A reforma trabalhista brasileira de 2017 e a desconsideração da duração do trabalho como norma relacionada à saúde dos trabalhadores

The brazilian labor reform of 2017 and the discontinuation of duration of work as a standard related to the health of workers

 

Jair Teixeira dos Reis[1]

Universidad Internacional Iberoamericana (UNINI) – Capeche/MEX

[email protected]

 

Antônio Zoti Prado[2]

Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) – Espírito Santo/ES

[email protected]

 

RESUMO: No presente artigo, serão analisados textos de diversos autores, relacionados à reforma trabalhista brasileira de 2017, tendo como foco as previsões acerca de saúde e segurança no trabalho. O artigo aborda a questão da duração da jornada de trabalho como fator intrinsecamente relacionado à segurança e saúde do trabalhador, diretamente ligado, inclusive, à incidência de acidentes e doenças do trabalho. Não obstante, a reforma trabalhista aprovada em 2017 estabelece que as regras sobre duração do trabalho e intervalos não são consideradas como normas de saúde, higiene e segurança do trabalho para fins de negociação coletiva. Como será visto, tal proposição contraria um amplo conhecimento acerca da relação entre duração da jornada e saúde do trabalhador.Optou-se, assim, por um estudo que teve como base uma estratégia qualitativa de pesquisa. Orientada por pesquisa bibliográfica, consignada em obras contemporâneas, em sua grande maioria, de autores nacionais renomados e da análise da legislação trabalhista vigente, considerando o contexto histórico, que representa alguns dos marcos normativos do direito tutelar do trabalho no Brasil.

Palavras-chave: Jornada. Reforma. Saúde. Segurança. Trabalho.

ABSTRACT: In the present article, we will analyze the texts of several authors, related to the Brazilian labor reform of 2017, focusing on health and safety at work forecasts. The article deals with the question of the duration of the workday as a factor intrinsically related to worker safety and health, directly linked to the incidence of accidents and occupational diseases. Nevertheless, the labor reform approved in 2017 establishes that rules on working hours and intervals are not considered as health, hygiene and safety standards for collective bargaining purposes. As will be seen, such a proposal contradicts a broad knowledge about the relation between the duration of the journey and the health of the worker.We chose a study that was based on a qualitative research strategy. Oriented in a bibliographical research, consigned in contemporary works, in the great majority, of renowned national authors. In addition, an analysis of current labor legislation, considering the historical context, which represents some of the normative frameworks of labor law in Brazil.

Keywords: Health. Journey. Reform. Security. Work.

 

SUMÁRIO: INTRODUÇÃO; 1 O PARÁGRAFO ÚNICO DO ART. 611-B DA CLT, INCLUÍDO PELA REFORMA; 2 ORGANIZAÇÃO TEMPORAL DO TRABALHO COMO ASPECTO RELACIONADO À SAÚDE E À SEGURANÇA NO TRABALHO; 2.1 Excesso de jornada de trabalho para motoristas do transporte rodoviário de carga; 2.2 Trabalho em frigoríficos e agravos decorrentes de aspectos da duração do trabalho; 2.3 Jornada de trabalho e impactos decorrentes da ergonomia; CONSIDERAÇÕES FINAIS; REFERÊNCIAS.

 

SUMMARY: INTRODUCTION; 1 THE SOLE PARAGRAPH OF ART. 611-B DA CLT, INCLUDED BY THE REFORM; 2 TEMPORARY WORK ORGANIZATION AS ASPECT RELATED TO HEALTH AND SAFETY AT WORK; 2.1 Excess working hours for drivers of road haulage; 2.2 Work in refrigerators and injuries resulting from aspects of working time; 2.3 Working day and impacts arising from ergonomics; FINAL CONSIDERATIONS; REFERENCES.

 

§ INTRODUÇÃO

 

A Lei nº 13.467, de 13 de julho de 2017, também conhecida como “reforma trabalhista”, trouxe significativas alterações à Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, que é a principal legislação regulamentadora das relações de trabalho e emprego no Brasil. Segundo seus propositores e apoiadores[3], a referida reforma trabalhista teve por objetivo adequar a legislação brasileira às novas relações de trabalho surgidas nas últimas décadas, desde a edição da CLT. Alegou-se, ainda, como fundamento para a necessidade de se alterar a legislação trabalhista, o combate ao desemprego e à crise econômica a que atravessava o país em 2017. O governo considerava que a reforma da legislação trabalhista seria uma maneira de estimular a economia do país através da criação de novos empregos.

