Judicializando a qualidade do ensino: da inconstitucionalidade do sistema educacional da progressão continuada[1]

“Judicialyzing” education´s quality: the unconstitutionality of the educational system of “continued progression”

 

 

Rafael de Oliveira Costa[2]

Escola Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo (ESMP/SP) – São Paulo/SP

[email protected]

 

 

Resumo: O presente estudo busca, ao atentar para a necessária reaproximação entre a Lei nº 9.394/96e a Constituição, compreender o impacto das revelações trazidas pelos princípios constitucionais para o sistema da progressão continuada, questão aqui escolhida para debate por representar, indubitavelmente, um dos grandes desafios do Direito à Educação na contemporaneidade. Trata-se de pesquisa que faz uso do raciocínio hipotético-dedutivo, valendo-se de dados de natureza primária (acórdãos e leis) e secundária (entendimentos doutrinários), concluindo pela necessidade de uma compreensão mais profunda do fenômeno da judicialização da qualidade do ensino à luz das normas constitucionais.

Palavras-chave: Direito Constitucional; Judicialização da Qualidade do Ensino; Progressão Continuada.

Abstract: This study seeks, by attending to the necessary rapprochement between Law nº 9.394/96 and the Constitution, to understand the impact of the revelations brought by the constitutional principles to the system of continued progression, issue chosen for discussion here because it represents, undoubtedly, one of the major challenges of the Right to Education in contemporary times.It is a research that adopts a hypothetical-deductive way of reasoning, using data of primary nature (cases and laws) and secondary (doctrinal understandings), concluding that it is still necessary a deeper understanding of the phenomenon of judicialization education through constitutional norms.

Keywords: Constitutional Law; “Judicialization” of Education´s Quality; Continued Progression.

 

SUMÁRIO: INTRODUÇÃO; 1 DO DIREITO À EDUCAÇÃO; 2 DA INCONSTITUCIONALIDADE DO REGIME DA PROGRESSÃO CONTINUADA PREVISTO NO ARTIGO 32, § 2º, DA LEI N° 9.394/96; CONSIDERAÇÕES FINAIS; REFERÊNCIAS.

 

SUMMARY: INTRODUCTION; 1 RIGHT TO EDUCATION; 2 THE UNCONSTITUTIONALITY OF THE EDUCATIONAL SYSTEM OF CONTINUED PROGRESSION (ARTICLE 32, § 2°, OF THE FEDERAL LAW N° 9.394/96); FINAL CONSIDERATIONS; REFERENCES.

 

§ Introdução[3]

 

Historicamente, o sistema da progressão continuada foi implantado, em primeiro lugar, na França, com o objetivo de melhorar a qualidade do ensino. 

Em 1920, o Professor Sampaio Dória tentou adotar o modelo no Estado de São Paulo. Posteriormente, implantou-se o programa os Estados do Rio de Janeiro (1967), Pernambuco e São Paulo (1968). Mais tarde, a progressão continuada foi abraçada pelos Estados de Minas Gerais e Santa Catarina (1970)(VIEGAS, 2007).

Com o advento da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB - Lei 9.394/96), o modelo se difundiu e passou a ser adotado por todo o país (VIEGAS, 2007).

Trata-se, em verdade, de um sistema de progressão que pressupõe que o discente absorva as competências e habilidades em um ciclo, sem que seja possível a sua reprovação. Procura-se recuperar o aluno por meio de um “acompanhamento direcionado e individualizado”, evitando que a repetência seja fator de desincentivo e venha a prejudicar a evolução acadêmica.

Contudo, o tema é alvo de acirradas controvérsias entre os educadores. O sistema recebe apoio daqueles que acreditam em sua eficácia enquanto instrumento de democratização do ingresso e permanência de cidadãos na escola, sob o argumento de que a reprovação, além de prejudicar a auto-estima do jovem, incute em seu caráter a ideia de derrota e inaptidão, resultando em custos elevados para o Estado (SOUSA, 2007).

Em que pesem os argumentos trazidos pelos defensores do modelo, seria a progressão continuada compatível com a Constituição de 1.988?

A partir do raciocínio hipotético-dedutivo e valendo-se de dados de natureza primária (acórdãos e leis) e secundária (entendimentos doutrinários), analisaremos nos próximos tópicos a necessidade de uma compreensão mais profunda do fenômeno da judicialização da qualidade do ensino à luz das normas constitucionais.[4]

Passemos à sua concretização.

