As decisões de tutela antecipada enquanto técnica processual apta à harmonização de valores constitucionais processuais: o acesso à justiça e a técnica de estabilização da decisão antecipatória

The preliminary injunction as a procedural technique able to harmonize procedural constitutional values: the access to justice and the stabilization of the preliminary injunction

 

 

Bernardo Penna[1]

Universidade Federal de Rondônia (UNIR) – Cacoal/RO

[email protected]

 

Wiliam Ricardo Gama[2]

Faculdade Autônoma de Direito (FADISP) – Pinheiros/SP

[email protected]

 

 

RESUMO: O presente artigo parte da demanda por uma prestação jurisdicional democrática, efetiva e dentro de um prazo razoável, analisando, por meio de uma abordagem dedutiva com enfoque zetético e investigação bibliográfica, se a técnica da tutela antecipada antecedente corresponde ao objetivo de se ter um instrumento processual apto à harmonização de princípios constitucionais processuais decorrentes do princípio do Devido Processo Legal e que buscam essa efetivação da prestação jurisdicional de modo a bem tutelar a pretensão dos que buscam a tutela estatal democrática na sua forma, conteúdo e utilidade. Partindo da necessidade de se conformar o estudo dos institutos processuais aos valores constitucionais, abordará aspectos relevantes em relação ao regime de tutelas provisórias mediante a concessão da antecipação dos efeitos da tutela pretendida pela parte por meio de uma decisão pautada em juízo de cognição sumária e, portanto, em um primeiro momento precária e carente de estabilização, até a técnica de estabilização dessa decisão provisória e não exauriente, mas que também tem aptidão a se tornar imutável e indiscutível, muito embora não definitiva.

Palavras-chave: Cognição judicial. Tutela provisória antecedente. Sumarização do procedimento. Efetividade da prestaçãojurisdicional. Processoconstitucional.

ABSTRACT: The present article adopts as a principle the demand for a democratic, effective and reasonably timed jurisdictional provision, by analyzing, through a deductive approach with zetetic focus and bibliographical investigation, if the technique of anticipated preliminary injunction corresponds to the objective of having an instrument able to harmonize constitutional procedural principles arising from the principle of due process of law which seek this effectiveness of judicial provision in order to protect the claim of those seeking democratic state protection in its form, content and usefulness. Based on the need to conform the study of procedural institutes to constitutional values, the research will address relevant aspects in relation to the regime of provisional cognition by granting the anticipation of the effects of jurisdictional provision intended by the party through a decision based on summary cognition and, therefore, in a first precarious and lacking stabilization moment, until the technique of stabilization of this provision results in a still non-exhaustive cognition, but capable of becoming immutable and indisputable, although not definitive..

Keywords: Judicial cognition.Anticipated preliminary injunction.Procedural summarization. Effectivenessofthejurisdictionalprovision.Constitutional procedures.

 

SUMÁRIO: INTRODUÇÃO; 1 TUTELA PROVISÓRIA ENQUANTO INSTRUMENTO DE REALIZAÇÃO DE MANDAMENTOS CONSTITUCIONAIS: JURISDIÇÃO EFETIVA, CÉLERE E EFICIENTE E A QUESTÃO DA SEGURANÇA JURÍDICA; 2 DIFERENÇA ENTRE TUTELA JUDICIAL E PRESTAÇÃO JURISDICIONAL: EM QUE CONSISTE A TUTELA ANTECIPADA?; 3 AS TUTELAS PROVISÓRIAS NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL 2015 E A TÉCNICA DA SUMARIZAÇÃO DA COGNIÇÃO EM ANTECIPAÇÃO DA TUTELA; 4 O REGIME DA TUTELA ANTECIPADA ANTECEDENTE E A TÉCNICA DE ESTABILIZAÇÃO DA DECISÃO JUDICIAL PROVISÓRIA; CONSIDERAÇÕES FINAIS; REFERÊNCIAS.

 

SUMMARY: INTRODUCTION; 1 PRELIMINARY INJUCTION AS A INSTRUMENT FOR MAKING CONSTITUTIONAL COMMANDMENTS: EFFECTIVE, CELLULAR AND EFFICIENT JURISDICTION AND THE LEGAL SECURITY ISSUE; 2 DIFFERENCE BETWEEN JUDICIAL TUTLE AND JURISDICTIONAL BENEFIT: WHAT IS AN PRELIMINARY INJUCTION? 3 THE PROVISIONAL TUTLES IN THE CIVIL PROCEDURE CODE 2015 AND THE TECHNIQUE OF THE SUMMARY OF THE TUTLE COGNITION IN ADVANCE; 4 THE PREVIOUS ADVANCED TUTLE SCHEME AND THE PROCEDURE FOR STABILIZATION OF THE JUDICIAL PROVISIONAL DECISION; FINAL CONSIDERATIONS; REFERENCES.

 

§ INTRODUÇÃO

 

Uma das preocupações mais recorrentes da ciência do processo, ao menos nos últimos anos, parece ser a da efetivação dos princípios constitucionais que procuram, dentre outros, bem tutelar o direito violado dos cidadãos. Para tanto, não são poucas as regras surgidas, inclusive no âmbito constitucional, cujo escopo é de garantia de um acesso à jurisdição que não se baste apenas numa acepção formal, mas também substancial, na medida em que se pretende uma prestação jurisdicional caracterizada por sua efetividade e eficiência.

Nessa busca, uma das maiores dificuldades é a que precisa lidar com a questão do tempo. Uma prestação jurisdicional que se quer segura juridicamente não pode ser aquela que, no afogadilho, descura da melhor técnica decisória ou mesmo do respeito aos procedimentos que compõem o devido processo legal e, até por isso, pressupõe alguma demora para esse processo que, por sua vez, a fim de ser conforme a constituição, não poderá ser irrazoável.

Ao mesmo tempo, quem tem razão tem pressa e quem tem urgência tem mais pressa ainda, não podendo ser esse que tem razão e tem urgência, aquele que sofrerá a agrura do tempo que não para. Daí a necessidade de busca por técnicas que distribuam esse ônus do tempo do processo.

Uma dessas técnicas processuais é o regime de tutela provisória do Código de Processo Civil que, além de regular as hipóteses de antecipação dos efeitos da tutela judicial pretendida em razão da urgência – contemporânea à propositura da ação – e da evidência que faz a pretensão da parte senão bastante provável, ao menos suficientemente provável.

Não bastasse a previsão dessa técnica processual, há ainda a inovação trazida pelo Código de Processo de 2015 de, em sendo a intenção do autor e não havendo insurgência do réu, dispensar-se o prosseguimento do feito até a prolação de decisão definitiva, bastando-se as partes litigantes com a estabilização dos efeitos da tutela antecipada em caráter antecedente, sempre nos termos dos dispositivos respectivos. Tal técnica que soma à prolação de decisão mediante juízo de cognição sumária (e precária) a uma sumarização, agora, também do procedimento, pode se mostrar medida de economia processual e de tempo e, consequentemente, mostrar-se enquanto técnica que harmoniza os valores de acesso à justiça justa, efetiva, célere, eficiente e, consequentemente, democrática ao valor da segurança jurídica que se espera obter quando da jurisdição.

É sobre isso que se tratará nas linhas que seguem.

 

1          TUTELA PROVISÓRIA ENQUANTO INSTRUMENTO DE REALIZAÇÃO DE MANDAMENTOS CONSTITUCIONAIS: jurisdição efetiva, célere e eficiente e a questão da segurança jurídica

 

A Constituição Federal confere a todo aquele que se vê lesado ou diante de ameaça de lesão a direito seu, a garantia de acesso à prestação jurisdicional a ser feita pelo Estado juiz, contraprestação estatal em vista de compensar a vedação à justiça privada. Diz-se que tal dispositivo, constante no inciso XXXV do art. 5º da Constituição Federal consagra o princípio da inafastabilidade da jurisdição.

Aliás, iniciar a análise e apresentação de qualquer direito ou instituto de direito a partir de uma exegese que se dê sob as lentes da constituição é, ao menos, o meio que garantirá que essa análise se dê nos exatos limites conformadores da unidade de toda a ordem jurídica.