No entanto, o fato é que a legislação em questão foi e continua sendo objeto de muitas críticas por parte de instituições públicas e privadas ligadas ao universo do direito trabalhista. Manifestaram-se de forma contrária ao texto reformador o Ministério Público do Trabalho, alegando que as alterações violariam a constituição e convenções internacionais assinadas pelo Brasil. Também de forma crítica manifestou-se a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho, recomendando inclusive que seus membros declarassem inconstitucionais vários pontos da nova legislação.

Não restam dúvidas de que as modificações introduzidas possuem um viés nitidamente favorável ao empresariado, parte tomadora da mão de obra nas relações de trabalho, em detrimento da parte hipossuficiente desta relação, que são os trabalhadores que vendem sua mão-de-obra no mercado.

Gustavo Filipe Barbosa Garcia (2017) se manifesta de forma crítica acerca da referida legislação reformadora, conforme trecho transcrito abaixo, no qual se refere ao projeto de reforma como uma afronta aos direitos sociais dos trabalhadores, dentre outras considerações:

o Substitutivo ao Projeto de Lei 6.787/2016, sobre a reforma trabalhista, apresentado, em 12 de abril de 2017, pelo Relator da Comissão Especial do Congresso Nacional, é uma das mais impressionantes afrontas aos direitos sociais dos trabalhadores já vistas na história do mundo civilizado. Observa-se a completa subversão das normas fundantes do Direito do Trabalho, com destaque aos princípios da proteção, da norma mais favorável e da condição mais benéfica, assegurados nos planos constitucional e internacional. Pretende-se instituir drástica redução do patamar de proteção aos empregados, estabelecendo previsões que favorecem apenas o lado mais forte da relação envolvida. De modo exemplificativo, o art. 620 da CLT, na redação proposta, passa a dispor que as “condições estabelecidas em acordo coletivo de trabalho sempre prevalecerão sobre as estipuladas em convenção coletiva de trabalho”. Trata-se de manifesta contrariedade à exigência constitucional de melhoria das condições sociais, a qual impõe a necessidade de ser observada, em princípio, a norma mais favorável ao trabalhador (art. 7º, caput, da Constituição da República).

Homero Batista Mateus da Silva, em sua obra “Comentários à Reforma Trabalhista” (2017, p. 11), igualmente tece críticas à referida legislação. O autor menciona alguns temas importantes, de grande interesse à classe trabalhadora, e que não foram incluídos na reforma, tais como a regulamentação da penosidade, da proteção do trabalho contra a automação e da proteção do trabalho da mulher. E questiona ainda o fato de a reforma trabalhista não ter se preocupado com a atualização do capítulo sobre saúde e segurança do trabalho (arts. 154 a 200 da CLT), mesmo diante de tantos avanços científicos capazes de alterar limites de tolerância e graus de exposição a agentes físicos, químicos e biológicos. E conclui:

o silêncio em torno do tema da saúde e segurança do trabalho, que clama por atualizações, nos leva a pôr em dúvida se o propósito da reforma de 2017 tinha mesmo o propósito de melhorar as condições de trabalho ou se camufla, apenas, a redução de custos operacionais (SILVA, 2017, p. 11).

No mesmo sentido se manifesta Vólia Bonfim Cassar (2017), fazendo uma crítica contundente à alteração legislativa aqui estudada:

O conteúdo do Projeto de Lei, ao contrário do afirmado pela imprensa, desconstrói o Direito do Trabalho como conhecemos, inverte seus princípios, suprime regras favoráveis ao trabalhador, prioriza a norma menos favorável ao empregado, a livre autonomia da vontade, o negociado sobre o legislado (para reduzir direitos trabalhistas), valoriza a imprevisibilidade do trabalho, a liberdade de ajuste, exclui regras protetoras de direito civil e de processo civil ao direito e processo do trabalho.

Com efeito, o contexto da reforma e a análise pormenorizada das alterações realizadas no texto consolidado, levam a crer, em consonância com as posições trazidas acima, que a nova legislação tende a favorecer uma precarização das relações trabalhistas em diversos aspectos, infelizmente em prejuízo da parte hipossuficiente.

No presente artigo, será analisado um desses aspectos, especialmente no que se refere às possíveis implicações da previsão contida no parágrafo único do artigo 611-B, incluído na Consolidação das Leis do Trabalho pela reforma trabalhista de 2017, de acordo com o qual as regras sobre duração do trabalho e intervalos não são consideradas como normas de saúde, higiene e segurança do trabalho para os fins de negociação coletiva.

Para tanto, tentaremos demonstrar as diversas implicações que a organização temporal do trabalho possui sobre a higidez física e mental dos trabalhadores. Em grande parte, as normas que trazem o regramento dessa organização temporal do trabalho, que inclui a previsão de pausas, intervalos e duração da jornada, são elaboradas com base em critérios técnicos, tendo como principal repositório no ordenamento brasileiro as normas regulamentadoras de segurança e saúde elaboradas pelo Ministério do Trabalho, que por sua vez se baseiam em critérios e estudos adotados internacionalmente.