 

1          Do Direito à Educação

 

Cada ser humano é, a um só tempo, os “muitos seres” que o existir permite a sua abertura de horizontes (HEIDEGGER, 1979, p. 168).A dignidade humana resulta “[...] dessa possibilidade de uma existência pluridimensional e em transição; uma existência plúrima em potencialidades, ainda que finita.” (OLIVEIRA, 2013, p. 13). Finitude (morte), esta, que não desconsidera a condição humana como perene construção de si, para si e para o mundo (OLIVEIRA, 2013, p. 13).

Nesse contexto, é na educação que a natureza humana se apresenta em toda sua potencialidade.

Historicamente, contudo, a filosofia da educação tem sido objeto de acirrados debates e apresenta-se como uma prioridade em nível mundial.

Como um processo histórico, constitui um direito fundamental reconhecido em tratados e convenções internacionais, que tem como marco a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948. Em seu artigo 26:1, a Declaração dispõe que “Toda pessoa tem direito à instrução.”

O Direito à Educação é reafirmado no artigo 12 da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, em dispositivo que contem a seguinte redação: “Toda pessoa tem direito à educação.”

Cabe destacar que o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ratificado pelo Brasil em 24 de janeiro de 1992, também dispõe acerca da matéria, estabelecendo, em seu art. 13, que “os estados-partes no presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa à educação. Concordam em que a educação deverá visar ao pleno desenvolvimento da personalidade humana e do sentido de sua dignidade e a fortalecer o respeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais”.

A Convenção Americana sobre os Direitos Humanos (Pacto de San Jose da Costa Rica) e a Convenção sobre os Direitos da Criança também reconhecem o Direito à Educação como fundamental ao desenvolvimento social.

No âmbito interno, a Constituição regulamentou a matéria em diversos artigos.

Dispõe o artigo 3º, incisos III e IV, da Carta Magna, serem objetivos fundamentais da República erradicar a pobreza e a marginalização, bem como promover o bem de todos – o que inclui, indubitavelmente, a garantia de um nível educacional mínimopara toda a população.

A Constituição dispõe ainda, em seu artigo 6º, que o Direito à Educação se enquadra dentre os direitos sociais.

Mais adiante, em seu artigo 205, estabelece que:

[...] a educação, direito de todos e dever do estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

Não bastasse, o artigo 206, inciso VII, elenca como um dos princípios do ensino a garantia do padrão de qualidade. Ensino de qualidade que abrange não só a adequada seleção do conteúdo a ser ministrado, mas também a adoção de uma metodologia que permita a efetiva absorção do conteúdo pelo aluno, inclusive no que concerne à avaliação de rendimento.

O art. 206, incisos II e III, ainda dispõe que:

Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: II – liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; III – pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino.

Na mesma linha, a Carta Magna estabelece, em seu artigo 208, inciso V, que o direito à progressão para os níveis mais elevados de ensino decorre da capacidade de cada um.

Prosseguindo, o dever do Estado em assegurar à criança e ao adolescente o direito à educação foi também reiterado no tópico alusivo à família, à criança, ao adolescente e ao idoso. Vejamos:

Art. 227 - É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Sobre o tema, José Afonso da Silva destaca que, se por um lado todos têm direito à educação, o Estado tem o dever de prestá-la. Para tanto, a Administração Pública deve se aparelhar para fornecer a todos os serviços educacionais e ensino de qualidade, de acordo com os princípios e objetivos estatuídos na Constituição (SILVA, 2007, p. 785).

Acompanhando a linha programática da Constituição, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90), buscou regulamentar o Direito à Educação, em especial em seu art. 54, ressaltando ser dever do Estado assegurar à criança e ao adolescente o ensino fundamental, obrigatório e gratuito.

Com o intuito de regulamentar os diversos dispositivos constitucionais que tratam da matéria, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB)[5] estabeleceu um sistema de gestão democrática das escolas e possibilitou a criação de conselhos escolares:

Art. 14. Os sistemas de ensino definirão as normas da gestão democrática do ensino público na educação básica, de acordo com as suas peculiaridades e conforme os seguintes princípios: I - participação dos profissionais da educação na elaboração do projeto pedagógico da escola; II - participação das comunidades escolar e local em conselhos escolares ou equivalentes.