Nesse sentido, Pedron, Milagres e Araújo (2017), ao pontuarem a superação da ideia de contraditório a partir da noção de “dizer e contradizer”, defendem um novo contraditório, a partir da Constituição Federal de 1988, a partir do qual o devido processo legal se realiza na noção de participação das partes na construção da resposta judicial.

o CPC/2015 (LGL\2015\1656) abre-se para a recepção de um novo olhar acerca da natureza jurídica do processo, buscando abandonar a vetusta e autoritária teoria relacionista do processo (Bülowe seus seguidores) para, perseguindo as referências normativas de um processo democrático, aceitar a teoria do modelo constitucional de processo (Andolina). E o principal argumento é a mudança de compreensão a que passa o princípio do contraditório na nova legislação (PEDRON; MILAGRES e ARAÚJO, 2017).

É sabido que a Constituição da República Federativa do Brasil de 5 de outubro de 1988, trouxe em seu conteúdo normas processuais – muitas inclusive direitos e garantias fundamentais – de eficácia imediata, de modo que o processo civil não só deve atuar segundo seu dogma, mas também deve se mostrar instrumento apto à garantia da vigência da constituição, tanto nesse particular, quanto no todo. Daí se compreende lição de Bueno (2004) quando afirma que “o plano técnico do processo, a realização das diretrizes constitucionais do processo, é necessariamente vinculado ao modelo que a Constituição reserva para ele” (BUENO, 2004, p. 4).

Nesse sentido, Zavascki (1995) acentua que

A exegese do direito ordinário, para ser segura e adequada, impões que se dê atenção às raízes de natureza constitucional da norma interpretada. Isso por duas razões básicas. Em primeiro lugar, porque, como é de geral conhecimento, é a Constituição que dá unidade ao sistema jurídico, que estabelece seus princípios básicos, que fixa os direitos fundamentais. Por isso mesmo, as regras positivadas pelo legislador ordinário somente serão válidas quando compatíveis com os preceitos constitucionalizados, e a interpretação e a aplicação delas deverá se dar de forma a que os resultados não só sejam compatíveis com os princípios da Constituição, mas que representem a mais fiel concretização dos valores constitucionais. E, em segundo lugar, porque as normas da legislação infraconstitucional exercem, em muitos casos (e esse é o caso das normas que disciplinam a antecipação de efeitos da tutela, segundo se fará ver no devido tempo), a função de concretização e de harmonização de direitos fundamentais (ZAVASCKI, 1995, p. 15-32).

De se notar que o doutrinador e juiz catarinense teve o cuidado de pontuar a necessidade não só de concretização, mas também de harmonização de direitos fundamentais ao tempo de se fazer a interpretação das normas infraconstitucionais. Assim o faz porque vislumbra a potencialidade (real) de conflitos entre direitos fundamentais, de modo que qualquer possibilidade de superação desse conflito passará por uma conclusão inevitável de que os direitos fundamentais não são absolutos.

Tal observação se faz importante na medida em que, como afirmado, a Constituição da República assegura aos litigantes em juízo um grande número de direitos fundamentais, consequências que são daquilo que a história do direito convencional chamar de Devido Processo Legal. Mas também é sabido que essa mesma Constituição assegura, como também já afirmado supra, que todos tenham acesso à prestação jurisdicional, uma vez que se julguem diante de uma lesão ou de uma ameaça de lesão ao seu direito.

Em um primeiro momento, poder-se-ia partir para se perguntar se esse acesso â jurisdição é corolário do Devido Processo Legal ou se, ao contrário, o Devido Processo Legal é consequência sua.

Para Neves (2019),

O devido processo legal funciona como um supraprincípio, um princípio-base, norteador de todos os demais que devem ser observados no processo [...] bastaria ao legislador constituinte, no tocante aos princípios processuais, se limitar a prever o devido processo legal que, na prática os valores essenciais à sociedade e ao ideal do justo dariam elementos suficientes para o juiz no caso concreto perceber outros princípios derivados (NEVES, 2019, p. 173-174).

Parece correto, portanto, se afirmar que mesmo o princípio da inafastabilidade da jurisdição é decorrente do princípio do Devido Processo Legal, na medida em que este princípio conforma todos os demais princípios processuais.

Por sua vez, explicando o princípio da inafastabilidade da jurisdição, Neves questiona o que realmente significa dizer que nenhuma lesão ou ameaça à direito deixará de ser tutelada jurisdicionalmente para, então, explicar que

Trata-se da ideia de “acesso à ordem jurídica justa”, ou, como preferem alguns, “acesso à tutela jurisdicional adequada”. Segundo lição corrente na doutrina, essa nova visão do princípio da inafastabilidade encontra-se fundada em quatro ideias principais, verdadeiras vigas mestras do entendimento (NEVES, 2019, p. 93).

Na sequência, Neves (2019) lista essas quatro ideias principais, quais sejam, a ampliação do acesso à justiça ao máximo de pessoas, inclusive com a adoção de políticas legislativas de assistência que atuem no sentido de facilitar o acesso mesmo às pessoas mais carentes ou mesmo mecanismos de tutela mais ampla e efetiva dos direitos coletivos, tudo isso, sem se descuidar do respeito ao devido processo legal, em especial incentivando e efetivando princípios como o do contraditório real e o da cooperação, a fim de que se alcance uma decisão justa, que, a despeito da vagueza de sentido, não deve ser interpretada como uma concessão maior à decisão por equidade fora dos permissivos legais, mas sim, “preferir a interpretação mais justa diante de várias possíveis, ou ainda, de aplicar a lei sempre se levando em consideração os princípios constitucionais de justiça e os direitos fundamentais” e, por fim, a eficácia dessa decisão que, para ser alcançada, não raro precisa superar o inconveniente do tempo necessário à tutela definitiva, demandando mecanismos que façam a prestação jurisdicional, ao mesmo tempo que segura, o mais célere possível.

Nesse ponto, Neves (2019) se faz bem acompanhado por Dinamarco que escrevendo sobre as instituições de direito processual civil, observando que a jurisdição não deve descurar de a Constituição ter feito do Brasil um Estado democrático de direito, assinala que

Direito ao processo justo é, em primeiro lugar, o direito ao processo tout court – assegurado pelo princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional que a Constituição impõe mediante a chamada garantia da ação. Sem ingresso em juízo não se tem a efetividade de um processo qualquer e muito menos de um processo justo. Garantido o ingresso em juízo e até mesmo a obtenção de um provimento final de mérito, é indispensável que o processo se haja feito com aquelas garantias mínimas: a) de meios pela observância dos princípios e garantias estabelecidas; b) de resultados mediante a oferta de julgamentos justos, ou seja, portadores de tutela jurisdicional a quem efetivamente tenha razão. Os meios sendo adequadamente empregados, constituem o melhor caminho para chegar a bons resultados. E, como afina o que importa são os resultados justos do processo (processo civil de resultados), não basta que o juiz empregue meios adquados se ele vier a decidir mal; nem se admite que se aventure a decidir a causa segundo seus próprios critérios de justiça, sem ter empregado os meios ditados pela Constituição e pela lei. Segundo a experiência multissecular expressa nas garantias constitucionais, é grande o risco de erro quando os meios adequados não são cumpridos. Eis o conceito e conteúdo substancial da cláusula dueprocessoflaw, amorfa e enigmática, que mais se colhe pelos sentimentos e intuição do que pelos métodos puramente racionais da inteligência (DINAMARCO, 2001, p. 245-246).

Percebe-se, portanto que, a partir dessa garantia constitucional, o questionamento possível – e necessário – vem no sentido de quando se poderá afirmar que tenha, de fato, havido a prestação jurisdicional justa, efetiva, célere, eficiente e, por tudo isso, democrática. E isso se pergunta, tendo-a enquanto efetivação material do direito ou da proteção pretendida, o que afasta a possibilidade de se entender esse acesso à justiça nos limites da proteção constitucional, tão-somente em um âmbito formal.

Em assim sendo, passa-se a se defender que o acesso à justiça implica em que a parte não só receba uma resposta quanto à viabilidade da sua pretensão, mas que, ato contínuo, essa prestação jurisdicional se faça perceber na esfera jurídica da parte, seja com acréscimo ao seu patrimônio, seja como proteção que impeça perdas nesse patrimônio, seja na extinção, modificação ou criação de uma situação jurídica.

