Teoria e prática no ensino jurídico: diálogo entre decolonidade do saber e pedagogia da libertação de Paulo Freire e Bell Hooks

Theory and practice in legal education: dialogue between the decolonization of knowledge and the pedagogy of the liberation of Paulo Freire and Bell Hooks

 

Flávia Souza Máximo Pereira[1]

Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) – Ouro Preto/MG

[email protected]

 

Flávia Coelho Augusto Silva[2]

Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) – Ouro Preto/MG

[email protected]

 

 

RESUMO: O presente artigo visa investigar, mediante a vertente jurídico-sociológica, se a dissociação entre a teoria e a prática no curso de Direito apresenta-se como decorrência da colonialidade do saber, conceito central nos estudos decoloniais. Para tanto, pretende-se apresentar a pedagogia da educação como prática da liberdade engendrada pelo educador e jurista brasileiro Paulo Freire, que é também trabalhada sob a ótica interseccional pela intelectual negra Bell Hooks, efetivando-se o método de decolonialidade do saber na contemporaneidade, capaz de mitigar o tão discutido hiato entre teoria e prática no ensino jurídico. O cerne desta proposta pedagógica é romper com a dicotomia teoria-prática, mediante um saber-práxis que se construa a partir da realidade vivenciada pelo aluno ou aluna, que passa a se compreender como ser histórico social capaz de entender criticamente a realidade na qual está inserido, para, assim, transformá-la.

Palavras-chave: Decolonidade do saber. Ensino jurídico. Pedagogia da libertação. Teoria e prático do Direito.

ABSTRACT: The present article aims to investigate, through the juridical-sociological aspect, if the dissociation between theory and practice in the course of Law presents itself as a result of the coloniality of knowledge, a central concept in decolonial studies. For this, it is intended to present the pedagogy of education as a practice of freedom engendered by the educator and Brazilian jurist Paulo Freire, who is also worked from the intersectional point of view by the black intellectual Bell Hooks, putting into effect the method of decoloniality of knowledge in the contemporary, capable of mitigating the much-discussed gap between theory and practice in legal education. The core of this pedagogical proposal is to break with the theory-practice dichotomy, through a knowledge-praxis that is constructed from the reality experienced by the student or student, that begins to be understood as a social historical being capable of critically understanding the reality in which inserted, in order to transform it.

Keywords: Decolonization of knowledge. Legal education. Pedagogy of liberation. Theory and practice of Law.

 

SUMÁRIO: INTRODUÇÃO; 1 A COLONIALIDADE DO SABER COMO PROMOTORA DA DICOTOMIA ENTRE TEORIA E PRÁTICA; 2 A PEDAGOGIA DE PAULO FREIRE E BELL HOOKS COMO PROPOSTAS DE DECOLONIALIDADE DO SABER; 3 EDUCAÇÃO COMO PRÁTICA DA LIBERDADE: UMA FORMA DE RECONSTRUIR O CONTINUUM TEORIA-PRÁTICA NO ENSINO JURÍDICO; CONSIDERAÇÕES FINAIS;  REFERÊNCIAS.

 

SUMMARY: INTRODUCTION; 1 THE COLONIALITY OF KNOWLEDGE AS A PROMOTER OF THE DICOTOMY BETWEEN THEORY AND PRACTICE; 2 THE PEDAGOGY OF PAULO FREIRE AND BELL HOOKS AS PROPOSALS FOR DECOLONIALITY OF KNOWLEDGE; 3 EDUCATION AS A PRACTICE OF FREEDOM: A WAY TO REBUILD THE CONTINUUM THEORY-PRACTICE IN LEGAL TEACHING; FINAL CONSIDERATIONS; REFERENCES.

 

§ INTRODUÇÃO

 

"É fundamental diminuir a distância entre o que se diz e o que se faz, de tal forma que, num dado momento, a tua fala seja a tua prática.”

Paulo Freire

 

"A posse de um termo não dá existência a um processo ou prática; do mesmo modo, uma pessoa pode praticar a teorização sem jamais conhecer/possuir o termo"

Bell Hooks

 

 

Não raro os discentes e docentes dos cursos de Direito se queixam do hiato existente entre teoria e prática no ensino jurídico. Neste contexto de senso comum jurídico, teoria e prática são concebidas como dicotomias herméticas e opostas, o que faz com que o Direito perca todo o potencial transformador que poderia ter.

Ocorre, contudo, que a problematização da dissociação entre teoria e prática se dá em grande medida a partir de uma concepção tecnicista e eurocêntrica do Direito. Isto é, tal discussão advém da percepção, por exemplo, de o aluno ou aluna aprender sobre as teorias europeias dos negócios jurídicos e não sobre como fazer sua análise propriamente dita – em termos de (in)aplicabilidade - no contexto social brasileiro.

O ensino jurídico no Brasil, desde as primeiras escolas, pautou-se na lógica do positivismo jurídico europeu, do ensino da dogmática, na aprendizagem do Direito como norma exclusivamente imposta pelo Estado. A norma Estatal era considerada neutra e exata, própria da ciência moderna pautada em um paradigma de conhecimento científico racional-eurocêntrico[3] (SANTOS, 1988, p. 48).

Somente a partir da segunda metade do século XX, o Direito começa a ser pensado a partir de uma perspectiva sociológica não necessariamente positivista. Não obstante, permanece eminentemente eurocêntrico, já que não problematiza a lógica do saber hegemônico, isto é, a imposição do saber europeu como narrativa universal do sujeito de direitos. 