Por esse motivo, torna-se preocupante a permissão para que as negociações coletivas possam prevalecer sobre esse tipo de norma, no que diz respeito à duração do trabalho e à concessão de intervalos e pausas, desconsiderando que tais previsões possuem relação direta com a preservação da saúde e da segurança dos trabalhadores. Com efeito, tal preocupação decorre da previsão legal que é objeto de estudo do presente artigo, incluída pela reforma trabalhista e que afirma que normas sobre duração do trabalho não são consideradas como normas de saúde e segurança para fins de negociações coletivas.

Nosso objetivo será demonstrar a inadequação da afirmação contida nessa norma, a qual, além de contrariar um amplo conhecimento técnico acerca da matéria, caminha em sentido oposto ao preconizado pela Constituição de 1988, que prevê a evolução do direito do trabalho no sentido de permitir uma melhoria na condição social dos trabalhadores. Além disso, o texto constitucional também compreende a saúde humana como um bem indisponível, não podendo o trabalhador ver a tutela de sua saúde ser reduzida ou relativizada mediante negociação em acordos ou convenções coletivas.

 

1          O PARÁGRAFO ÚNICO DO ART. 611-B DA CLT, INCLUÍDO PELA REFORMA

 

A reforma trabalhista (Lei nº 13.467 de 2017) incluiu na Consolidação das Leis do Trabalho o art. 611-B. O referido dispositivo legal, em seus trinta incisos, traz um rol pretensamente taxativo de matérias que foram excluídas do âmbito das negociações coletivas, denominando-as objeto ilícito de acordo ou convenção coletiva de trabalho.

Muito embora o rol de matérias constante dos incisos do art. 611-B se pretenda taxativo, renomados autores argumentam que tal pretensão é desprovida de fundamentos jurídicos, já que há diversas outras matérias não ali elencadas e que também não podem ser objeto de negociação coletiva.

Homero Batista Mateus da Silva (2017, p. 122) cita como exemplos a concessão de reajuste salarial contrário às leis de política salarial, cláusulas discriminatórias entre sindicalizados e não sindicalizados, restrições ou condicionantes à garantia de emprego da gestante, renúncia coletiva de direitos, dentre outros. Já Vólia Bonfim Cassar (2017) menciona a “garantia de salário mínimo para quem recebe remuneração variável, a proteção contra a automação, a dignidade da pessoa humana, dos pactos internacionais de direitos humanos vigentes no país, entre outros direitos”.

O legislador da reforma trabalhista acresceu ao art. 611-B um parágrafo único, cuja redação estabelece taxativamente que as regras sobre duração do trabalho e concessão de intervalos não são consideradas como normas de saúde, higiene e segurança do trabalho para os fins de negociação coletiva. 

Com efeito, tem-se que no inciso XVII do art. 611-B, o legislador determina que não podem ser objeto de negociação coletiva as normas de saúde, higiene e segurança do trabalho previstas em lei ou em normas regulamentadoras do Ministério do Trabalho. Ou seja, o legislador inicialmente reconhece que as Normas Regulamentadoras estabelecem parâmetros de higiene, saúde e segurança baseados em critérios técnicos, não devendo ser alterados mediante negociações coletivas.

De fato, cogitar-se uma semelhante permissão para que negociações coletivas pudessem transigir sobre normas regulamentadoras de saúde e segurança do trabalho traria inúmeros problemas. Seria possível, por exemplo, tal permissão trazer como resultado a adoção de limites diferenciados de tolerância a exposição a determinadas substâncias químicas entre estabelecimentos da mesma empresa localizados em diferentes estados; ou ainda limites de exposição e tolerância a uma mesma substância química, diferenciados para pessoas que atuassem em diferentes atividades econômicas.

Esse entendimento jurídico de inegociabilidade das normas técnicas de saúde e segurança no trabalho já era consagrado no âmbito do direito do brasileiro, e decorre da interpretação sistemática de comandos presentes na própria Constituição brasileira de 1988.