Nesse contexto, os conselhos escolares passaram a dispor de autonomia para avaliar a progressão parcial do aluno, com base no regimento interno escolar, ou promover o aluno, ao considerar desnecessária a progressão apenas parcial. Em outras palavras, com o advento da LDB a promoção do aluno não depende do desempenho obtido em uma única matéria, mas de uma análise global de seu aproveitamento em todas as disciplinas que vier a cursar. E mais: o artigo 32, § 2º, da Lei 9.394/96, dispôs expressamente acerca do regime da progressão continuada. Vejamos:

Artigo 32, § 2º - Os estabelecimentos que utilizam progressão regular por série podem adotar no ensino fundamental o regime de progressão continuada, sem prejuízo da avaliação do processo de ensino-aprendizagem, observadas as normas do respectivo sistema de ensino.

Partindo desse dispositivo legal, inúmeros Estados e Municípios passaram a adotar, no âmbito do ensino fundamental, o sistema da progressão continuada, conferindo-lhe uma leitura que em muito se aproxima da “progressão automática”.

Contudo, o mencionado sistema não é compatível com a Constituição de 1.988. É o que procuraremos demonstrar a seguir.

 

2          Da inconstitucionalidade do regime da progressão continuada previsto no artigo 32, § 2º, da Lei n° 9.394/96

 

Com a inserção da progressão continuada na LDB, deixou de ser requisito para a promoção de séries/ciclos a absorção de conteúdo programático mínimo pelos discentes, como forma de evitar a estigmatização do aluno reprovado e consequente evasão escolar. Sobre o tema, Rosana Prado Biani aduz que, da forma como vem sendo aplicado, o sistema da progressão continuada não atinge os benefícios pretendidos pelos seus defensores:

[...] da forma como se concretizou, a Progressão Continuada não rompeu com os mecanismos e processos de seleção, fracasso e exclusão, levando a escola a manter o seu caráter seletivo e excludente [...] a exclusão, antes exterior à escola pelo não ingresso, repetência e evasão, acontece agora com a criança na escola, pela pouca qualidade de aprendizagem (BIANI, 2007, p. 78).

No mesmo sentido, Vitor Henrique Paro sustenta que a supressão da reprovação escolar pretende apenas “maquiar estatísticas”, sem que o sistema represente efetiva vontade política de melhorar a qualidade do ensino (PARO, 2001, p. 51; PANICACCI, 2009).

Urge mencionar que atividades de reforço e recuperação paralela, embora recomendadas às escolas como ações continuadas imprescindíveis, apresentam-se de forma não uniforme, deixadas a critério de cada equipe escolar, sem a regularidade desejável, comprometendo os resultados, refletindo o “descompasso entre cultura dos reformadores e a cultura dos professores” (OLIVEIRA, 2003, p. 66).

Ressalte-se, contudo, que para parcela dos educadores a ausência de reprovação não implica, ao contrário do sustentado pelos defensores do modelo da progressão continuada, em auto-estima elevada das crianças e adolescentes que frequentam o ensino fundamental. Isso porque a auto-estima está diretamente relacionada com o interesse e capacidade de aprender e, não, com a mera reprovação. Em outras palavras, o aluno que progride, sabendo que não possui o mérito para fazê-lo, tem ciência de sua defasagem e, por via de consequência, sofre uma baixa em sua auto-estima – embora tenha alçado degrau mais alto na escalada escolar. Por este motivo, a ênfase na “promoção da auto-estima auto-estima” desvia a atenção da socialização efetiva de “conhecimentos” e faz da “melhora da auto-estima” o desiderato único do discurso educacional hegemônico (PATTO, 2000, p. 195; PANICACCI, 2017).

O modelo, da forma como vem sendo adotado, exige do discente apenas a frequência escolar, sem atentar para necessidade de absorção do conteúdo, o que resulta em inegável fator de desestímulo ao estudante ao saber que, independentemente de seu esforço pessoal e da busca pelo conhecimento, será aprovado. Em outras palavras, desconsidera-se o mérito, fator de impulsão para o avanço na busca pelo conhecimento (PANICACCI, 2017).