Não por um acaso, defende-se que o acesso à justiça implica numa correspondência à ideia da máxima coincidência, há algum tempo apresentada por Chiovenda (1993), segundo a qual, o processo deve ser bastante para garantir à parte exatamente e precisamente aquilo a que ela faça jus (CHIOVENDA, 1993, p. 110 apud ARENHART, 2000, p. 1).

Daí que se defenderá, inclusive, uma atuação mais ativa da jurisdição em relação à prestação da sua tutela jurisdicional, de modo que essa jurisdição, a despeito de aplicação dos direitos presentes na ordem jurídica subordinada à ordem constitucional, imperativa, não raro criativa, mas sempre com aptidão à definitividade, não apenas certifique e assegure o direito da parte, mas também o realize concretamente.

Mas para além das legítimas expectativas que surjam em relação à prestação jurisdicional justa, efetiva e, para tanto, célere, também é importante não se descuidar da realidade de que esta deve ser segura. A segurança jurídica advinda da decisão judicial também é um direito fundamental a ser extraído do direito a um devido processo legal, 

Nesse conjunto de garantias está inserido o direito à segurança jurídica, de cuja densidade se pode extrair que não apenas a liberdade, mas também os bens em sentido amplo (inclusive, pois, os direitos subjetivos de qualquer espécie) hão de permanecer sob a disposição de quem os detém e deles se considera titular, até que se esgote o devido processo legal (ZAVASCKI, 1995, p. 6).

Bem se vê que no trecho acima, Zavascki (1995) sugere que a segurança jurídica é aquela que se alcança apenas com a dita cognição completa (também chamada exauriente), esta sim, apta à definitividade decorrente do fenômeno da coisa julgada.

Ocorre que, a partir daí, considerados os recursos postos à disposição dos litigantes, prazos de atuação, demandas processuais que concorrem pela atenção da corte e outros incidentes que podem alcançar o processo ao longo da sua tramitação, é possível se considerar que essa tutela definitiva demandará mais tempo do que a, muita vez, urgência da parte não permite esperar.

Com isso, é necessário se harmonizar, como dito supra, uma demanda por uma jurisdição efetiva, mas também, eficiente porque justa, célere – sem dilações indevidas –, em cuja decisão se mostre útil para bem tutelar a pretensão da parte com uma demanda por uma jurisdição segura, estável, vinda após a viabilização da efetiva participação dos litigantes no convencimento do juiz.

O fato de ambas expectativas estarem firmadas em direitos e garantias fundamentais demanda que tanto o legislador ordinário quanto o julgador, levem-nos (esses direitos e garantias) em conta em suas respectivas atuações. Aquele – o legislador – deverá propiciar, pela via legislativa, disciplina capaz de, democraticamente, atenuar a tensão entre os valores constitucionais impressos à jurisdição. É dizer, com isso, que caberá ao legislador “propiciar a convivência a mais harmônica possível dos direitos constitucionais dos litigantes, propiciando alternativas para resolução das eventuais colisões” (ZAVASCKI, 1995, p. 28). Já ao juiz caberá uma atuação de modo a formular uma decisão que supere essa tensão entre valores constitucionais opostos para que, na prática, o direito de quem tem pressa não se veja a mercê de eventuais questiúnculas, mas que, todavia, impõem-se enquanto obstativas da sua pretensão.

Essa harmonização necessária, portanto, é alcançável com a adoção da técnica das tutelas provisórias e, em especial, com a possibilidade de antecipação dos efeitos da tutela que se quererá definitiva ou tão-somente estável (com a opção pela estabilização de uma decisão que, a despeito do momento de sua prolação, mostra-se satisfativa e bastante para que a parte se contente em vê-la, se não imutável, estável nos seus próprios sentidos e alcances).

 

2          DIFERENÇA ENTRE TUTELA JUDICIAL E PRESTAÇÃO JURISDICIONAL: em que consiste a tutela antecipada?

 

Logrou-se demonstrar, retro, a importância de fazer do processo em que e presta a jurisdição um instrumento de efetivação de direitos a partir da tutela jurisdicional prestada. É de se dizer, portanto, que há uma diferença entre o que seja tutela judicial e o que seja prestação jurisdicional.

Sobre essa instrumentalização que faz do processo meio de realização do direito material, este, por sua vez, conteúdo conformador do processo, tem-se em Watanabe (2000) que

O direito e o processo devem ser aderentes à realidade, de sorte que as normas jurídico-materiais que regem essas relações devem propiciar uma disciplina que responda adequadamente a esse ritmo de vida, criando os mecanismos de segurança e de proteção que reajam com agilidade e eficiência às agressões ou ameaças de ofensa. E, no plano processual, os direitos e pretensões materiais devem encontrar uma tutela rápida, adequada e ajustada ao mesmo compasso (WATANABE, 2000, p. 143).

A partir daí é que se questiona em que categoria de realização do direito se encaixaria o instituto da tutela antecipada.

Valendo-se da lição de Assis (2015), tem se que

Entende-se por antecipação a entrega (ou a simples possibilidade desse ato, pois há limites práticos intransponíveis ao objetivo) do bem da vida, do proveito, da utilidade ou da vantagem almejada pelo autor na abertura do processo, mediante provimento liminar, ou em fase anterior à que, segundo o rito comum, o autor chegaria a essa posição (ASSIS, 2015, p. 359).

Como aponta Arruda Alvim (2017), no sentido que se defendeu até o presente momento, a técnica da tutela antecipada vem com o fim de efetivar e harmonizar os princípios e garantias constitucionais de proteção ao patrimônio pessoal e jurídico dos eventuais litigantes, razão pela qual o estudo das tutelas deve se dar, repise-se, agora sob sua doutrina, em conformidade com os valores constitucionais. Não por um acaso, o professor, em obra dedicada ao estudo da Tutela Provisória assenta que

Uma primeira ideia que é importante fixar é a de que o fenômeno da tutela provisória deve ser estudado também, necessária e ontologicamente, a partir de um prisma constitucional. Se o acesso à justiça encontra-se garantido inclusive em relação à ameaça de lesão, é certo que, em muitos casos, esta somente pode ser obstada através de uma tutela de urgência, como é o caso da antecipação da tutela e da tutela cautelar, espécies das tutelas provisórias de urgência (ARRUDA ALVIM, 2017, p. 24).

Pode-se, concluir, ante ao até aqui exposto e à semelhança do que encontra eco em Marinoni, que “a tutela antecipatória, portanto, nada mais é do que o instrumento necessário para a realização de um direito constitucional” (MARINONI, 2004, p. 166), no caso, a concretização do acesso efetivo à prestação jurisdicional garantido pelo inciso XXXV do art. 5º da Constituição e isso, sem descuidar da incidência dos demais dispositivos constitucionais processuais.

A essa altura, mostra-se pertinente que se estabeleça uma diferenciação entre o que seja tutela judicial e o que seja prestação jurisdicional para que, estabelecidas essas premissas, investigue-se em que consiste essa dita antecipação.

Theodoro Júnior (2002), ao pontuar essa diferenciação, indica com precisão, que a prestação jurisdicional é consequência do direito fundamental de acesso à jurisdição estatal. Havendo a provocação do Estado-juiz, passa a ser direito da parte obter uma resposta. Entretanto, essa resposta – que lhe virá – não será necessariamente uma tutela jurisdicional. Isso porque, para se falar em tutela dependerá de se tratar de ato judicial que reconheça e resguarde “in concreto o direito subjetivo da parte (THEODORO JUNIOR, 2002, p. 26).

Com isso, tem-se que de um lado há o direito constitucionalmente assegurado de recorrer ao poder judiciário ante a uma lesão ou uma ameaça de lesão a direito, enquanto, de outro lado, há o direito que a parte tem de obter uma resposta do Estado que lhe assegure o direito em caso de ameaça ou lhe efetive o direito em caso de violação. Essa atuação no sentido de conferir à parte o que lhe é por direito (de forma inibitória ou reparatória) é em que consiste a tutela jurisdicional que, por sua vez, vem desse dever de o Estado prestar jurisdição a quem se lhe recorra. Essa resposta sem a proteção do direito não caracterizaria a tutela judicial pretendida.