Nesse ínterim, devemos lembrar que a Constituição da República Federativa do Brasil traz previsões expressas, em seu art. 7º, no sentido de que a legislação deve assegurar a melhoria (e não a deterioração) da condição social dos trabalhadores, e ainda de que são direitos dos trabalhadores a redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança. Esse entendimento encontra-se consolidado, uma vez que a saúde e a vida dos trabalhadores revelam-se bens jurídicos de caráter indisponível, conforme se verifica dos ensinamentos de Maurício Godinho Delgado (2017, p. 127):

Também não prevalece a negociação se concernente a direitos revestidos de indisponibilidade absoluta (e não indisponibilidade relativa). Tais parcelas são aquelas imantadas por uma tutela de interesse público, por constituírem um patamar civilizatório mínimo que a sociedade democrática não concebe ver reduzido em qualquer segmento econômico-profissional, sob pena de se afrontarem a própria dignidade da pessoa humana e a valorização mínima deferível ao trabalho (arts. 1º, III, e 170, caput, CF/88). Expressam, ilustrativamente, essas parcelas de indisponibilidade absoluta a anotação de CTPS, o pagamento do salário mínimo, as normas de saúde e segurança do trabalho.

Desta forma, vê-se que o próprio texto constitucional estabelece que as normas regulamentadoras de saúde e segurança são direitos dos trabalhadores, asseguradores de um patamar civilizatório mínimo, não sendo cabível que, mediante negociação coletiva, as representações obreiras e patronais possam negociar a flexibilização de níveis seguros de exposição a agentes de riscos químicos, físicos, biológicos, ou outras condições mais gravosas que possam pôr em risco a integridade física e a higidez mental dos trabalhadores, para abaixo de patamares seguros estabelecidos com base em critérios predominantemente técnicos.

Retornemos ao citado comando normativo do inciso XVII do art. 611-B, o qual impede, de forma acertada, que as negociações coletivas possam tratar de questões de saúde e segurança do trabalho. Vejamos que a redação desse artigo, por via de consequência, também poderia implicar na proibição de que as negociações coletivas alterassem, de forma prejudicial ao trabalhador, diversos aspectos relacionados à duração das jornadas de trabalho e à concessão de intervalos, uma vez que tais temas estão intrinsecamente relacionados à saúde e à segurança.

Ocorre que, como tal restrição temática não estava dentre os objetivos do legislador da reforma, o qual tinha o claro viés de ampliar o poder das negociações coletivas, permitindo a flexibilização de comandos legais mais restritivos, a solução encontrada foi acrescer o parágrafo único ao art. 611-B, dispositivo esse que traz comando questionável, para dizer o mínimo. Outrossim, desafia a lógica, o bom senso e até mesmo décadas de conhecimento científico, afirmar-se que normas relacionadas à duração do trabalho e à concessão de intervalos não estariam relacionadas a questões de saúde, higiene e segurança do trabalho.

Diante do exposto, é possível perceber uma patente contradição entre o comando contido no inciso XVII do art. 611-B da Consolidação das Leis do Trabalho, ao afirmar que as normas sobre saúde e segurança são objeto ilícito de negociação coletiva, e de outro lado o comando presente no parágrafo único do mesmo art. 611-B, que exclui do âmbito da temática de saúde e segurança do trabalho as normas de organização temporal do trabalho, permitindo assim que normas que possuem nítida relação com a temática da higidez física e mental dos trabalhadores sejam efetivamente negociadas em acordos e convenções coletivas de trabalho.

Em texto anterior ao advento da reforma trabalhista, mas analisando o contexto histórico de desregulamentação do direito do trabalho, Ricardo Resende (2015, p. 3), afirma o seguinte:

Não obstante a ampliação das garantias dos direitos mínimos dos trabalhadores levada a efeito pela Constituição de 1988, o fato é que o capitalista continua atuando no sentido da desregulamentação trabalhista, sugerindo, em posição extrema, o velho dogma liberal de que a relação de trabalho deveria ser regida por um simples contrato de prestação de serviços, nos moldes do direito comum.

Por todo o exposto, nota-se que o objetivo do legislador da reforma, com o acréscimo desse parágrafo único ao art. 611-B, foi assegurar a possibilidade de que os instrumentos de negociação coletiva pudessem transigir acerca de aspectos da organização temporal do trabalho, especialmente a duração do trabalho e a concessão de intervalos, mesmo ciente de que tais variáveis são indissociáveis de impactos sobre a higidez física e mental do trabalhador.

Para viabilizar seu intuito de permitir que as negociações coletivas tratassem livremente de tais temas, ainda que trouxessem impactos prejudiciais a aspectos de saúde e segurança, lançou mão de dispositivo contraditório e que pouco dialoga com a realidade, o qual afirma que a duração do trabalho não se relaciona com questões de higidez laboral. Ou seja, o parágrafo único do art. 611-B foi uma forma de contornar a restrição de que negociações coletivas definissem situações relativas à saúde dos trabalhadores.