Diante de tal contexto, a proposta do presente artigo é indagar se a dissociação entre a teoria e a prática no curso de Direito apresenta-se, na verdade, como uma decorrência própria da colonialidade do saber, conceito central nos estudos decoloniais. Para tanto, metodologicamente, será utilizada a vertente jurídico-sociológica, que propõe compreender o fenômeno jurídico de forma mais ampla, ao analisar o Direito como variável dependente da sociedade e preocupando-se com as relações contraditórias que a Ciência do Direito estabelece com os demais campos: sociocultural, político e antropológico[4].

Nesse sentido, visa-se apresentar a pedagogia da educação como prática da liberdade engendrada pelo educador e jurista brasileiro Paulo Freire, que é também trabalhada sob a ótica interseccional[5] pela intelectual negra Bell Hooks, efetivando-se o método de decolonialidade do saber na contemporaneidade, capaz de mitigar o tão discutido hiato entre teoria e prática no ensino jurídico.

O cerne desta proposta pedagógica é romper com a dicotomia teoria-prática, mediante um saber-práxis que se construa a partir da realidade vivenciada pelo aluno ou aluna, que passa a se compreender, na medida em que desenvolve uma curiosidade epistemológica, como ser histórico social capaz de entender criticamente a realidade na qual está inserido, para, assim, transformá-la.

 

1          A colonialidade do saber como promotora da dicotomia entre teoria e prática

 

A noção de colonialidade do saber é crucial no contexto dos estudos decoloniais. Tais estudos consistem em um movimento epistêmico, prático e político, que elucida eixos de dominação estruturados na modernidade, frutos do processo de colonização, mas que ainda permanecem nas relações sociais contemporâneas. Nas palavras de Boaventura de Sousa Santos:

 

Entendo por pós-colonialismo[6] um conjunto de correntes teóricas e analíticas, com forte implantação nos estudos culturais, mas hoje presente em todas as ciências sociais, que têm em comum darem primazia teórica e política às relações desiguais entre o Norte e o Sul na explicação ou na compreensão de mundo contemporâneo (SANTOS, 2008, p.28).

 

A abordagem decolonial é permeada por correntes distintas e variadas, tendo como ponto comum o esforço metodológico de desconstrução dos essencialismos, na busca da consolidação de uma referência epistemológica crítica às concepções dominantes de modernidade, que estão intimamente relacionadas à experiência colonial (COSTA, 2006, p. 117). Nesse sentido, entender o saber como colonial significa compreender que mesmo após a independência das colônias, restou um conhecimento colonizado, que coloca o pensamento europeu como referência, como central, e os demais como inferiores, subalternos. Conforme explica Sérgio Costa:

 

A abordagem pós-colonial constrói, sobre a evidência – diga-se, trivializada pelos debates entre estruturalistas e pós-estruturalistas – de que toda enunciação vem de algum lugar, sua crítica ao processo de produção do conhecimento científico que, ao privilegiar modelos e conteúdos próprios ao que se definiu como a cultura nacional nos países europeus, reproduziria, em outros termos, a lógica da relação colonial. Tanto as experiências de minorias sociais como os processos de transformação ocorridos nas sociedades "não ocidentais" continuariam sendo tratados a partir de suas relações de funcionalidade, semelhança ou divergência com o que se denominou centro (COSTA, 2006, p.117).

 

Entre os conceitos centrais utilizados nos estudos decoloniais encontra-se a colonialidade do poder, elaborado pelo sociólogo peruano Aníbal Quijano (2005). Conforme Quijano, a modernidade foi caracterizada por um padrão de poder mundial que dominou e disputou o controle das diversas formas de existência social, formando um complexo estrutural, cujo caráter é sempre histórico e específico (QUIJANO, 2005, p. 4). Sob essa perspectiva, o fenômeno do poder na modernidade foi caracterizado como um tipo de relação social constituída pela co-presença permanente de três elementos – dominação, exploração e conflito – que afetam âmbitos de existência social, entre os quais podemos citar o trabalho; o espaço de autoridade coletiva; o sexo, com seus recursos e produtos; e os modos de produção de conhecimento, capazes de moldar subjetividades (QUIJANO, 2005, p. 4).

O padrão de poder moderno impôs, como modo de controle do trabalho, o capitalismo, aliado à codificação das diferenças entre conquistadores e conquistados mediante a ideia de raça[7], ou seja, uma suposta característica biológica que situava uns em posição natural de inferioridade em relação a outros; o Estado-nação nasce como forma central de controle da autoridade coletiva; a instituição da família burguesa predomina no controle do sexo; e, por fim, o paradigma racional-eurocêntrico, como forma hegemônica de produção de conhecimento (QUIJANO, 2005, p. 4). Sobre este último aspecto, Quijano explica o que consiste a colonialidade do saber efetuada pelo eurocentrismo:


(...) Não se trata, em conseqüência, de uma categoria que implica toda a história cognoscitiva em toda a Europa, nem na Europa Ocidental em particular. Em outras palavras, não se refere a todos os modos de conhecer de todos os europeus e em todas as épocas, mas a uma específica racionalidade ou perspectiva de conhecimento que se torna mundialmente hegemônica colonizando e sobrepondo-se a todas as demais, prévias ou diferentes, e a seus respectivos saberes concretos, tanto na Europa como no resto do mundo (QUIJANO, 2005, p. 126).

 

Assim, como salienta Grosfoguel (2007, p. 64), o eurocentrismo trata de um sujeito epistêmico que não tem sexualidade, gênero, etnia, raça, classe, espiritualidade, língua, nem localização epistêmica em nenhuma relação de poder, e produz a verdade em um monólogo interior consigo mesmo, sem relação com ninguém fora de si. Portanto, trata-se de um conhecimento surdo e sem rosto que é assumido pelas ciências humanas a partir do século XIX como a epistemologia da neutralidade axiológica e da objetividade empírica do sujeito que produz conhecimento científico (GROSFOGUEL, 2007, p. 65).