E é a partir daí que se ganha força que o sistema preveja meios que bem tutelem a situação urgente da parte, ainda que, havendo essa “redistribuição do ônus do tempo”, não se fira a paridade de armas e nem se onere desproporcionalmente uma das partes. Dessa forma, parece possível se dizer que a jurisdição realizará seu escopo constitucional que, em relação a essa dita “jurisdição de urgência” tem seus fundamentos (constitucionais) na medida em que opera uma “(a) segurança para execução e (b) execução para segurança”, cuja raiz é a mesma “da tutela preventiva: a prestação jurisdicional adequada ao litígio apresentado pelo autor ao órgão judiciário conforme o ideal da ‘efetividade’” (ASSIS, 2015, p. 365).

Quando se entende os fundamentos constitucionais das tutelas provisórias como, conforme o caso, segurança para a execução (tutela cautelar) ou execução para segurança (tutela satisfativa) não é forçoso se considerar que mesmo a tutela satisfativa, quando antecipada, tem um caráter assecuratório para fins de obtenção da tutela definitiva, de modo que é possível se retomar a discussão a respeito da natureza cautelar da tutela antecipada, ainda que satisfativa, já que satisfaz para que eventual decisão definitiva não seja inútil. Logo, tem natureza de assegurar a utilidade da tutela final.

Importante, nesse ponto, que se pontue e acentue que ao se falar em antecipação da tutela, tal como se popularizou se referir ao instituto, na verdade quer se referir às antecipações dos efeitos práticos da tutela que se pretende definitiva, mas em fase prévia à decisória. Daí porque se afirmar que quando se em busca de uma tutela condenatória que tem por efeito prático a satisfação (efetivação material) do direito violado, seu efeito pode ser antecipado determinando que se entregue determinado bem da vida ou que faça ou deixe de fazer determinada conduta (NEVES, 2019, p. 514).

Por outro lado, a doutrina rechaça a possibilidade de antecipação dos efeitos da tutela no âmbito das tutelas constitutiva e declaratória. Com a tutela constitutiva onde, de ordinário, pretende-se a alteração de uma situação jurídica seja modificando-a, extinguindo-a ou mesmo criando uma nova situação, de modo que seu caráter de irreversibilidade – de se lembrar que um requisito da antecipação é, justamente, a reversibilidade (art. 300, §3º[3]) – com consequente potencialidade para a constituição de novas situações jurídicas a partir da antecipada, inviabilizam sua aplicação.

Quanto à tutela declaratória, uma vez que o que ela busca é um juízo de certeza, faz-se incompatível com uma tutela fundada em juízo de probabilidade, como é o caso da tutela provisória, fundada que é, num juízo de verossimilhança baseada em “elementos que evidenciem [essa] probabilidade” (art. 300, CPC/15).

Assim, falar-se em antecipação dos efeitos (práticos) da tutela é falar de uma tutela judicial provisória porque, como já dito, porque fundada em cognição sumária assentada numa primeira análise superficial do objeto litigioso – daí se aceitar que se fale em juízo de probabilidade –, mas também precária na medida em que, via de regra, dependente da ratificação pelo juízo quando da prestação da tutela definitiva, além de sujeita a revogação ou modificação no curso do procedimento, desde que, por óbvio, quando tenha havido alteração fática ou de direito que lhe autorize. Além de, também por essas razões, ser insuscetível de ser alcançada pelo fenômeno da coisa julgada, eis que este pressupõe tutela definitiva fundada em cognição exauriente (DIDIER JR.; BRAGA; OLIVEIRA, 2015, p. 568).

Vê-se, pelo até aqui exposto, que a própria ciência processual buscou técnicas processuais que se mostrassem aptas à melhor prestação de tutela judicial, de modo a melhor tutelar o direito dos demandantes, sempre respeitando o devido processo legal. Nesse mister, a tentativa aparentemente mais bem-sucedida fora a técnica da antecipação dos efeitos da tutela mediante a prestação de tutela judicial pautada na sumarização da cognição.

Em todo caso, diante do quanto apresentado e de modo que oriente o sentido do que ainda se demonstrará, pertinente o alerta de Arruda Alvim  (2017) no sentido de que “a tutela provisória calcada na urgência não deve ir além do estritamente necessário para que o direito do autor (rectius, afirmação do direito do autor), que se entremostra como provável, seja resguardado” (ARRUDA ALVIM, 2017, p. 36).

 

3          AS TUTELAS PROVISÓRIAS NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL 2015 E A TÉCNICA DA SUMARIZAÇÃO DA COGNIÇÃO EM ANTECIPAÇÃO DA TUTELA

 

É necessário que se apresente uma definição do que seria técnica processual. Para tanto, parte-se de definição colhida de trabalho de Bedaque (2006), para quem

Essa expressão deve ser compreendida como o conjunto de soluções adotadas pelo legislador processual para regular o método de trabalho denominado processo. Daí a necessidade, na construção do modelo adequado de instrumento, de se levar em consideração as especificidades do direito material submetido ao processo (BEDAQUE, 2006, p. 253-266).

O legislador do Código de Processo Civil acolheu sugestão da comissão especial que trabalhou na sua elaboração e estabeleceu um Livro específico para compreender e regular as tutelas provisórias. Nessa parte do Código, então, encontram-se as tutelas de natureza cautelar e satisfativa fundadas na urgência, mas também as tutelas provisórias de natureza satisfativa fundadas na evidência. A partir disso, entende-se que as tutelas provisórias podem apresentar duas naturezas distintas (cautelar ou satisfativa) e dois fundamentos distintos (urgência ou evidência).

Diz-se satisfativa aquela tutela que se presta a certificar ou efetivar o direito material com a entrega do dito bem da vida ao demandante. Essa tutela satisfativa, quando visa a certificação de direitos, poderá ter natureza declaratória, constitutiva e condenatória, ao passo que, em se pretendendo a efetivação, ela terá natureza executiva (ao menos em sentido amplo), a variar a forma de efetivação: se por execução direta ou indireta.

Diz-se, por seu turno, cautelar, a tutela cuja pretensão seja no sentido de assegurar, conservar o direito afirmado pela parte, de modo a impedir que o decurso do tempo atue de modo a inviabilizar a efetivação da prestação jurisdicional que se requer.

Aliás, restou célebre a lição de Pontes de Miranda que, ao diferenciar as pretensões a uma tutela satisfativa e a uma tutela cautelar, afirmara de forma aparentemente simples, que as cautelares “garantem para satisfazer”, ao passo que as satisfativas (as antecipadas ou antecipatórias), “satisfazem para garantir” (PONTES DE MIRANDA, 2003, t. XII).

Socorrendo-se, novamente, da lição de Pedron, Milagres e Araújo (2017), para a diferença entre as tutelas de natureza cautelar e satisfativa, tem-se que

A título de esclarecimento, concebemos que o critério distintivo dessas diferentes técnicas de tutelas provisórias de urgências (cautelar ou antecipada) se dá pela figura da satisfatividade. Ou seja, com a tutela provisória de urgência cautelar buscando-se a efetividade da atuação jurisdicional sem, contudo, alcançar satisfatividade, mediante mera proteção de direitos; já a tutela provisória de urgência antecipada desenvolve-se buscando essencialmente a satisfatividade antecipada do mérito – ou seja, seu objeto vem coincidir exatamente com um ou alguns dos pedidos formulados pela petição iniciais e que compõe total ou parcialmente a pretensão da parte autora (PEDRON; MILAGRES e ARAÚJO, 2017, p. 348).

Não é outro, ainda, o entendimento de Ferreira (2010) para quem

a tutela cautelar destina-se a assegurar a eficácia (prática) do processo de conhecimento ou de execução, não se concedendo, portanto, o próprio bem da vida almejado, mas apenas assegurando que, uma vez reconhecido judicialmente o cabimento de tal pretensão, aí sim o bem da vida seja entregue e isto será possível porque a viabilidade do alcance do bem da vida foi protegida ou acautelada. Como já dizia Piero Calamandrei, a medida cautelar destina-se a dar tiempo a lajusticia de cumplireficazmente sua obra. Na tutela antecipada não se antecipa o provimento judicial em si (que definirá a relação jurídica), nem apenas se assegura o resultado. O que se verifica é a antecipação dos efeitos do provimento definitivo, o que é a representação do bem da vida almejado pelo autor. É a tutela satisfativa no plano dos fatos, já que realiza o direito. Conforme sustentamos anteriormente o que o autor obtém, ainda que provisoriamente, é a admissão de seu pedido mediato e não do seu pedido imediato, já que este último só na sentença é que será apreciado (FERREIRA, 2010, p. 13).