 

2          ORGANIZAÇÃO TEMPORAL DO TRABALHO COMO ASPECTO RELACIONADO À SAÚDE E À SEGURANÇA NO TRABALHO

 

No presente tópico, abordaremos a relação indissociável existente entre a duração do trabalho e a concessão de intervalos e pausas, e seus impactos sobre a saúde e a segurança dos trabalhadores, de forma contrária à afirmação contida no parágrafo único do art. 611-B da Consolidação das Leis do Trabalho pós reforma de 2017.

A Constituição Brasileira de 1988, interpretada de forma sistemática, nos diz que cabe ao empregador garantir que seus empregados disponham de ambiente de trabalho que não lhes cause danos à saúde. O texto constitucional estabelece ainda que o meio ambiente de trabalho é parte integrante do meio ambiente, e que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, sendo este um bem essencial à sadia qualidade de vida.

Segundo Danielle Gonçalves (2017, p. 15),

o meio ambiente de trabalho corresponde ao espaço físico no qual são desenvolvidas atividades profissionais produtivas e onde se fazem presentes os agentes físicos, químicos, biológicos, mecânicos, ergonômicos e outros, naturais ou artificiais que, associados ou não, podem desencadear reações biopsicofisiológicas e sociais com repercussões na saúde, na integridade física e na qualidade de vida do trabalhador.

Ou seja, o meio ambiente de trabalho, sob responsabilidade do empregador, que é quem o organiza e explora economicamente, deve ser um meio ambiente, na medida do possível, equilibrado, tendo em conta que nesse espaço é que o trabalhador coloca seu corpo em contato com agentes químicos, físicos, biológicos, ergonômicos, e outros decorrentes do processo produtivo empresarial, e que podem acarretar impactos em sua saúde. A partir disso, é inafastável o entendimento de que o tempo de exposição a tais agentes é um fator determinante quanto à ocorrência desses possíveis impactos à saúde.

Zimmermann (2017), traça um interessante panorama acerca das implicações entre segurança e saúde e duração do trabalho:

[...] não é preciso ser médico para saber que a jornada de trabalho pode levar ao esgotamento físico e mental. Não por outro motivo, o tempo de trabalho consta na Convenção 155 da Organização Internacional do Trabalho como elemento indispensável a ser considerado na definição das políticas de saúde e segurança no trabalho. O legislador sabia que não havia margem de negociação em normas de saúde, higiene e segurança do trabalho, tanto que explicitou que a supressão ou a redução de direitos relativos a tais matérias constituíam objeto ilícito de instrumento coletivo de trabalho. Contudo, como num passe de mágica, excluiu as regras sobre duração do trabalho e intervalos dessa vedação. A vontade do legislador ficou clara, mas não será capaz de mudar a vida real, em que cortadores de cana remunerados por produção são submetidos a extenuantes jornadas de trabalho e morrem de fadiga ou em que altos executivos, submetidos a ilimitadas horas de trabalho para alcançar metas muitas vezes inatingíveis, morrem de exaustão ou se suicidam porque se sentem sufocados pelo trabalho e não visualizam mais possibilidade de retornar à normalidade da vida.

De fato, a proposição legal de que a duração do trabalho e a concessão de intervalos não dizem respeito a questões de saúde e segurança do trabalhador não possui qualquer sustentação fática, pois a relação direta entre tais temas é bastante evidente.

Numa abordagem histórica da evolução do direito do trabalho, em suas origens, a luta dos trabalhadores por melhores condições de trabalho teve alguns de seus primeiros resultados concretizados em normas que justamente traziam limites à duração do trabalho, em um contexto em que as pessoas adoeciam e morriam em virtude de longas jornadas laborais, as quais provocavam a exaustão física e mental, favorecendo a ocorrência de acidentes. É o que nos aponta Aline Cristina Rojas (2017, p. 24):

O advento da tecnologia que, posteriormente, culminou na revolução industrial e atômica, pelo surgimento de atividades nucleares, corroborou para a ocorrência incessante de acidentes de trabalho e o desenvolvimento de múltiplas doenças ocupacionais, incluindo os distúrbios psicológicos da depressão e ansiedade, considerados como o mal do século XXI. (...). Desde a revolução industrial até os dias atuais é possível encontrar trabalhadores submetidos a condições de trabalho extenuantes, exercendo seu labor em locais insalubres e perigosos sem medidas básicas de proteção, da segurança e saúde, o que facilita a ocorrência de um acidente ou o desenvolvimento de uma doença.