Mignolo (2010, p. 15) ressalta que a decolonialidade do saber, como um método de desobediência epistêmica,abriu possibilidades para reconstrução e restituição de histórias silenciadas, de subjetividades, linguagens e conhecimentos reprimidos por meio da ideia da superioridade racional totalizante europeia. Conforme Mignolo (2010, p. 15), a decolonialidade do saber propõe um projeto de “desprendimento” do conhecimento eurocêntrico na esfera social, assim como no âmbito acadêmico, que é uma dimensão do social (MIGNOLO, 2010, p. 15). 

Nesse sentido, quando se reflete sobre as referências teóricas no ensino jurídico pátrio, pensando-as a partir de uma perspectiva de decolonialidade do saber, passa-se a questionar criticamente até que ponto o conhecimento construído e pensado a partir de um ponto de vista eurocêntrico – tendo como sujeito universal de direitos o homem burguês, cisgênero, branco, heterossexual, sem deficiência – se coaduna com o contexto sócio-histórico brasileiro. 

Na medida em que se questiona essa aplicabilidade é que se pode entender a colonialidade do saber como geradora de uma dissociação mais profunda entre teoria e prática, pois se o conhecimento é pensado a partir de outra realidade e de um ponto de vista externo, segundo critérios que não consideram contexto e história particular daquele povo, não há apropriação e reconhecimento desse saber pelos sujeitos capazes de transformar a própria realidade.    

Portanto, é a partir da compreensão da existência de um saber jurídico colonizado que surge a proposta de decolonialidade do saber. Decolonizar significa transcender essa lógica hegemônica da modernidade que coloca a Europa como centro do sistema-mundo, como narrativa unívoca do pensar.

A retórica distorcida que naturaliza a modernidade eurocêntrica como um processo universal e homogêneo, ocultando a reprodução constante da colonialidade do saber no Direito no Brasil, precisa ser extravasada, o que demanda ser epistemicamente desobediente, no intuito de denunciar uma perspectiva acadêmica pretensamente neutra e científica.

Para tanto, propõe-se o diálogo entre a pedagogia da educação como prática da liberdade elaborada por Paulo Freire e a discussão pedagógica sócio-político-racial promovida por Bell Hooks, efetivando-se o método de decolonialidade do saber na contemporaneidade, capaz de mitigar o tão discutido hiato entre teoria e prática no ensino jurídico.

 

2          A pedagogia de Paulo Freire e bell hooks como propostas de decolonialidade do saber

 

Paulo Freire, na qualidade de educador e jurista, defende que o papel da escola é ser o ambiente capaz de apoiar o aluno a “ler o mundo” para transformá-lo. Em “Pedagogia do Oprimido” (1970), sua obra mais conhecida, o autor propõe formas de desconstruir o mito da estrutura opressora, assim como o fazem os autores decoloniais em face do eurocentrismo.

Por ambos introduzirem estratégicas pedagógicas de resistência, muitas pesquisas já se propõem a estudar a relação entre as teorias de Paulo Freire e as correntes decoloniais. Penna aponta as noções de raciocínio dialético, a ideia de “colonização cognitiva” e o argumento de que a colonização se fundamenta em um mito - mito da estrutura opressora ou mito do eurocentrismo - como pontos convergentes nas duas matrizes (PENNA, 2014). Na mesma direção, Lima e Pernambuco (2018, p. 10) também descrevem eixos de conexão entre os estudos decoloniais e a pedagogia da libertação de Paulo Freire:

 

No rastro desse raciocínio, a educaçãocomoprática da liberdadedefendida por Paulo Freireemseulivro Pedagogia do Oprimido, assimcomoemseustrabalhosanteriores, significa pronunciar criticamente o mundo e modificá-lo por meiodoengajamentoativoem face de problemáticas de ordem social, cultural, política, econômicaeepistêmica, tendo em vista que, com a palavra, o ser humano se fazhumano e, aodizê-la, assume conscientemente sua condição de humanidade, desconstruindosituações de subalternidade, de invisibilidade e de silenciamento. Resideaqui, portanto, a razão pela qual a pedagogia do oprimidoétambémuma pedagogia do subalterno, pois permiteaosoprimidos e subalternizados o direito à voz, à escuta e à visibilidadecomoelementosnecessários à emancipaçãoindividual e coletiva.

 

Sob este aspecto, visa-se estreitar o diálogo entre o pensamento decolonial e a pedagogia da libertação, para a construção de um saber jurídico que promova uma educação plural baseada em vivências, para avançar para uma prática que liberte sujeitos e sujeitas subalternas das opressões provenientes da colonialidade. Assim, para descentralizar a teoria da pedagogia jurídica, apresenta-se como marco teórico a “Educação como prática da Liberdade” de Freire, bem como a obra de Bell Hooks “Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade”, inspirada na obra de Freire, como metodologia de ensino capaz de questionar o hiato entre a teoria e a prática no ensino jurídico, efetivando a decolonialidade do saber no Direito.