Assim, a implantação do programa – da forma como ocorreu – e a ausência de acompanhamento e preparação dos professores, levam à conclusão de que a exclusão permanece na escola:

[...] democratizar a escola significa, nessas reformas, muito mais pôr em andamento a marcha pelos sucessivos graus escolares, sem reprovações, do que oferecer uma boa formação intelectual. Na concepção dos planejadores, democratizar a escola tem sido principalmente abrir a porta trancada das séries subsequentes, importando pouco a qualidade do ensino oferecido (PATTO, 2000, p. 195).

Ora, a concretização das normas constitucionais que regem a matéria não pode ser fruto da subjetividade do intérprete, mas deve decorrer de parâmetros pré-determinados que possibilitem o fechamento hermenêutico do sistema.

Mas como deve se dar a seleção do conjunto de normas que regulamenta a qualidade do ensino fundamental?

Apesar da existência de uma margem de indeterminabilidade na interpretação de cada caso, a tarefa de concretização da norma constitucional não se dissolve no relativismo (GADAMER, 1997, p. 477). Existe uma perene busca pela previsibilidade das decisões e pelo ideal de justiça:

Na ideia de uma ordem judicial supõe-se o ato de que a sentença do juiz não surja de arbitrariedades imprevisíveis, mas de uma ponderação justa do conjunto. A pessoa que se tenha aprofundado em toda compreensão da situação estará em condições de realizar essa ponderação justa. Justamente por isso existe segurança jurídica em um estado de direito; ou seja, podemos ter uma ideia daquilo que nos atemos. Qualquer advogado ou conselheiro está, em princípio, capacitado para aconselhar corretamente, ou seja, para predizer corretamente a decisão do juiz com base nas leis vigentes (GADAMER, 1997, p. 489).

Assim, para determinar a norma que deve reger a qualidade do ensino, é preciso observar a lógica da adequabilidade no âmbito do discurso de aplicação, que, segundo Günther (2004, p. 123-142), deve seguir duas diretrizes principais:

1) completa descrição da situação: o aplicador do direito deve buscar uma completa descrição da situação concreta, para que todos os elementos fáticos e jurídicos sejam submetidos à análise, realizando uma “filtragem” dos fatos relevantes para o caso.

2) coerência normativa: os conflitos de normas devem ser resolvidos não pela existência de um conteúdo material hierarquicamente superior pré-determinado no ordenamento, como se fosse possível falar em normas preferenciais, mas em virtude da adequabilidade da norma ao caso concreto.

Procura-se, desse modo, evitar o risco da decisão fundada em resultados “pré-concebidos pelo julgador”, como tem sido feito de forma rotineira no reconhecimento do Direito à Educação, em manifesta contradição à impossibilidade de se determinar previamente o sentido da norma de decisão. Não existe verdade prévia. A verdade é construída intersubjetivamente, a partir dos elementos do caso concreto e da observância aos precedentes. Segundo Streck:

[...] é inexorável que eu venha combater toda e qualquer atividade discricionária, voluntarista ou decisionista do Poder Judiciário – e da doutrina positivista que guarnece tais posições. Registre-se minha posição firme – fundado na hermenêutica filosófica – no sentido de que 'levemos o texto a sério', entendido o texto como evento [...] (STRECK, 2006, p. 141).

Desse modo, a determinação da norma jurídica a ser aplicada a cada caso deve se dar a partir da coerência das normas em face da totalidade das circunstâncias fáticas envolvidas e dos precedentes existentes, compatibilizando a norma da decisão com o “fechamento hermenêutico” do ordenamento (STRECK, 2006).

Assim, à luz do princípio da supremacia da Constituição, outra não pode ser a conclusão senão aquela que nos leva à unicidade do fenômeno hermenêutico: o processo de compreensão,interpretação e aplicação de um preceito jurídico é unitário e deve ter sempre como ponto de partida a Constituição. Em outras palavras, a Constituição serve de base para a compreensão do Direito, determinando o sentido de todas as normas que compõem o ordenamento jurídico. De forma geral, buscar origem exógena para as normas constitucionais é colocar em risco valores universalmente consagrados na experiência jurídica, como a segurança e a previsibilidade das decisões (MEGALE, 2002, p. 111).

Portanto, se toda concretização da norma é sempre uma concretização da própria Constituição, é possível concluir que, a partir de uma interpretação harmonizadora dos preceitos acima mencionados, o artigo 32, § 2º, da Lei 9.394/96, não se compatibiliza com a nossa Carta Magna.