Delgado (2017, p. 974), acerca do tema, nos lembra que, modernamente, estudos e pesquisas médicas sobre saúde e segurança no trabalho informam que “a extensão do contato do indivíduo com certas atividades ou ambientes é elemento decisivo à configuração do potencial efeito insalubre de tais ambientes ou atividades”. Em consequência de tais constatações, surge a noção de que a redução da jornada de trabalho, e também da duração semanal do trabalho, a depender da atividade ou ambiente, “constitui medida profilática importante no contexto da moderna medicina laboral”.

Como se vê, a jornada de trabalho é um fator crítico no que se refere à probabilidade de ocorrência de acidentes e doenças do trabalho. Com efeito, sabe-se que com o prolongamento da jornada e após diversas horas de trabalho, a atenção do trabalhador tende a diminuir, em virtude do próprio cansaço e esgotamento físico e mental que uma grande quantidade de horas seguidas de trabalho provoca ao ser humano. Não por outro motivo, é um dado conhecido que a maior parte dos acidentes de trabalho tende a ocorrer mais próximo ao final da jornada de trabalho, e não no início, quando o nível de atenção do trabalhador ainda se encontra alto, e o nível de cansaço, baixo.

O empregador que não limita o tempo de serviço, exigindo a prestação de horas extras habituais de modo a priorizar os objetivos econômicos da empresa, passa a descuidar da higidez física do empregado, que produz esforço além do que seu corpo e sua mente permitem. Citam-se os inúmeros casos de análise de acidentes realizados pelo Ministério do Trabalho em que a jornada prolongada, que aumenta a fadiga e leva à exaustão, foi um fator causal determinante (BRASIL, 2017).

Nos tópicos seguintes, tentaremos caracterizar de forma mais concreta os impactos que a organização temporal do trabalho pode ocasionar em termos de saúde e segurança dos trabalhadores. Veremos os impactos do excesso de jornada em trabalhadores motoristas de transporte rodoviário de cargas, em trabalhadores do setor de carnes e derivados (frigoríficos), e ainda em atividades em que o aspecto ergonômico se mostra presente de forma mais significativa, como é o caso de trabalhadores de telemarketing, caixas de supermercado, dentre outros.

 

2.1     Excesso de jornada de trabalho para motoristas do transporte rodoviário de carga

 

Para corroborar o que foi afirmado nos tópicos antecedentes, acerca da intrínseca relação existente entre duração da jornada de trabalho, concessão de intervalos, e suas consequências na segurança do trabalho, vejamos, por exemplo, alguns dados sobre a ocorrência de acidentes de trabalho com motoristas de transporte rodoviário de carga, uma categoria em que sabidamente a incidência de longas jornadas está diretamente relacionada à ocorrência desse tipo de evento.

De acordo com o Boletim Epidemiológico Acidentes de Trabalho em Motoristas do Transporte de Carga, publicado pelo Centro Colaborador de Vigilância de Acidentes do Trabalho do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (BRASIL, 2013), tem-se que

Em todo o mundo, estudos demonstram o elevado custo social das más condições de trabalho dos motoristas do transporte de carga, o que se reflete na alta mortalidade por acidentes de trabalho. Nesses estudos, a maioria dos acidentes de trabalho fatais entre esses trabalhadores ocorre em rodovias, e as causas mais comuns a fadiga, resultante de longas jornadas e repouso insuficiente [...].

A publicação não deixa dúvidas ao asseverar que estudos em todo o mundo apontam como as causas mais comuns de acidentes fatais entre motoristas de transporte rodoviário a fadiga, resultante de longas jornadas e repouso insuficiente.

Como se sabe, no Brasil os motoristas de transporte rodoviário, de carga e também de passageiros, são expostos a longas jornadas de trabalho, laborando frequentemente durante o período noturno e sendo levados inclusive ao consumo de drogas que os mantenham acordados enquanto dirigem. Tal contexto nos leva a concluir, de forma inegável, pela existência de relação direta entre longas jornadas de trabalho ou concessão de repousos insuficientes, e a fadiga do trabalhador que favorece a ocorrência de acidentes, quase sempre fatais, pela própria natureza da atividade.

Em notícia publicada no site do Tribunal Superior do Trabalho, cujo título é “Jornada extenuante contribuiu para acidente que matou caminhoneiro do Paraná”, há o relato de um acidente que ocorreu em junho de 2003, na BR-116, às 22h30, próximo a Teófilo Otoni (MG). Segundo a perícia, o caminhão da transportadora colidiu com uma carreta que vinha em sentido contrário e caiu num precipício. Os julgadores entenderam que a imposição de jornada extenuante contribuiu para o acidente. O Regional constatou que, de acordo com o tacógrafo do dia do acidente, o motorista iniciou a jornada às 5 horas da manhã e, mesmo que não tivesse dirigido continuamente por todo o dia, não há como se desconsiderar que a jornada extenuante cumprida habitualmente acarreta efeitos lesivos que se alongaram no tempo, implicando situação de estresse cumulativo (REIS, 2017).