Paulo Freire contextualiza a sociedade brasileira ao redigir “Esclarecimentos”, escritos no ano de 1965, no qual menciona uma possibilidade de desprendimento epistêmico construído na materialidade-histórica:

 

Este esforço não nasceu, por isso mesmo, do acaso. Foi uma tentativa de resposta aos desafios contidos nesta passagem que fazia a sociedade. Desde logo, qualquer busca de resposta a estes desafios implicaria, necessariamente, numa opção. Opção por esse ontem, que significava uma sociedade sem povo, comandada por uma “elite” superposta a seu mundo, alienada, em que o homem simples, minimizado e sem consciência dessa minimização, era mais “coisa” que homem mesmo, ou opção pelo Amanhã. Por uma nova sociedade, que, sendo sujeito de si mesma, tivesse no homem e no povo sujeitos de sua História. Opção por uma sociedade parcialmente independente ou opção por uma sociedade que se “descolonizasse” cada vez mais. (FREIRE, 1965, p. 35)

 

Como destacam Lima e Pernambuco (2018, p. 11), Paulo Freire aborda em seus estudos não somente a necessidade do protagonismo das classes dominadas no projeto de mudança social, mas também a centralidade participativa-cognitiva dos oprimidos na construção do conhecimento. Sob esta perspectiva, a pedagogia da libertação de Freire dialoga com as teorias de decolonialidade do saber, ao enfatizar uma narrativa da educação como um projeto político de resistência construído na materialidade da realidade social. Naspalavras de Freire (1965, p. 99):

 

Esta prática implica, por isto mesmo, que o acercamento às massas populares se faça, não para levar-lhes uma mensagem salvadora, em forma de conteúdo a ser depositado, mas, para, em diálogo com elas, conhecer, não só a objetividade em que estão, mas a consciência que tenham desta objetividade; os vários níveis de percepção de si mesmos e do mundo em que e com que estão.

 

Para Lima e Pernambuco (2018, p. 12), apesar da pedagogia da libertação não se constituir uma teoria decolonial propropriamente dita, existem fortes pontos de conexão, em específico na dicotomia teoria-prática: em ambas as pesquisas a esfera do mundo vivido é valorizada no ensino, em uma ação-reflexão-ação combinada à denúncia de práticas desumanizadoras, que interditam sujeitos durante séculos por meio da opressão colonial. Os autores explicam (2018, p. 9):

 

Desse modo, a Pedagogia do Oprimido promoveu uma inflexão nas teorias e nas práticas pedagógicas na segunda metade do século XX ao apresentar as bases antropológicas de uma educação insubmissa a quaisquer formas de dominação, de opressão e de subalternidade, oportunizando a reescrita de uma narrativa da educação como projeto político capaz de romper com as plurais formas de desumanização e com os diversos matizes da colonialidade, ampliando a discussão em torno de princípios e de práticas socioeducacionais que privilegiam a dignidade humana, a liberdade e a justiça social.

 

Não obstante, há que se entender em que medida é possível afirmar que a proposta da obra “Educação como Prática da Liberdade” se insere no conjunto de correntes teóricas da abordagem decolonial. Na introdução da referida obra, o cientista político Francisco Weffort elucida o que é entendido como liberdade nessa proposta pedagógica:

 

Aqui a ideia da liberdade não aparece apenas como conceito ou como aspiração humana, mas também interessa, e fundamentalmente, em seu modo de instauração histórica. Paulo Freire diz com clareza: educação como prática da liberdade. Trata-se, como veremos, menos de um axioma pedagógico que de um desafio da história presente. Quando alguém diz que a educação é afirmação da liberdade e toma as palavras a sério — isto é, quando as toma por sua significação real — se obriga, neste mesmo momento, a reconhecer o fato da opressão, do mesmo modo que a luta pela libertação (FREIRE, 1965, p. 10).

 

Nota-se que, assim como na decolonialidade do saber, a educação como prática trazida por Freire pressupõe a compreensão das relações de dominação coloniais engendradas no seio social, a fim de promover uma verdadeira libertação a partir de novas formas de aprendizado. Freire (1965) questiona a suposta neutralidade do ensino, a qual implica na manutenção das estruturas opressoras coloniais, que se manifestam em categorias hierárquicas-binárias do saber, impondo a inferiorização ou a falta de zonas de contato com o outro, a exemplo de: civilizado/selvagem; racional/místico;  sujeito/objeto, prática/teoria.

Nesse sentido, Hooks menciona uma frase de Freire que se tornou um mantra revolucionário para a autora “não podemos entrar na luta como objetos para nos tornarmos sujeitos mais tarde" (HOOKS, 2013, p. 66). Em sua obra, Hooks reconhece a si mesma e à Freire como autores permeados pela epistemologia decolonial. Isso é visível no capítulo em que a autora escreve um diálogo lúdico entre Glória Watkins (seu nome civil) e seu pseudônimo (Bell Hooks) para falar da influência da obra de Freire no desenvolvimento de sua metodologia de desobediência epistêmica:

 

GW: Na sua obra, você evidencia uma preocupação permanente com o processo de descolonização, particularmente na medida em que afeta os afro-americanos que vivem dentro da cultura da supremacia branca nos Estados Unidos.Você enxerga um elo entre o processo de descolonização e a insistência de Freire na “conscientização”? bh: Sem dúvida. Pelo fato de as forças colonizadoras serem tão poderosas neste patriarcado capitalista de supremacia branca, parece que os negros sempre têm de renovar um compromisso político descolonizador que deve ser fundamental para nossa vida, mas não é. E assim, a obra de Freire, em seu entendimento global das lutas de libertação, sempre enfatiza que este é o importante estágio inicial da transformação – aquele momento histórico em que começamos a pensar criticamente sobre nós mesmas e nossa identidade diante das nossas circunstâncias políticas (HOOKS, 2013, p. 67).

 

Em relação ao pensamento crítico supra mencionado, Hooks (2013, p. 86) salienta que a teoria não é intrinsecamente libertadora e revolucionária, de modo que a posse de um termo não dá existência à prática. Portanto, em um distanciamento da materialidade histórico-social do ensino, uma pessoa pode praticar a teorização sem jamais conhecer/possuir o termo (HOOKS, 2013, p. 87). Nesse sentido, muitas vezes, as pessoas que empregam livremente certos termos - como “teoria”, “prática” ou “educação” - não são necessariamente aquelas cujos hábitos de ser e de viver incorporam a prática de teorizar ou de se engajar na luta por uma libertação de opressões coloniais.