Em primeiro lugar, porque o artigo 205, da Constituição, estabelece que a educação será promovida e incentivada visando: a) o pleno desenvolvimento da pessoa, b) seu preparo para o exercício da cidadania e c) a sua qualificação para o trabalho.

A educação é um direito fundamental e indisponível dos indivíduos, sendo dever do Estado propiciar meios que viabilizem o seu exercício. O sistema de progressão continuada, ao permitir a progressão do aluno para a série/ciclo subsequente sem que tenha absorvido um mínimo do conteúdo programático, não está cumprindo o seu objetivo de qualificar a criança ou adolescente para o mercado de trabalho, para o seu desenvolvimento pessoal ou até mesmo para o exercício da cidadania (PANICACCI, 2017).

O desenvolvimento pleno da pessoa pressupõe o conhecimento de limites e a valorização do mérito. A sociedade deve valorizar o esforço e reprimir a desídia, concedendo oportunidade apenas àqueles que efetivamente lutam pelo conhecimento e pelo aprimoramento pessoal. Em assim sendo, como sustentar que aquele que não acompanha o conteúdo ministrado se desenvolve adequadamente?

O mesmo ocorre em relação ao exercício da cidadania: ao absorver o ideal de que empenho e dedicação são irrelevantes, que espécie de cidadão está sendo preparado pelo sistema?

A lógica adotada acaba, ainda, por desestimular alunos inicialmente aplicados, na medida em que os “resultados serão os mesmos”, independentemente do empenho empregado na busca pelo conhecimento.

Assim, o modelo acaba transferindo “para mais tarde” os efeitos do fracasso escolar, ou seja, para o momento de busca por um emprego: apenas no âmbito do mercado de trabalho é que o aluno perceberá o seu despreparo, podendo acabar “excluído” das oportunidades existentes (PANICACCI, 2017).

Em suma, o sistema da progressão continuada viola frontalmente o artigo 205, da Constituição.

Não bastasse, o artigo 206, inciso VII, da Carta Magna, estabelece o padrão de qualidade como garantia do Direito à Educação. O ensino de qualidade deve abranger não apenas a adequada fixação do conteúdo a ser ministrado, mas também que a metodologia empregada permita e avalie a sua efetiva absorção (PANICACCI, 2017).

Em assim sendo, ao desconsiderar a necessidade de efetiva absorção do conteúdo e a adoção de métodos para adequada avaliação do desempenho do aluno, o sistema da progressão continuada em nada contribui para a garantia do padrão de qualidade do ensino.

Ao contrário, o discente passa a ser aprovado pela simples frequência às aulas, como se a absorção do conteúdo fosse secundária, quando, na verdade, a mera permanência nas salas de aula em nada contribui para aquele que, futuramente, será avaliado pelo conhecimento que detém – seja por meio da seleção realizada pelo mercado de trabalho, seja para o ingresso nos níveis mais elevados do ensino e da pesquisa (PANICACCI, 2017).

Portanto, o modelo da progressão continuada não permite a efetiva melhoria da qualidade do ensino, sendo utilizado, em alguns casos, para “mascarar” levantamentos estatísticos que em nada refletem o preparo daquele que detém o diploma. O sistema deixa transparecer a falsa impressão de que os índices de eficiência escolar cresceram, quando inexiste efetivamente qualquer melhoria na qualidade do ensino (PANICACCI, 2017).

Por essas razões, o artigo 32, § 2º, da Lei 9.394/96, ofende também o artigo 206, inciso VII, da Constituição, ao permitir a adoção de modelo de ensino que viola a garantia do padrão de qualidade.

Ressalte-se, por oportuno, que o sistema da progressão continuada pode implicar em afronta, também, aos princípios da isonomia (artigo 5º, caput, da Constituição) e do acesso aos níveis mais elevados de ensino segundo a capacidade de cada um (artigo 208, inciso V, da Constituição) (PANICACCI, 2017).

Em sua função precípua de obstar discriminações, o princípio da isonomia deve ser considerado sob duplo aspecto: a) o da igualdade na lei e b) o da igualdade perante a lei.