Em matéria publicada no site da EBC – Empresa Brasil de Comunicação, intitulada “Jornada de trabalho prolongada de motoristas duplica risco de acidentes de trânsito”, o diretor do Centro de Estudos Multidisciplinar em Sonolência e Acidentes (Cemsa), Marco Túlio de Mello, afirma que um motorista profissional que trabalha mais de 12 horas por dia dobra as chances de se envolver em um acidente. Já acima de 14 horas de jornada de trabalho, o risco de acidente triplica (CRAIDE, 2013).

De acordo com a mesma publicação, o diretor da ABRAMET - Associação Brasileira de Medicina de Tráfego, Dirceu Rodrigues Alves Jr., considera que o descanso do motorista deve ser maior do que prevê a lei. A Lei nº 12.619/2012, estabelece regras de descanso para motoristas profissionais, exigindo, por exemplo, descanso mínimo de 11 horas por dia. O especialista defende ainda que o profissional não fique mais de seis horas por dia na direção do veículo para não comprometer funções importantes: atenção, concentração, agilidade mental, raciocínio, vigília, função motora, sensibilidade tátil, visão e audição (CRAIDE, 2013).

Todas as questões expostas acima tornam-se objeto de preocupação com a possibilidade de que as normas sobre duração da jornada de trabalho e concessão de descansos sejam consideradas, para fim de negociação coletiva, de forma dissociada de suas implicações sobre a saúde e segurança dos trabalhadores. Com efeito, a preocupação é que surjam acordos e convenções coletivos que flexibilizem tais regras, trazendo,por exemplo, critérios mais permissivos para que as empresas prolonguem as jornadas de trabalho, impactando de forma perigosa a saúde dos trabalhadores e de terceiros, no caso de motoristas de transporte rodoviário de cargas e de passageiros. Ao mesmo tempo, faz com que seja ainda maior o estranhamento acerca da afirmação legislativa de que aspectos de duração do trabalho não se relacionam a questões de saúde e segurança.

 

2.2     Trabalho em frigoríficos e agravos decorrentes de aspectos da duração do trabalho

 

O Ministério do Trabalho publicou, em 18 de abril de 2013, a Norma Regulamentadora NR-36, a qual regulamenta aspectos de segurança e saúde no trabalho em empresas de abate e processamento de carnes e derivados. Foi editado ainda pelo referido órgão ministerial um manual de auxílio na interpretação e aplicação da norma regulamentadora nº 36.

Como não poderia deixar de ser, ambos os documentos abordam detalhadamente aspectos de duração do trabalho nesse tipo de atividade, incluindo limitações à duração da jornada de trabalho e previsão de concessões de intervalos e pausas. O item 36.13 da Norma e seus diversos subitens tratam da organização temporal do trabalho, incluindo duração do trabalho, concessão, duração e distribuição de pausas, dentre outros. Tem-se que nesse tipo de atividade econômica, os trabalhadores estão expostos a condições de trabalho gravosas, já que há exposição a ambientes artificialmente frios, cuja duração deve ser controlada, bem como grande ocorrência de movimentos repetitivos na realização de cortes de carne.

Nesse sentido, vejamos um trecho bastante esclarecedor do Manual de Aplicação da norma regulamentadora NR-36, no que se refere à organização temporal do trabalho nesse tipo de atividade econômica.

Outro ponto a ser valorizado é a eliminação de jornadas excessivas, estando incluída aí a não permissão da redução do intervalo para refeições. A redução do tempo de exposição é uma das formas de diminuir as consequências dos riscos oriundos dos processos de trabalho. O risco é a probabilidade de ocorrência de um dano em função da exposição a um ou mais fatores. As atividades efetuadas nos frigoríficos, além de serem insalubres em sua maioria, são penosas e apresentam uma multiplicidade de fatores de riscos ligada ao tipo de produto e à forma como o processo de trabalho é organizado. A NR-36, por meio deste capítulo, especifica os dois tipos de pausa a serem concedidos, a de recuperação térmica e a de recuperação psicofisiológica, e os requisitos para sua distribuição no tempo da jornada de trabalho nos frigoríficos. Contudo, este capítulo deve ser aplicado conjuntamente com as disposições da legislação trabalhista, especialmente o capítulo Duração do Trabalho da CLT, sobre jornada e descanso (BRASIL, 2017).