A autora (2013, p. 11) relata a experiência de mudança da escola ocorrida a partir da integração racial nos Estados Unidos dizendo que, anteriormente, quando a escola era só para negros, os professores e suas práticas pedagógicas tinham o cuidado de transformar a mente e o ser dos alunos. Entretanto, depois da integração, o conhecimento passou a se resumir à pura informação/dominação, não mantendo relação com o modo de viver dos alunos e alunas (HOOKS, 2013, p. 11-12). Nas palavras da autora:

 

Essa transição das queridas escolas exclusivamente negras para escolas brancas onde os alunos negros eram sempre vistos como penetras, como gente que não devia estar ali, me ensinou a diferença entre educação como prática da liberdade e educação que só trabalha para reforçar a dominação (HOOKS, 2013, p.12)

 

Assim, o ato privilegiado de somente nomear o termo, sem vinculá-lo à práxis, abre o acesso a modos de comunicação que projetam uma interpretação legitimadora de estruturas da colonialidade do saber, que interagem de forma interseccional para produzir e reproduzir desigualdades históricas (HOOKS, 2013, p. 87).

Hooks (2013, p. 72) observa que isso pode ocorrer até mesmo no interior das teorias decoloniais, nas teoria feministas e inclusive no pensamento de Freire. Enquanto feminista negra, a autora não deixa de manifestar seu incômodo com o sexismo na linguagem de pensadores críticos decoloniais – a exemplo de Franz Fanon e Albert Memmi - que também permanece na obra de Freire. Conforme Hooks (2013, p. 73), Freire constrói um paradigma falocêntrico da libertação–em que a liberdade e a experiência da masculinidade patriarcal são apresentadas, muitas vezes, como se fossem sinônimos.

Entretanto, Hooks (2013, p. 73) ressalta que, embora presente o sexismo na linguagem de Freire, o próprio modelo de pedagogia do autor acolhe o questionamento crítico dessa falha na obra, de modo que a autora se reconheceu mais como pessoa negra de origem rural na “Pedagogia do Oprimido” de Freire do que no feminismo branco-burguês do Norte da de Betty Friedan, em sua célebre obra “A mística feminina”.

Para Hooks (1995, p. 465), a supremacia téorica branca-burguesa-colonial das epistemologias feministas modernas abriu um abismo em face das mulheres negras, representando uma colonialidade do saber que fragmenta o continuum teoria-práxis. A autora (2013, p. 89) acrescenta que esta estratégia é adotada frequentemente pela academia, para manter os espaços de poder intelectual destinados à branquitude elitista.

Desse modo, conforme Hooks (2013, p. 90), a supremacia branca manifestada na aliança entre acadêmicas brancas e seus colegas brancos parece ter se formado para impor padrões que definem o que é teoria e o que não é. Esses padrões produziram o confisco ou a desvalorização dos trabalhos que não traduziam tais estruturas normalizantes “científicas”, que foram considerados não teóricos (HOOKS, 2013, p. 90).

Assim, os trabalhos de mulheres de cor da militância, especialmente quando escritos em um estilo que os torna acessíveis a um público leitor amplo, são frequentemente excluídos dos círculos acadêmicos por serem “não-científicos”, mesmo que tais pesquisas promovam a imbricação necessária entre teoria e práxis (HOOKS, p. 91).

Sob este aspecto, o Direito se torna um espaço exemplar de exclusão de sujeitos marginalizados mediante uma linguagem jurídica excessivamente rebuscada que perpetua a colonialidade do saber, na tentativa de manutenção de um capital cultural que conserva uma distância planejada das vivências sociais. A teoria, neste caso, se torna instrumental, ou seja: ela é utilizada para criar hierarquias de pensamento que legitimam estruturas de dominação colonial, na medida em que as únicas obras consideradas realmente teóricas e científicas são aquelas altamente abstratas, escritas com jargões em latim, difíceis de ler e com referências eurocêntricas (HOOKS, 2013, p.89).

Portanto, fica evidente que um dos muitos usos da teoria no ambiente acadêmico do Direito é a produção de uma hierarquia de classes intelectuais, nos quais a linguagem jurídica é hermética e deve somente ser entendida por um círculo mínimo de pessoas. Assim, o hiato entre teoria e prática jurídica é propositalmente preservado para perpetuar o elitismo de classe, raça, gênero e origem em termos de colonialidade do saber.

Sob o verniz do mito da neutralidade científica, baseado em um pretenso paradigma racional moderno, muitas das teorias ensinadas no curso de Direito, que é marcado por concepções de matrizes masculinas, brancas, heterocisnormativas e eurocêntricas, literalmente expulsam aqueles e aquelas que não se reconhecem nessa narrativa-metodológica, que os sujeita a um processo de interação humilhante, pois o objetivo dessa teoria é, de fato, o de separar e manter à distância daquilo que é considerado prática.

Nota-se, assim, seja no pensamento de Hooks ou de Freire, uma pedagogia engajada que não reconhece nenhum discurso como neutro ou científico; marca esta também presente no paradigma de decolonialidade do saber, que se propõe a desmistificar a suposta neutralidade do pensamento eurocêntrico, na medida em que todo enunciado vem de algum lugar.

Desse modo, entende-se que o poder conferido pelas teorias jurídicas às metodologias impostas como “científicas” reforça a dicotomia com a práxis, limitando o potencial do Direito em suas articulações e reduzindo-o a um pretexto pelo qual se legitimam interesses historicamente dominantes (VENTURI, 2017).