Tem-se, com isso, que não é outra a razão que leva Baptista da Silva (2014) apresentar sua diferenciação entre a tutela cautelar e a tutela antecipada a partir da ideia de que, enquanto nesta – a antecipada – se tem execução para segurança, naquela é o que se objetiva é segurança da execução.

Enquanto as tutelas fundadas na urgência têm como pressuposto da sua concessão a existência de perigo de dano ou de risco ao resultado útil do processo (art. 300/CPC[4]), as tutelas provisórias fundadas na evidência que, diga-se, independem da demonstração de risco, são possíveis em hipóteses determinadas pela lei (v. g., art. 311/CPC[5]).

É possível, ainda, acompanhar o Código de Processo Civil no estabelecimento de diferentes momentos de requerimento e concessão das aludidas tutelas provisórias. Em assim sendo, tem-se que as tutelas provisórias podem ser pedidas segundo a técnica antecedente ou enquanto incidente processual. Referir-se à tutela provisória antecedente é se referir ao pedido de antecipação que é feito ainda antes do requerimento da tutela definitiva, ou seja, a parte, em razão da urgência contemporânea à ação, requer primeiro a segurança de que o seu pleito será efetivado de início – em sede de cognição sumária – para, então, no prazo de 15 (quinze) ou 30 (trinta) dias a depender se requerida tutela de urgência satisfativa ou tutela de urgência cautelar, complementar sua postulação fazendo acrescer a pretensão a ser julgada em sede de cognição exauriente.

É de se lamentar – e aqui se concorda com Neves (2019) –, o fato de o legislador não ter previsto a possibilidade de se requerer antecedentemente a tutela fundada na evidência, tanto mais porque está também terá natureza satisfativa e um juízo de probabilidade ainda mais forte que aquela fundada em urgência (NEVES, 2019, p. 487). Em todo caso, reservou a possibilidade de, em se tratando de pedido de tutela provisória fundado na existência de precedente de observação obrigatória por parte do juízo ou em se tratando de pedido de tutela provisória de pedido reipersecutório fundado em contrato de depósito inadimplido pelo depositário, o julgador poderá conceder a tutela da evidência liminarmente.

Por sua vez, referir-se à tutela incidente é se referir àquela que é requerida ou concomitante ao pedido de tutela definitiva ou mesmo com o processo já em curso, independente de qual fase se encontre, sendo que quaisquer das tutelas podem ser requeridas e concedidas incidentemente.

Ao explicar o que seria essa tutela definitiva cujo momento do pedido determina se a tutela provisória foi requerida segundo a técnica antecedente ou incidente, Didier Jr., Braga e Oliveira (2015) afirmam ser

Aquela obtida com base em cognição exauriente, com profundo debate acerca do objeto da decisão, garantindo-se o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa. É predisposta a produzir resultados imutáveis, cristalizados pela coisa julgada. É espécie de tutela que prestigia, sobretudo, a segurança jurídica (DIDIER JR.; BRAGA e OLIVEIRA, 2015, p. 561-562).

Theodoro Júnior (2015), por sua vez, explicando em que consiste a tutela principal para, então, diferenciá-la dessa tutela que se requer em caráter provisório (porque antecipado em seus efeitos), apresenta que

a tutela principal corresponde ao provimento que compõe o conflito de direito material, de modo exauriente e definitivo. Isto pode acontecer mediante provimento de acertamento ou definição, ou por meio de atividade executiva, que incida sobre o plano fático, para pôr as coisas em estado coincidente com o direito reconhecido à parte cuja situação de vantagem já se encontra juridicamente certificada. Nesse sentido, fala-se em tutela de conhecimento e em tutela de execução. [...] O ônus do tempo, às vezes, recai precisamente sobre aquele que se apresenta, perante o juízo, como quem se acha na condição de vantagem que afinal virá a merecer a tutela jurisdicional. Estabelece-se, em quadras como esta, uma situação injusta, em que a demora do processo reverte-se em vantagem para o litigante que, no enfoque atual, não é merecedor da tutela jurisdicional. Criam-se, então, técnicas de sumarização, para que o custo da duração do processo seja melhor distribuído, e não mais continue a recair sobre quem aparenta, no momento, ser o merecedor da tutela da Justiça (THEODORO JÚNIOR, 2015, p. 607-608).

Não se desconsidera que alguma demora é inerente à boa tutela dos direitos, afinal, que o processo tenha alguma duração – que seja razoável – é próprio da realização do devido processo legal e indissociável, portanto, da tutela definitiva.

Não é outra, portanto, a razão para a busca por técnicas que, quando adotadas, implicam na sumarização da cognição a fim de, com isso, distribuir o ônus do tempo do processo conforme a maior ou menor probabilidade do direito do autor.

De se considerar, inclusive, que essa técnica de sumarização é própria desse momento atual, não só do processo, mas do Estado (Social) de Direito, mais preocupado em ter no processo um instrumento de realização e efetivação do direito material, ainda que a custa de uma atuação mais proativa por parte dos órgãos estatais, do que em manter uma cultura absenteísta como era próprio do Estado liberal. Aliás, não se deve passar despercebido que uma preocupação com mecanismos que levassem a uma efetividade mais célere da controvérsia judicial não encontrava eco nos primeiros tempos de um Estado liberal, haja vista que a demora do processo não atingia a esfera de direito da burguesia. É nesse sentido que Alvim (2000) informa que

Roger Perrot observa que as demandas do século passado, tais como questões referentes ao direito de propriedade, sucessão ou atinentes aos regimes matrimoniais, não exigiam um processo cautelar expedito e permitiam que se esperasse uma solução final, até por tempo dilatado. A burguesia, para a qual o direito era principalmente moldado, por outro lado, não era uma classe social carente de recursos, diferentemente das sociedades que sucederam à burguesia do século passado, mercê da paulatina incorporação de segmentos sociais antes marginalizados. Para o burguês a demora não era um fator tão negativo, quanto veio a ser para as sociedades sucessiva (ALVIM, 2000).

Hoje dificilmente haverá quem afirme que a demora não é um fator negativo no processo (e na sociedade) e não é, de alguma maneira, causa determinante de uma decisão que possa ser considerada inconstitucional, senão pelo conteúdo, ao menos em relação ao não cumprimento das premissas constitucionais que sustentam a ideia de uma prestação jurisdicional justa, eficaz e eficiente.

Não será outra a razão de se procurar encurtar o tempo de satisfação da pretensão do demandante sem, com isso, vilipendiar o andamento ideal do processo. Didier Jr., Braga e Oliveira (2015), não por acaso, ao discorrerem sobre a finalidade da tutela provisória apontam que é

Abrandar os males do tempo e garantir a efetividade da jurisdição (os efeitos da tutela). Serve, então, para redistribuir, em homenagem ao princípio da igualdade, o ônus do processo, conforme célebre imagem de Luiz Guilherme Marinoni. Se é inexorável que o processo demore, é preciso que o peso do tempo seja repartido entre as partes, e não somente o demandante arque com ele (DIDIER JR.; BRAGA e OLIVEIRA, 2015, p. 566).

Com Arruda Alvim (2017) se encontra uma boa definição da importância dessas técnicas de antecipação dos efeitos da tutela em sede de tutela provisória e que possíveis em se tratando dos requerimentos de tutelas de urgência (como afirmado supra, lamenta-se o silêncio em relação à tutela da evidência).

Com a tutela provisória de urgência antecipada, objetiva-se criar condições para que a tutela jurisdicional não seja concedida quando já tiver ocorrido, no plano empírico, o dano que se pretende coibir com o processo, pelo retardo inevitável da prestação jurisdicional definitiva (ARRUDA ALVIM, 2017, p. 27).

Na mesma linha de sentido, Bedaque (2006) aponta que na “eterna luta do sistema processual contra o tempo” adotou-se à técnica da sumarização da cognição

Em substituição ao longo processo de cognição plena, com todas as garantias a ele inerentes, surge a ideia de uma tutela mais rápida, com cognição limitada, que possibilite à parte obter antecipadamente o resultado da atuação jurisdicional. Afirma-se, mesmo, que o futuro do processo civil será dominado pelos provimentos urgentes e provisórios (BEAQUE, 2006, p. 119).

