia-a-dia de violência da população trans, mas é um passo importante no sentido contrário da necropolítica que se buscou tratar no presente (BOMFIM; SILVA; BAHIA, 2019). A partir dela se inicia todo um processo de construção de uma nova realidade que, por hora, apenas se pode vislumbrar.

 

[8] A teoria queer, segundo o filósofo, Paul Preciado, é uma teoria de empoderamento dos corpos subalternos e não o empoderamento assimilacionista. O empoderamento faz fortes nas margens e ocupar os espaços com os corpos transviados.

[9] Professora, ativista e política brasileira que se destacou em 2018 ao ser a primeira mulher transexual a pleitear um cargo de senadora da República.

[10] O nome C.O.O.L. é a abreviação das palavras “criativo”, “original”, “ousado” e “local”, mas também não perde sua construção de sentidos multiversos.

[11] Exemplos: o ensino que forma o psicanalista em uma sociedade fechada de psicanálise, o que prepara o sacerdote em um convento, um artista em uma “escola livre” de pintura, e o que forma, no trabalho, artesãos de madeira, ferro, couro e ouro.