Em razão dessa divisão criada pela colonialidade do saber, os campos “acadêmico” e “profissional”, teórico e prático, desenham destinos e preconceitos, de modo que em certas atividades não se é permitido transitar: ou se resolvem problemas concretos, seguindo as regras que apenas a experiência é capaz de fornecer, ou se fica no terreno considerado seguro da pesquisa, distante da realidade, de suas mazelas e incongruências (VENTURI, 2017). Diante desta falsa dualidade entre teoria e prática jurídicas, é necessário traçar estratégias de resistência no ensino que possam afirmar o direito dos sujeitos em definir a sua própria realidade.

 

3          Educação como prática da liberdade: uma forma de reconstruir o continuum teoria-prática no ensino jurídico

 

Nenhuma teoria jurídica que não possa ser comunicada em uma conversa cotidiana pode ser usada para educar (HOOKS, 2013, p. 89), pelo contrário: essa teoria será utilizada como instrumento para silenciar e desvalorizar várias vozes das experiências, sustentando o binômio fragmentado teoria/prática.

Necessário, portanto, indagar em que medida uma educação decolonial, que se propõe libertadora, aproxima e reconstrói a relação intrínseca entre teoria e prática. Hooks reforça tal imbricação a partir da construção de uma consciência crítica, que pode e deve ser utilizada no ensino jurídico: 

 

Essa estratégia pedagógica se baseia no pressuposto de que todos nós levamos à sala de aula um conhecimento que vem da experiência e de que, esse conhecimento pode, de fato, melhorar nossa experiência de aprendizado. Se a experiência for apresentada em sala de aula, desde o início, como um modo de conhecer que coexiste de maneira não hierárquica com outros modos de conhecer, será menor a possibilidade de ela ser usada para silenciar (HOOKS, 2013, p. 114).

 

Por meio da referida estratégia pedagógica, a teorização da nossa experiência vivida permanece fundamentalmente ligada a processos de libertação coletiva, o que faz com que não exista brecha entre a teoria e a prática (HOOKS, 2013, p. 89). Nesse sentido, no ensino jurídico, o continuum teoria-práxis pode nos libertar da colonialidade do saber mediante a construção de estruturas curriculares que não produzam hierarquias intelectuais entre Norte e Sul. Tais hierarquias do saber jurídico privilegiam – ou tratam exclusivamente – de realidades europeias nas disciplinas do Direito no Brasil, inclusive na bibliografia indicada, o que alimenta a distância entre o curso universitário e a materialidade das vivências dos alunos e alunas.

Esta hierarquização de saberes perpassa por toda estrutura curricular do curso de Direito no Brasil, desde as disciplinas introdutórias – que tratam exclusivamente da história jurídica greco-romana – até disciplinas mais avançadas, que fazem um processo de importação eurocêntrica de raciocínios jurídicos, em termos de teorias da justiça, que são incompatíveis com a realidade sócio-histórica brasileira.

No entanto, sob uma perspectiva decolonial, no ensino do curso do Direito deve-se partir da noção de que a imensa diversidade de experiências sociais brasileiras – e, consequentemente, jurídicas – não pode ser explicada adequadamente por uma única teoria, que se impõe como geral. No lugar de uma “teoria geral”, é necessário estabelecer uma inteligibilidade mútua entre experiências possíveis, em uma metodologia decolonial que desafia as ciências jurídicas convencionais, pois o fechamento disciplinar foi responsável pela redução das realidades à realidade imposta como hegemônica. Isso não significa que deve-se descartar matrizes jurídicas do Norte, pelo contrário: a estratégia pedagógica proposta pretende estabelecer zonas de contato epistemológicos entre as normatividades do Norte e do Sul, sem hierarquização de saberes e sujeitos.

Para tanto, Freire (1965, p. 53), assim como Hooks (2013, p. 114), propõe uma pedagogia que dialoga com o panorama decolonial, na qual o aluno se compreende como ser histórico social e desenvolve um pensar-práxis crítico. Assim, é necessário um resgate histórico-social do Brasil não como externos, não a partir de um ponto de vista eurocêntrico, mas como internos, sujeitos que problematizam e compreendem sua própria realidade para então transformá-la:

 

Aí é que a posição anterior de autodesvalia, de inferioridade, característica da alienação, que amortece o ânimo criador dessas sociedades e as impulsiona sempre às imitações, começa a ser substituída por uma outra, de autoconfiança. E os esquemas e as receitas antes simplesmente importados, passam a ser substituídos por projetos, planos, resultantes de estudos sérios e profundos da realidade. E a sociedade passa assim, aos poucos, a se conhecer a si mesma. Renuncia à velha postura de objeto e vai assumindo a de sujeito (FREIRE, 1965, p.53).

 

Com efeito, o que essa experiência pedagógica libertadora mais evidencia é o elo contínuo entre teoria e prática; um processo que, em última análise, é recíproco, no qual uma capacita a outra (HOOKS, 2013, p. 85-86). Nota-se que a própria sala de aula já deve ser um espaço onde professor e aluno vivam a teoria, mediante a inserção do diálogo social, da experiência democrática.

Para ilustrar esta pedagogia de libertação,que rompe com a colonialidade do saber nos cursos de Direito, é necessário aplicar estratégias de construção dialógica do ensino jurídico. Pode-se citar como exemplo dois projetos realizados em universidades federais, que concretizam a representatividade de sujeitos marginalizados em espaços de poder acadêmico, assim como propagam esse conhecimento para além da academia. Ambos são projetos que visam a extensão, que é a vertente mais desvalorizada da academia, em termos de recursos financeiros e de produção de conhecimento considerado “científico”, justamente por criar conexões perenes entre o saber das universidades e as vivências da comunidade.