A igualdade na lei constitui exigência destinada ao legislador, que, no processo de consolidação do ato normativo, nele não pode incluir fatores de discriminação que violem a ordem isonômica.

A igualdade perante a lei, por outro lado, pressupõe lei já elaborada, traduzindo-se em imposição de que, na aplicação da norma, o poder estatal não pode subordiná-la a critérios que ensejem tratamento seletivo ou discriminatório.

Assim, resta claro que o conceito de isonomia é relativo por definição:a igualdade pressupõe pelo menos duas situações, que se encontram numa relação de comparação, de modo a permitir o mesmo tratamento.

Desse modo, o princípio insculpido no artigo 5º, caput, da Constituição, não impede o tratamento diversificado de situações quando houver elemento de discrímen razoável, tal como sói ocorrer no processo de aprendizagem. O atentado à isonomia consiste em tratar desigualmente situações iguais, ou em tratar igualmente situações diferenciadas, de forma arbitrária e não fundamentada.

Ao conferir tratamento igualitário a alunos que se encontram em situações distintas – ao menos no que concerne à absorção do conhecimento –, o regime da progressão continuada viola a Constituição. Sem a aquisição de habilidades e o domínio de conteúdo específico não se pode tolerar o avanço para as séries/ciclos subsequentes, sob pena de se comprometer definitivamente o processo de formação educacional.

Da mesma forma, a garantia de acesso aos níveis mais elevados do ensino segundo a capacidade de cada um revela a escolha de um critério de mérito, que deve ser observado em todas as fases do processo de formação do aluno (PANICACCI, 2017).

A liberdade de concepções pedagógicas não pode desconsiderar a necessidade de valorização do esforço/dedicação do discente e o caráter deletério da ideia de que comprometimento e desídia levam a um resultado único.

Assim, a progressão continuada deve ser analisada à luz do arcabouço principiológico sobre o qual se assenta o Estado Democrático de Direito. É essencial, nesse contexto, calibrar os critérios de acesso às séries/ciclos para que se possa dar concreção aos objetivos colimados na Constituição, não sendo compatível com a atual ordem constitucional um modelo que desconsidera o mérito como requisito para a progressão do aluno e admite a “desídia” como fundamento “para a manutenção da auto-estima” de crianças e adolescentes.

Por fim, vale ressaltar que o regime da progressão continuada também não observa o princípio da eficiência, estampado no artigo 37, caput, da Constituição.

O princípio da eficiência orienta a atividade administrativa para que alcance os melhores frutos com o menor “custo” possível, implicando não só na organização e estruturação da máquina estatal para torná-la mais racional, mas também na regulação da atuação de agentes públicos em busca do melhor desempenho e da maximização dos resultados.

A progressão continuada, contudo, não encontra amparo no princípio da eficiência. Isso porque não se pode chamar de eficiente regime que não preconiza a busca por resultados na absorção do conhecimento e permite aos alunos atingirem a etapa final sem que dominem o conteúdo ministrado.Em outras palavras, o regime da progressão continuada implica não apenas na ausência de organização e estruturação da máquina estatal para torná-la mais efetiva na formação do discente, mas ainda desconsidera a atuação finalística de todos os agentes públicos que fazem parte do sistema de ensino, os quais deveriam buscar o melhor desempenho dos alunos (PANICACCI, 2017).

Frise-se que, ao adotar o regime da progressão continuada, o Poder Público inevitavelmente reduzirá os investimentos na área de Educação, como decorrência de conclusões calcadas em dados estatísticos que não refletem a realidade.

Incumbe ressaltar, também, que eventual vedação legal ao sistema da progressão continuada – como pretendeu o Projeto de Lei do Senado nº 390/07 – em nada viola o artigo 206, incisos II e III, da Constituição, uma vez que, segundo entendemos, o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas deve ser interpretado em harmonia com os demais preceitos constitucionais que regem a matéria, especialmente a necessidade de se alcançar os níveis mais elevados de ensino segundo a capacidade de cada um e a busca pelo padrão de qualidade.

Em suma, a não-observância dos preceitos constitucionais que regem o Direito à Educação enseja sua proteção pelo Poder Judiciário, especialmente por meio do controle de constitucionalidade, de modo a garantir a qualidade do ensino no país.