Mais uma vez Arruda Alvim (2017), ao discorrer sobre a extensão da cognição em sede de tutela provisória que antecipada os efeitos da tutela pretendida pela parte explica que

A sumariedade da cognição, que caracteriza os provimentos provisórios em análise, não significa que o juiz deva ter conhecimento superficial dos atos, mas sim que deva ter conhecimento superficial deles, que será aprofundado no curso do processo, antes da prolação da decisão final, após cognição exauriente, ressalvada a possibilidade de estabilização da tutela antecipada requerida em caráter antecedente, em que há, pelas partes, conformação (ainda que temporária, dada a possibilidade de rediscussão – confirmação, revisão, reforma ou invalidação da tutela provisória – em demanda posterior com a decisão antecipatória (ARRUDA ALVIM, 2017, p. 23).

E vai além quando, na esteira do trecho supra, explica que essa possibilidade “de decidir antes de formada a cognição exauriente dos fatos decorre da necessidade de que, se o juiz, em tais casos, não decidisse, isso implicaria admitir verdadeira negativa de prestação jurisdicional” (ARRUDA ALVIM, 2017, p. 23).

Em todo caso, não se supõe – e nem se deverá supor – que as decisões antecipatórias fundadas em cognição sumária, em que pese se abordará a possibilidade da estabilização dos seus efeitos, tenham condição de apresentarem o mesmo grau de estabilidade que as decisões fundadas em cognição exauriente. A razão é bem explicada por Alvim (1996), que desde o código anterior já lecionava que

o grau de estabilidade da decisão antecipatória de tutela é menor do que o da sentença. Isto quer dizer que o grau de convicção que deve gerar a prova, que sirva de base a uma sentença, é necessariamente, maior do que aquele que gerará a aludida prova inequívoca. O grau de convicção desta é, em princípio, menor do que aquele que gerará a prova que servirá de base a uma sentença, necessariamente. De outra parte, ainda, se à prova inequívoca segue-se a verossimilhança, é evidente, pela conjugação desses dois termos, que o grau de certeza, daquela emergente, será suficiente se gerar verossimilhança. Já a prova que serve de base à sentença gerará a verdade. Possível e comum mesmo será, todavia, que o resultado da prova produzida, no momento da sentença, confirme inteiramente a verossimilhança existente quando da outorga da tutela antecipatória. Por isso, as expressões prova inequívoca significam, apenas, que o juiz, para conceder a tutela, deverá estar firmemente convencido da verossimilhança da situação jurídica apresentada pelo autor e, bem assim, da jurisdição da solução pleiteada (ALVIM, 1996, 111).

Não por um acaso, Armelin (2011) bem aponta – ainda que escrevendo ao tempo do Código de Processo Civil de 1973, que a decisão que antecipa a tutela prescinde da certeza e da segurança que, de ordinário, resultariam de uma tutela advinda em cognição plena e exauriente (ARMELIN, 2011, p. 44).

 

4          O REGIME DA TUTELA ANTECIPADA ANTECEDENTE E A TÉCNICA DE ESTABILIZAÇÃO DA DECISÃO JUDICIAL PROVISÓRIA

 

A partir do presente capítulo, em que pese a técnica do requerimento de tutela provisória antecedente se prestar a ambas as tutelas de urgência, cuidar-se-á, apenas, da tutela antecipada requerida de forma antecedente eis que, enquanto à cautelar é necessariamente, temporária, aquela é a que se presta à novidade da estabilização.

Apontada como uma das grandes novidades vinda no Código de Processo Civil de 2015 (Lei nº 13.105/15), a possibilidade de se requerer antecipação dos efeitos da tutela de urgência sob o rito da técnica de pedido antecedente, prevista nos arts. 303 e 304, mostra-se enquanto reconhecimento de que “há situações no plano empírico em que a própria concessão da antecipação de tutela poderia satisfazer as partes [e possibilita] assim, que haja a estabilização dos efeitos da tutela antecipada requerida em caráter antecedente” (ARRUDA ALVIM, 2017, p. 184).

Essa estabilização dos efeitos da tutela provisória concedida segundo a regra da postulação em caráter antecedente consiste em

Reconhecer a viabilidade de que essa tutela provisória antecipada seja capaz de solucionar a crise de direito material no plano empírico. Em outras palavras, reconhece-se que a tutela que disciplinou provisoriamente a relação de direito material está apta a satisfazer os interesses práticos das partes envolvidas, diminuindo ou eliminando a necessidade de discussão do mérito. Satisfeitas as partes com os efeitos práticos sumariamente obtidos, pode ser que não tenham mais interesse em discutir a questão de fundo ou pretensão “principal”, já que, por assim dizer, teriam resolvido (no plano dos fatos) os seus problemas (ARRUDA ALVIM, 2017, p. 200).

Essa técnica legislativa que implica numa sumarização não só da cognição, mas também do procedimento, é constantemente apontada como resultado da influência em modelos vigentes no direito alienígena, mais especificamente o direito francês com os chamados référés, o direito italiano com seus provvedimenti d’urgenza e o direito português com seu próprio sistema de inversão do contencioso.

Ao explicar em que consiste o référé do direito francês, onde, por meio da atuação de juízos distintos (um para o référé e outro para apreciar o mérito) busca-se a celeridade na prestação jurisdicional, mas que diferente do direito brasileiro, prescinde da urgência e não admite concessão antes da oitiva do réu, Arruda Alvim (2017), afirma que

A previsão do direito francês autoriza ao juiz da référé, que não é o juiz competente para analisar o mérito, a ordenar medidas necessárias para solucionar o problema apresentado pelas partes, sem que para isso exerça larga cognição acerca da relação jurídica, satisfazendo-as no plano empírico, não havendo aptidão de tal decisão a se tornar intangível, sendo seus efeitos, bem por isso, provisórios, podendo qualquer das partes demandar a outra para que seja, então, resolvido o mérito (ARRUDA ALVIM, 2017, p. 486).

Já na Itália, tem-se que aquilo que, aqui no Brasil, trata-se como tutela satisfativa, lá atribuem natureza cautelar, de qualquer forma, contudo, orientadas por um ideal de necessária demonstração de urgência.

Por sua vez, o direito português tendo lançado novo diploma processual em 2013, inovou ao a chamada “inversão do contencioso” que, nos termos do art. 369º do código de processo civil português, “permite, em linhas gerais, eximir o requerente da providência cautelar de propor a ação que visa discutir o mérito, propriamente dito, caso sejam observados alguns requisitos”. Dessa forma, tem-se que a inversão do contencioso é própria da opção do requerido que será quem decidirá se o processo prosseguirá até a tutela final.

Em que pese que, por opção do Código, serem três as tutelas provisórias (de urgência antecipada, de urgência cautelar e satisfativa), também por opção do legislador é que a técnica da estabilização alcança apenas a tutela antecipada que é requerida pelo rito antecedente.

Em um primeiro momento, cumpre se antecipar que a propositura da ação sob essa técnica que consiste em se requerer tão-somente a antecipação dos efeitos da tutela para, no prazo de 15 dias a contar da sua concessão, então apresentar a complementação da petição de modo a apresentar o pedido de tutela definitiva – inclusive sob consequência de, em não fazendo, considerar-se o feito extinto sem julgamento do mérito por desistência, com a retomada do status quo ante à decisão – implicará na prevenção do juízo a que se destinar e cuja competência deve ser a mesma para apreciar o pedido principal.

Nesse ponto, leciona Arruda Alvim (2017) que

O aditamento não é pressuposto para que haja estabilização, mas sim para o processo se mantenha em curso, a fim de que ao réu caiba optar por interpor ou não recurso contra a decisão antecipatória de tutela. Mantido o estado de litispendência (pelo aditamento da petição inicial, poderá haver a aplicação do art. 304, caput, do CPC/2015, caso não sobrevenha recurso por parte do réu (ARRUDA ALVIM, 2017, p. 218).

Logo, não é correto se considerar que o aditamento da inicial, antes um dever para que o autor mantenha o processo em curso, seria um indicativo de que este não tem interesse na estabilização dos efeitos da tutela requerida, tanto mais porque terá feito a opção pode ele desde a petição inicial em que requereu, apenas, a tutela antecipada em questão.