O primeiro exemplo é o “Projeto Enegrescer”, realizado nos espaços da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que consiste em uma ação proveniente de uma iniciativa espontânea do coletivo de alunos e alunas da Pós-Graduação, que age de maneira independente. Diante da pequena quantidade de negras e negros aprovados no processo seletivo de 2018 de Pós-Graduação em Direito da UFMG, alunas e alunos da faculdade se mobilizaram para criar um projeto para garantir a efetividade da reserva de 50% de vagas para tais candidatos e candidatas. Trata-se de um projeto de tutoria, formado por professorxs, mestrandxs e doutorandxs, que acompanham o candidato ou candidata durante todo o processo seletivo, que consiste na prova de proficiência em língua estrangeira, estudo do edital, desenvolvimento do projeto e, por fim, a apresentação do projeto à banca examinadora.

O “Projeto Enegrescer” consiste em uma simples estratégia pedagógica horizontal, que não requer altos recursos, mas que gera impactos significantes em termos de desconstrução da dualidade entre teoria e prática no curso de Direito. Isso porque o mestrado e o doutorado são os lugares mais simbólicos de pesquisa “científica-teórica” nos cursos de Direito e, portanto, são espaços ocupados predominantemente pela branquitude-masculina elitista.

Nesse sentido, o “Projeto Enegrescer”, por meio de uma ocupação estratégica, visa efetivar a representatividade das pesquisadoras e dos pesquisadores negros-periféricos nos espaços de poder acadêmico, subvertendo narrativas unívocas de pesquisa, em uma construção dialógica com professorxs e alunxs da universidade e de fora dela.

Já na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), cita-se como exemplo o “Projeto de Extensão Parlamento Jovem e Educação Cidadã” que faz parte do programa Núcleo de Direitos Humanos do Departamento de Direito. O Projeto de extensão foi instaurado por meio de uma parceria entre a Câmara Municipal de Ouro Preto e Assembleia Legislativa de Minas Gerais, com o objetivo de estimular a formação política, cidadã e a construção do pensamento crítico de estudantes de ensino médio das escolas públicas de Ouro Preto e seus distritos. Visa-se desenvolver atividades para que alunos e alunas possam compreender melhor o funcionamento e a organização do Poder Legislativo e da política nacional, mediante oficinas, palestras e visitas técnicas.

As reuniões ocorrem semanalmente, quando monitoras e monitores da graduação em Direito elaboram a estrutura das oficinas sobre o tema escolhido pelos estudantes da escola, que será aprofundado para a formulação de propostas de lei pelos próprios alunos e alunas, que podem se tornar- como de fato o foram – projetos reais de lei estaduais. Assim, a ação extensionista tem um duplo resultado: de um lado, os discentes do curso de Direito desenvolvem suas competências com sensibilidade à realidade que os rodeia, e de outro, a comunidade participa de forma efetiva da atuação da universidade e dos espaços políticos-legislativos regionais.

Sob esta ótica advém o caráter decolonial da contribuição de Freire (1965) e Hooks (2013) para o ensino jurídico, pois, ao abrir espaços para que o oprimido seja o centro do processo de construção do conhecimento no Direito, ele se torna visível, ocupando o seu direito de fala e de ser ouvido como voz, e não como ruído subalterno (LIMA, PERNAMBUCO, 2018, p. 15).

Deve-se ressaltar, no entanto, que a estratégia pedagógica de libertação, que promove a decolonialidade do saber, não diminui o papel e a importância do que se entende por teoria, mas acopla a teorização necessariamente à prática,em um processo recíproco de ensino-aprendizagem, como Hooks observa:

 

Dentro dos círculos feministas, muitas mulheres, reagindo à teoria hegemônica que não fala claramente conosco, passaram a atacar toda teoria e, em consequência, a promover ainda mais a falsa dicotomia entre teoria e prática. Assim, entram em conluio com aquelas a quem se opõe. Interiorizando o falso pressuposto de que a teoria não é uma prática social, elas promovem, dentro dos círculos feministas, a formação de uma hierarquia potencialmente opressora onde toda ação concreta é vista como mais importante que qualquer teoria escrita ou falada (HOOKS, 2013, p. 91).

 

Desse modo, ao propor uma pedagogia dialogal, os autores não se propuseram a falar pelos oprimidos, mas em construir espaços nos e pelos quais sujeitos e sujeitas subalternas possam se fazer protagonistas de seu processo formativo, ressignificando a dicotomia construída entre teoria e prática (LIMA; PERNAMBUCO, 2018, p. 15).

 

§ CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Conclui-se, portanto, que a dissociação entre a teoria e a prática no curso de Direito trata-se, na verdade, de uma dicotomia estrategicamente imposta pela colonialidade do saber, pois um dos muitos usos daquilo que se entende por teoria no ambiente acadêmico do Direito é a produção de uma hierarquia de classes intelectuais, nos quais a linguagem jurídica é hermética e deve somente ser entendida por um círculo mínimo de pessoas. Assim, o hiato entre teoria e prática jurídica é propositalmente preservado para perpetuar o elitismo de classe, raça, gênero e origem em termos de colonialidade do saber no curso de Direito.

O cerne da proposta pedagógica da educação jurídica como libertação é romper com a falsa dicotomia teoria/prática, mediante um saber-práxis que se construa a partir da realidade vivenciada pelo aluno ou aluna, que passa a se compreender, na medida em que desenvolve uma curiosidade epistemológica, como ser histórico-social capaz de entender criticamente a realidade na qual está inserido, para, assim, transformá-la.