     

§ CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

O sistema da progressão continuada pressupõe que o discente obtenha as competências e habilidades em uma série ou ciclo, sem que seja possível a sua reprovação. Trata-se de sistema implantado, inicialmente, na França, com o objetivo de reduzir o número de alunos reprovados e melhorar a qualidade do ensino, que passou a ser a regra em nosso país com o advento da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei nº 9.394/96).

Contudo, o tema não deixou de ser alvo de inúmeras controvérsias entre os educadores, recebendo apoio apenas daqueles que acreditam na sua eficácia como instrumento de democratização do ingresso e permanência dos cidadãos na escola.

Este trabalho, contudo, conclui pela inconstitucionalidade do sistema da progressão continuada, uma vez que afronta as normas contidas no artigo 5º, caput, artigo 6º, caput, artigo 37, caput, artigo 205, artigo 206, inciso VII, e artigo 208, inciso V, todos da Constituição de 1.988, especialmente porque o Direito à Educação é mais que um direito social de segunda dimensão: é um direito fundamental, inserido no direito à vida em seu sentido integral, como meio necessário à sólida formação moral e profissional do cidadão. Assim, o regime da progressão continuada não se coaduna com as normas protetivas do Direito à Educação, além de contrariar os princípios constitucionais erigidos como norteadores do sistema nacional de ensino.

Em suma, é preciso atentar para a inconstitucionalidade do modelo adotado e correr os riscos associados com a exploração de novos horizontes, incumbindo ao Poder Judiciário garantir não apenas o Direito à Educação sob o seu aspecto formal, mas também material (qualidade do ensino),de modo que o sistema de ensino venha promover, de forma efetiva, o preparo e a formação de cidadãos.

 

Referências

 

BIANI, Rosana Prado. A progressão continuada rompeu com mecanismos de exclusão?. 2007. Dissertação (Mestrado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2007.

 

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método. Tradução de Flávio Paulo Meurer. Petrópolis: Vozes, 1997.

 

GÜNTHER, Klaus. Teoria da Argumentação no Direito e na Moral: Justificação e Aplicação. Rio de Janeiro: Landy, 2004.

 

HEIDEGGER, Martin. O que é Metafísica? In: Conferências e escritos filosóficos. Trad. Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

 

MEGALE, Maria Helena Damasceno e Silva. Hermenêutica Jurídica: Interpretação das Leis e dos Contratos. 2002. Tese (Doutorado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2002.

 

OLIVEIRA, Márcio Luís de. A Constituição Juridicamente Adequada: transformações do constitucionalismo e atualização principiológica dos direitos, garantias e deveres fundamentais. Belo Horizonte: Arraes, 2013.

 

OLIVEIRA, Tamara F. M. Escola, cultura do ideal e do amoldamento. São Paulo: Iglu, 2003.

 

PANICACCI, F. L. Progressão continuada nas escolas públicas: distorções no modelo, aprovação automática, danos à infância e juventude, e a crí­tica dos especialistas em educação. Disponí­vel em: www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/.../Artigo%20Progressão%20Continuada.doc.  Acesso em: 29 jul. 2019.

 

PARO, Vitor Henrique. Reprovação Escolar: renúncia à educação. São Paulo: Xamã, 2001.

PATTO, Maria Helena Souza. Mutações do cativeiro: escritos de psicologia e política. São Paulo: Hacker/Edusp, 2000. 

 

SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à Constituição. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2007.

 

SOUSA, Sandra M. Zákia L.; OLIVEIRA, Romualdo Portela de. Sistemas de Avaliação Educacional no Brasil: características, tendências e usos dos resultados – relatório final. Centro de Estudos e Pesquisas em Políticas Públicas de Educação – CEPPPE, Faculdade de Educação, USP, 2007.

 

STRECK, Lênio Luiz. Verdade e Consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.

 

VIÈGAS, Lydia Sousa. Progressão continuada em uma perspectiva crítica em psicologia escolar: história, discurso oficial e vida diária escolar. 2007. Tese (Doutorado em Psicologia) - Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.

 


 

 

 

Informações adicionais e declarações dos autores[6]

 

Declaração de conflito de interesses (conflict of interest declaration): o autor confirma que não há conflitos de interesse na realização das pesquisas expostas e na redação deste artigo.

 

Declaração de autoria e especificação das contribuições (declaration of authorship): todas e somente as pessoas que atendem os requisitos de autoria deste artigo estão listadas como autores; todos os coautores se responsabilizam integralmente por este trabalho em sua totalidade.