Aplica-se a essa “jurisdição de urgência” (expressão de Araken de Assis) o princípio da inércia previsto no art. 2º do Código. Dessa forma, como é corrente no sistema, mesmo a tutela de urgência iniciar-se-á por petição escrita que não só preencha os requisitos do art. 319 e faça contar sua pretensão de ver a satisfação antecipada dos efeitos práticos do reconhecimento do direito que se objetiva assegurar (tutelar) a fim de não esvaziar de efetividade e utilidade eventual decisão definitiva, mas também fazer constar expressamente sua intenção de se bastar na concessão dessa antecipação, desnecessário que julgue, ao seu arbítrio, que a decisão alcance o status de imutável e indiscutível por meio da coisa julgada.

Assim, bem se observa que o Código estabeleceu para o cabimento da técnica ora estudada, além das condições supra (pedido expresso de tutela provisória de urgência satisfativa requerida em caráter antecedente), também que a concessão tenha sido proferida liminarmente e que o réu, uma vez tome ciência, opte por não se impor à decisão, seja com recurso ao juízo ad quem (via de regra, agravo de instrumento se concedida em 1º grau e agravo interno se concedida em 2º grau de jurisdição), seja com petição que ateste sua irresignação, apresentada, mesmo, ao juízo que proferiu a decisão antecipatória. Mas apenas em relação à tutela antecipada (satisfativa) antecedente.

Questão relevante que surge é aquela apontada por Sica (2016) em relação à possibilidade ou não de estabilização da tutela antecipada antecedente concedida parcialmente. Em seu trabalho, Sica (2016) pondera se haveria proibição (ou mesmo razão) que se justificasse recusar a estabilização do caso de o autor, recebendo apenas parte do que pretendia – em seu exemplo, tendo ganhado R$ 8 após ter requerido R$ 10 –, bastar-se nessa concessão ou mesmo que, tendo havido insurgência apenas parcial por parte do réu, ter-se a redução do objeto litigioso de modo que venha a ser submetido ao julgamento de que virá decisão em cognição exauriente (SICA, 2016, p. 1437). E prossegue nas suas considerações ponderando que

Há, decerto, o risco de a decisão final ser desfavorável ao autor, e se produzir certa contradição com a decisão antecipatória estabilizada. Mas trata-se de mera contradição lógica (não jurídica) que é assumida como natural pelo sistema todas as vezes em que não há o simultaneusprocessus. Também haveria de se cogitar – como faz TALAMINI – na hipótese análoga em que o recurso for parcial, o que provocará a estabilização nos limites da matéria não atacada pelo recurso. 

O problema se agrava em se tratando de acolhimento do pedido subsidiário de tutela antecipada. Pense-se no exemplo do autor que, alegando-se proprietário de um imóvel, pede, em caráter principal, a imissão provisória na posse e, em caráter subsidiário, que o réu seja obrigado a reconstruir parte do imóvel que foi demolida. Se o juiz deferir a segunda providência e o réu não recorrer, persiste o interesse do autor no prosseguimento do processo para análise do pedido principal em sede de cognição exauriente, cuja improcedência – ao reconhecer que o autor não tem direito sobre o bem – prejudicará a antecipação do pedido subsidiário de tutela. Nesse caso, entendo que a estabilização não poderia ser aplicada (SICA, 2016, p. 1437).

Em sentido oposto, entendendo que não haveria sentido se falar em estabilização em caso de tutela antecipada antecedente parcial, Neves (2019) afirma que

Embora exista doutrina que defende a estabilização da tutela antecipada nesse caso, não parece ser a melhor solução do tema.

Concordo com a doutrina que aponta que nesse caso não teria sentido a estabilização da tutela antecipada por dois motivos: (a) seria gerada indesejável confusão procedimental com parcela do pedido estabilizado em razão da concessão parcial de tutela antecipada e outra parcela a ser decidida mediante cognição exauriente, e (b) por uma questão de economia processual, tendo seguimento o processo em razão da parcela de mérito não concedida em sede de tutela antecipada, não tem sentido deixar de decidir ao final, com cognição exauriente e juízo de certeza, a parcela do mérito que já foi objeto da tutela antecipada (NEVES, 2019, p. 525-526).

Melhor razão assiste a Neves (2019) e, principalmente, ao argumento de que um dos objetivos que podem ser bem visualizados em se tratando da adoção da técnica de tutela provisória, junto à noção de segurança jurídica é, justamente a economia processual.

Em todo caso – e não poderia ser de outro modo –, há mérito na medida de urgência requerida por meio da técnica de tutela antecedente, qual seja, “a própria tutela final. Por definição, essas medidas antecipam o proveito, a utilidade, a vantagem, o benefício, o bem da vida ou o efeito jurídico da tutela final” (ASSIS, 2015, p. 565).

Ainda compondo o objeto da tutela antecipada antecedente, tem-se que sua causa de pedir, como já afirmado retro, restará demonstrada quando se afirma que o demandante é titular de certo direito exposto a perigo de dano iminente e irreparável ou que a demora – ínsita ao processo – sujeita-o ao risco de futura utilidade da decisão.

Em tendo seu próprio mérito e sendo sujeitada ao princípio da inércia da jurisdição (devidamente delimitado pela extensão da provocação da prestação jurisdicional), é correto, portanto, que se veja, como aponta Sica (2016), que “as técnicas previstas nos arts. 303 e 304 constituem ‘benefícios’ ao autor (como deixa claro o §5º do art. 303) e jamais poderiam ser a ele aplicados contra a sua vontade” (SICA, 2016, p. 1437). E prossegue explicando que

O jurisdicionado tem o direito de se sujeitar aos riscos e custos inerentes ao prosseguimento do processo para exercício de cognição exauriente, face ao legítimo interesse em obter uma tutela final apta a formar coisa julgada material. Não se pode obrigar o autor a se contentar com uma tutela provisória “estabilizada” apta a ser desafiada por demanda contrária movida pelo réu do processo original nos termos do art. 304, §5º. Interpretação diversa representaria violação frontal à garantia da inafastabilidade da jurisdição, insculpida no art. 5º, XXXV, da Constituição Federal (SICA, 2016, p. 1437).

Não se ignore que em sendo aplicada em benefício do autor e estando a técnica da estabilização sujeita aos limites da sua postulação expressa, ela será inaplicável uma vez que o autor informe sua intenção de obter a tutela exauriente e definitiva de mérito. Afirmar que, por outro lado, é ônus do autor informar se se basta na mera estabilização é, ainda, conforme o princípio da cooperação: nesse caso, haverá a “inversão do contraditório” e caberá ao réu considerar a conveniência de recorrer ou peticionar no sentido de impedir essa estabilização. Cumpre, aqui, se afirmar com Arruda Alvim (2017), que tendo o autor, de início, optado pela estabilização da tutela antecipada antecedente eventualmente deferida, ele “só poderá mudar de opção até o momento em que o réu for citado, triangularizando a relação jurídica processual, e intimado da decisão antecipatória de tutela, momento em que terá início o seu prazo recursal” (ARRUDA ALVIM, 2017, p. 215).

Ponto a respeito do qual o legislador parece ter feito questão de não deixar margem para polêmica diz respeito a se a estabilização a que aludem os arts. 303 e 304 corresponderia ao fenômeno da coisa julgada. O §6º do art. 304 é claro na sua negativa. A coisa julgada resta reservada para as decisões proferidas mediante cognição exauriente. E andou bem o código vez que não se saberia justificar como se dirá imutável indiscutível – próprios da coisa julgada – uma decisão fundada em cognição sumária.

Em todo caso, Neves (2019) instiga a análise do alcance dos efeitos da estabilização, em especial quando em confronto com a coisa julgada, ao argumentar que, ao se ver

A coisa julgada material é resultante de uma opção de política legislativa, não vejo como impossível que se preveja expressamente decisão fundada em cognição sumária capaz de produzir coisa julgada material. Não se parecera lógico, mas ilegal não será (NEVES, 2019). 