Portanto, tanto Freire como Hooks deixam claro que a importância da construção de um saber não colonizado dá-se na medida em que se promove alunas, alunos e comunidade enquanto sujeitos na formação do conhecimento jurídico, o que leva a uma necessária integração com a realidade. Por essa razão, é possível reconhecer a proposta de Freire e Hooks com uma estratégia jurídica decolonial, pois ela implode a falaciosa dicotomia entre teoria e prática no Direito, fazendo com que ensino jurídico sirva como um instrumento de libertação e não de legitimação de estruturas de poder colonial.

Visa-se, assim, o desdobramento de um trabalho educativo capaz de questionar a ordem sociocultural vigente, que detém traços decolonialidade, e, por consequência, criar dialogicamente ações direcionadas à construção de uma organização jurídica que seja pautada na alteridade, tanto no interior dos processos de ensino e de aprendizagem jurídicos, quanto nas cartografias sociais como um todo.

 

REFERÊNCIAS

 

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Informações adicionais e declarações dos autores

 

Declaração de conflito de interesses (conflict of interest declaration): a autora confirma que não há conflitos de interesse na realização das pesquisas expostas e na redação deste artigo.

 

Declaração de autoria e especificação das contribuições (declaration of authorship): todas e somente as pessoas que atendem os requisitos de autoria deste artigo estão listadas como autores; todos os coautores se responsabilizam integralmente por este trabalho em sua totalidade.

Declaração de ineditismo e originalidade (declaration of originality): a autora assegura que o texto aqui publicado não foi divulgado anteriormente em outro meio e que futura republicação somente se realizará com a indicação expressa da referência desta publicação original; também atesta que não há plágio de terceiros ou autoplágio.

 

Dados do processo editorial

· Recebido em: 15/03/2019

· Controle preliminar e verificação de plágio: 16/03/2019

· Avaliação 1: 01/04/2019

· Avaliação 2: 21/04/2019

· Avaliação 3: 01/05/2019

· Decisão editorial final: 01/05/2019

· Publicação: 01/05/2019

Equipe editorial envolvida

·  Editor-Chefe: FQP

·  Assistente-Editorial: MR

·  Revisores:3

COMO CITAR ESTE ARTIGO

PEREIRA, Flávia Souza Máximo; SILVA, Flávia Coelho Augusto. Teoria e prática no ensino jurídico: diálogo entre decolonidade do saber e pedagogia da libertação de Paulo Freire e Bell Hooks. Revista de Direito da Faculdade Guanambi, Guanambi, v. 6, n. 01, e236, jan./jun. 2019. doi: https://doi.org/10.29293/rdfg.v6i1.236. Disponível em: http://revistas.faculdadeguanambi.edu.br/index.php/Revistadedireito/article/view/236. Acesso em: dia mês. ano.



* Editor Responsável: Flávio Quinaud Pedron. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4259444603254002. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4804-2886.

[1] Doutora em Direito pela UFMG, com período de co-tutela com a UNIROMATRE. Bacharel em Direito pela UFMG. Professora Adjunta no curso de Direito da UFOP. Pesquisadora do Grupo Trabalho e Resistências na UFMG. Lattes: http://lattes.cnpq.br/8506917231447946. ORCID: http://orcid.org/0000-0002-3145-0608

[2] Especialista em Direito Empresarial pela FGV. Graduada em Direito pela UFOP. Professora Substituta de Direito Civil e Empresarial no curso de Direito da UFOP. Advogada. Lattes: http://lattes.cnpq.br/2067231287834715. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6109-718X.

[3]Segundo Boaventura de Sousa Santos (1988, p. 49) o modelo de racionalidade da ciência moderna constituiu-se a partir da revolução científica do século XVI e foi desenvolvido nos séculos seguintes sob o domínio das ciências naturais. No século XIX, este modelo de racionalidade se estende às ciências sociais emergentes. A partir de então, pode falar-se de um modelo global de racionalidade científica que admite variedade interna, mas que se distingue de duas formas de conhecimento não-científico (e, portanto, irracional): o senso comum e as chamadas humanidades. Para o autor (1988, p. 49), a nova racionalidade científica moderna-europeia é também um modelo totalitário, na medida em que nega o caráter racional a todas as outras formas de conhecimento que se não pautarem pelos seus princípios epistemológicos e pelas suas regras metodológicas.

[4] Este é o sentido elaborado por Miracy Gustin e Maria Teresa Fonseca Dias (2013, p. 22).

[5]A interseccionalidade, conceito fruto dos estudos e movimentos feministas, refuta o enclausuramento dos grandes eixos de diferenciação social, como as categorias de religião, sexo, gênero, classe, raça, etnicidade, idade e orientação sexual. O enfoque interseccional vai além do simples reconhecimento das particularidades das opressões que se operam a partir dessas categorias e postula sua interação na produção e na reprodução das desigualdades sociais (BILGE, 2009, p. 70)

[6] Sabe-se da discussão acadêmica sobre a variabilidade terminológica destes estudos: pós-coloniais, pós-colonialismo, descolonial ou decolonial, que, no entanto, não é objeto desta pesquisa. Contudo, ressalta-se que o termo decolonial foi adotado, pois acredita-se que o prefixo “pós” representa, de alguma forma, a superação da realidade moderna-colonial. Portanto, o termo decolonial seria o mais adequado para indicar que há mais permanências de estruturas de poder instauradas na colonização do que rupturas, mas também porque é o termo utilizado pelos estudos do grupo Modernidade/Colonialidade, que possui as pesquisas mais intensas sobre decolonialidade do saber.

[7]Quijano (2005) afirma que a imposição de uma classificação racial da população do mundo conforme a cor da pele foi apedra angular do referido padrão de poder. Nesse sentido, a categoria raça, originalizada e mundializada a partir da colonização da América Latina, opera em cada um dos planos, meios e dimensões, materiais e subjetivos, da existência social cotidiana e da escala societal (2005).