 

Declaração de ineditismo e originalidade (declaration of originality): o autor assegura que o texto aqui publicado não foi divulgado anteriormente em outro meio e que futura republicação somente se realizará com a indicação expressa da referência desta publicação original; também atesta que não há plágio de terceiros ou autoplágio.

 

Dados do processo editorial

· Recebido em: 25/07/2019

· Controle preliminar e verificação de plágio: 25/07/2019

· Avaliação 1: 28/07/2019

· Avaliação 2: 18/09/2019

· Decisão editorial preliminar: 18/09/2019

· Retorno rodada de correções: 16/10/2019

· Decisão editorial final: 16/10/2019

· Publicação: 28/10/2019

Equipe editorial envolvida

·  Editor-Chefe: FQP

·  Assistente-Editorial: MR

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COMO CITAR ESTE ARTIGO

COSTA, Rafael de Oliveira. Judicializando a qualidade do ensino: da inconstitucionalidade do sistema educacional da progressão continuada. Revista de Direito da Faculdade Guanambi, Guanambi, v. 6, n. 02, e258, jul./dez. 2019. doi: https://doi.org/10.29293/rdfg.v6i02.258. Disponível em: http://revistas.faculdadeguanambi.edu.br/index.php/Revistadedireito/article/view/258



* Editor Responsável: Flávio Quinaud Pedron. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4259444603254002. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4804-2886.

[1] Dedico este trabalho ao meu filho, o qual é uma fonte permanente de felicidade e inspiração.

[2] Doutor e Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Graduado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, em programa conjunto com a University of Wisconsin-Madison (Estados Unidos). Professor na Escola Superior do Ministério Público. Professor Visitante na Universidade da Califórnia-Berkeley. Promotor de Justiça no Estado de São Paulo. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4793246077898855. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9979-9382.

[3] O presente estudo baseia-se na inicial de Ação Civil Pública ajuizada pelo Promotor de Várzea Paulista, Dr. Fausto Luciano Panicacci, referência acerca do tema no âmbito do Ministério Público do Estado de São Paulo.

[4]Para os fins deste trabalho, a judicialização do ensino deve ser entendida como um fenômeno jurídico que apresenta três aspectos principais: (i) o aumento do número e impacto de decisões judiciais em causas afetas à temática do ensino; (ii) o processo em que conflitos relacionados ao ensino são levados ao Judiciário para uma resolução; e (iii) o uso crescente do sistema judiciário a fim de gerar uma mobilização em torno de temáticas relacionadas ao ensino e a políticas públicas de ensino.

[5] Recentemente, a Lei nº 13.803/19 alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei nº 9.394/96), obrigando a notificação de faltas escolares ao Conselho Tutelar quando superiores a 30% (trinta por cento) do percentual permitido em lei. Anteriormente, a Lei nº 10.287/01 já havia alterado o art. 12, VIII, da LDB, estabelecendo que os estabelecimentos de ensino teriam a incumbência de notificar ao Conselho Tutelar do Município, ao juiz competente da Comarca e ao respectivo representante do Ministério Público a relação dos alunos que apresentassem quantidade de faltas acima de cinquenta por cento do percentual permitido em lei. O novo diploma normativo modificou essa realidade, estabelecendo que: “Art. 12. Os estabelecimentos de ensino, respeitadas as normas comuns e as do seu sistema de ensino, terão a incumbência de: VIII – notificar ao Conselho Tutelar do Município a relação dos alunos que apresentem quantidade de faltas acima de 30% (trinta por cento) do percentual permitido em lei;”. Assim, a Lei nº 13.803/19 acabou por promover duas modificações significativas: 1) Afastou a necessidade de notificação ao juiz competente da Comarca e ao respectivo representante do Ministério Público. Desse modo, apenas o Conselho Tutelar será notificado acerca das faltas, devendo o órgão adotar as medidas cabíveis. Infrutíferas as diligências realizadas pelo Conselho Tutelar, deverá comunicar o ocorrido ao Ministério Público; 2) Reduziu o percentual de faltas de 50% para 30% do permitido em lei para a notificação do Conselho Tutelar, intensificando o combate à evasão escolar.

 

[6] Modelo adotado a partir da RBDPP.