Em que pese não se falar em coisa julgada em razão deste instituto ficar restrito às decisões definitivas proferidas em sede de cognição exauriente (além de a coisa julgada ser fenômeno que se opera sobre o conteúdo da decisão, ao passo que a estabilização recai sobre os efeitos da decisão), sabe-se que requerida e concedida a tutela antecipada antecedente na forma dos arts. 303 e 304/CPC e vindo o réu a optar por não se insurgir contra a decisão, o processo será extinto sem resolução do mérito e a decisão que antecipou os efeitos práticos da tutela permanecerá produzindo os seus efeitos. Mas, uma vez que isso ocorra, qualquer das partes terá o prazo decadencial de 2 anos (art. 304, §2º/CPC) para ingressar com um novo processo que servirá para que busque rever, reformar ou invalidar a tutela antecipada.

Em outras palavras, o código autoriza que a parte – mesmo a parte autora – que outrora havia se disposto a se bastar com a estabilização dos efeitos práticos da tutela pretendida e que abria mão do direito de prosseguir com a discussão do processo até a resolução do mérito, arrependa-se e suscite novamente o prolongamento da discussão que já fazia se sentir, por seus efeitos em razão de sua opção.

Portanto, caberá a parte que tenha interesse na retomada da discussão, que peça o desarquivamento dos autos – se foram físicos – a fim de fazer as cópias necessárias à instrução do novo processo e, com isso, propor a ação em questão que será distribuída perante o juízo que concedeu a tutela estabilizada (competência funcional e, consequentemente, pautada em critério absoluto – art. 304, §£º). Não fazendo isso no prazo de dois anos desse arquivamento, contudo, essa concessão de tutela antecipada, em que pese estar expresso que não se presta à coisa julgada (opção de política legislativa), tornar-se-á imutável e indiscutível bastante assemelhado à coisa julgada.

Por derradeiro, uma vez que a estabilização da tutela antecipada na hipótese apresentada não faz coisa julgada, não será possível se defender que, superado o prazo de dois anos para sua revisão, reforma ou invalidação e, mesmo se tratando de decisão de mérito – e a decisão que antecipa os efeitos da tutela definitiva pretendida é de mérito –, se terá uma decisão de mérito indiscutível e imutável que, por sua vez, será insuscetível de ser impugnada pela ação rescisória, sendo que, em tempo, em se tratando de ação rescisória eventualmente interposta em face de decisão de mérito transitada em julgado, não há que se falar na possibilidade de estabilização de eventual antecipação de tutela antecipada requerida em caráter antecedente, em razão da própria natureza constitutiva negativa desta ação.

 

§ CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

O fato de o sistema consagrar valores constitucionais de igual hierarquia e incidência sobre as relações processuais, levou os estudiosos da ciência processual a procurarem meios e institutos aptos à harmonização desses princípios em busca de bem tutelar os interesses postos em juízo.

Com isso, buscaram o escopo maior de se privilegiar a ideia de acesso a uma prestação jurisdicional justa, democrática e, portanto, eficaz e eficiente, capaz de bem tutelar a pretensão dos litigantes sem, contudo, descuidar do dever dessa prestação apresentar segurança jurídica sem uma demora desproporcional e irrazoável.

Consequência dessa busca é a adoção e desenvolvimento também, na seara legislativa, de técnicas processuais que garantam a proteção dos direitos subjetivos das partes e mantenham, com isso, a utilidade da prestação jurisdicional em contraste com o decurso de tempo e a degeneração das expectativas, necessidades, demandas e relações.

Com o desenvolvimento dessas técnicas de antecipação, passou-se a se contar com uma técnica decisória fundada em juízo de probabilidade e, portanto, provisório e cujo escopo é o de conferir a segurança para futura satisfação do direito ou mesmo a satisfação para futura discussão do direito.

É dessa realidade de um sistema que reconhece a pertinência das tutelas antecipadas e das tutelas cautelares que o Código de Processo Civil de 2015 elabora um Livro próprio a fim de regular essa técnica processual fundada que pode ser tanto na urgência, como na evidência.

Em se tratando das tutelas de urgência, o mesmo livro do código prevê duas técnicas diferentes de requerimento: requerimento incidente e requerimento antecedente sendo que a este fora conferida a oportunidade de as partes se bastarem apenas na sua concessão, mantendo-se estáveis os seus efeitos de uma maneira tal que, a contar de 2 anos da extinção do feito sem manifestação de quaisquer das partes, alcance uma estabilização plena.

No entanto, essa estabilização não deverá ser confundida com o fenômeno da Coisa Julgada que depende da decisão de mérito ter sido proferida em sede de cognição exauriente, ao passo que a estabilização se opera sobre decisão proferida em juízo de probabilidade, proferido em sede de cognição sumária e que não julga o mérito, antes, tão-somente antecipa os efeitos práticos que seriam obtidos com a procedência e efetivação da tutela final.

 

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Informações adicionais e declarações dos autores

 

Declaração de conflito de interesses (conflict of interest declaration): os autores confirmam que não há conflitos de interesse na realização das pesquisas expostas e na redação deste artigo.

 

Declaração de autoria e especificação das contribuições (declaration of authorship): todas e somente as pessoas que atendem os requisitos de autoria deste artigo estão listadas como autores; todos os coautores se responsabilizam integralmente por este trabalho em sua totalidade.

 

Declaração de ineditismo e originalidade (declaration of originality): os autores asseguram que o texto aqui publicado não foi divulgado anteriormente em outro meio e que futura republicação somente se realizará com a indicação expressa da referência desta publicação original; também atestam que não há plágio de terceiros ou autoplágio.

 

Dados do processo editorial

· Recebido em: 19/10/2019

· Controle preliminar e verificação de plágio: 19/10/2019

· Avaliação 1:  07/11/2019

· Avaliação 2: 11/12/2019

· Decisão editorial preliminar: 12/12/2019

· Retorno rodada de correções: 23/12/2019

· Decisão editorial final: 23/12/2019

· Publicação: 24/12/2019

Equipe editorial envolvida

·  Editor-Chefe: FQP

·  Assistente-Editorial: MR

·  Revisores: 2

COMO CITAR ESTE ARTIGO

PENNA, Bernardo; GAMA, William Ricardo. As decisões de tutela antecipada enquanto técnica processual apta à harmonização de valores constitucionais processuais: o acesso à justiça e a técnica de estabilização da decisão antecipatória. Revista de Direito da Faculdade Guanambi, Guanambi, v. 6, n. 02, e268, jul./dez. 2019. doi: https://doi.org/10.29293/rdfg.v6i02.268. Disponível em: http://revistas.faculdadeguanambi.edu.br/index.php/Revistadedireito/article/view/268



* Editor Responsável: Flávio Quinaud Pedron. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4259444603254002. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4804-2886.

[1] Doutor em Direito pela FADISP. Mestre em Direito pela UNINCOR. Graduado em Direito pela Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais Vianna Júnior Professor Adjunto do Departamento de Direito da Universidade Federal de Rondônia (UNIR), Campus Cacoal. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5031454219677181.   ORCID: http://orcid.org/0000-0002-8323-1781.

[2] Mestrando em Direito no Programa de Pós-gradução Stricto Sensu da Faculdade Autônoma de Direito (FADISP). Professor da Universidade Federal de Rondônia (UNIR). Lattes: http://lattes.cnpq.br/8923719331950691. ORCID: http://orcid.org/0000-0001-7060-0050.

[3] Art. 300. A tutela de urgência será concedida quando houver elementos que evidenciem a probabilidade do direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo. (...) § 3º A tutela de urgência de natureza antecipada não será concedida quando houver perigo de irreversibilidade dos efeitos da decisão.

[4]Art. 300. A tutela de urgência será concedida quando houver elementos que evidenciem a probabilidade do direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo.

[5] Art. 311. A tutela da evidência será concedida, independentemente da demonstração de perigo de dano ou de risco ao resultado útil do processo, quando: I - ficar caracterizado o abuso do direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório da parte; II - as alegações de fato puderem ser comprovadas apenas documentalmente e houver tese firmada em julgamento de casos repetitivos ou em súmula vinculante; III - se tratar de pedido reipersecutório fundado em prova documental adequada do contrato de depósito, caso em que será decretada a ordem de entrega do objeto custodiado, sob cominação de multa; IV - a petição inicial for instruída com prova documental suficiente dos fatos constitutivos do direito do autor, a que o réu não oponha prova capaz de gerar dúvida razoável. Parágrafo único. Nas hipóteses dos incisos II e III, o juiz poderá decidir liminarmente.