O manual acima transcrito possui caráter fundamentalmente técnico, elaborado com base nos conhecimentos desenvolvidos pelo sistema brasileiro de inspeção do trabalho, a cargo do Ministério do Trabalho, por meio de seus Auditores-Fiscais do Trabalho. Como visto, não restam dúvidas que, do ponto de vista técnico e científico, a duração do trabalho e a concessão de pausas possui intrínseca relação com a probabilidade de ocorrência de agravos à saúde dos trabalhadores do setor frigorífico. Nesse sentido, é inegável que eventuais modificações na sistemática desenhada pela norma regulamentadora implicarão consequências sobre a saúde dos obreiros.

A mesma norma regulamentadora NR-36 prossegue afirmando que a prorrogação da jornada para além de oito horas diárias não é recomendada, no caso, já que a maioria das atividades em frigoríficos é realizada com ritmo excessivo de trabalho, há necessidade de adoção de posturas nocivas, de utilização de força, de exposição ao frio, “à umidade, monotonia, repetitividade, uso de ferramentas de corte, equipamentos com vibração, pressão por tempo e por metas, dentre outros fatores de risco” para o desenvolvimento de lesões por esforço repetitivo ou distúrbios osteomusculares relacionados ao trabalho .”

A mesma publicação afirma ainda que, segundo métodos de avaliação ergonômica previstos na norma técnica ABNT NBR ISSO 11228-3:2014, o risco de adoecimento por LER/DORT é ampliado em pelo menos cinquenta por cento em caso de trabalho repetitivo de duração superior a oito horas, de modo que deve ser evitada a submissão dos empregados do setor frigorífico a horas extras habituais, tendo em conta que tal situação acentua os riscos de natureza ergonômica.

Por todo o exposto, não resta qualquer dúvida de que no setor da indústria de frigoríficos, processamento de carnes e derivados, aspectos que dizem respeito à duração da jornada de trabalho são indissociáveis da ocorrência e do agravamento de doenças e acidentes de trabalho.

Diante disso, permanece o questionamento acerca da permissão legislativa trazida na reforma trabalhista e objeto do presente trabalho, que permite que os aspectos temporais de organização do trabalho sejam livremente acordados mediante negociações coletivas de trabalho, seja através de acordos coletivos, seja através de convenções coletivas, já que, segundo o dispositivo legal estudado, as regras sobre duração do trabalho e concessão de intervalos não são consideradas como normas de saúde, higiene e segurança do trabalho para os fins de negociação coletiva, estando, portanto,aptas a serem negociadas pelas representações patronais e obreiras.

 

2.3     Jornada de trabalho e impactos decorrentes da ergonomia

 

Outro tipo de implicação muito comum sobre a saúde dos trabalhadores consiste na ocorrência de adoecimento em virtude de aspectos ergonômicos presentes na organização do trabalho. Com a finalidade de tratar questões ergonômicas, o Ministério do Trabalho elaborou uma Norma Regulamentadora, a NR-17, cujo objetivo é justamente estabelecer parâmetros normativos visando à redução de prejuízos à saúde em decorrência de fatores ergonômicos presentes nas atividades laborais.

O referido órgão ministerial também disponibiliza, em seu sítio eletrônico na internet, um manual de aplicação da Norma Regulamentadora NR-17, o qual “tem como objetivo subsidiar a atuação dos Auditores-Fiscais do Trabalho e dos profissionais de Segurança e Saúde do Trabalhador nas suas atividades”.

Em tópico introdutório do referido documento, é traçado um pequeno histórico da elaboração da Norma Regulamentadora NR-17, cuja origem é atribuída à constatação da ocorrência de “numerosos casos de tenossinovite ocupacional entre digitadores”. E prossegue o documento:

Foi constituída uma equipe composta de médicos e engenheiros da DRT/SP e de representantes sindicais que, por meio de fiscalizações a várias empresas, verificou as condições de trabalho e as repercussões sobre a saúde desses trabalhadores, utilizando a análise ergonômica do trabalho. Em todas as avaliações, foi constatada a presença de fatores que sabidamente contribuíam para o aparecimento das Lesões por Esforço Repetitivo – LER: o pagamento de prêmios de produção, a ausência de pausas, a prática de horas-extras e a dupla jornada de trabalho, dentre outros (BRASIL, 2002).

Conforme se verifica, fatores relacionados à duração da jornada, tais como a realização de horas extraordinárias e a ausência da concessão de pausas, são consensuais no que dizem respeito ao aparecimento de lesões por esforço repetitivo em atividades cujo risco ergonômico é destacado, tais como atividades de digitação e outras que requerem movimentos repetitivos.

A NR-17 do Ministério do Trabalho, em seu Anexo II, trata dos requisitos de organização do trabalho para operadores de telemarketing ou tele atendimento. Tendo em vista as condições em que esse tipo de trabalho é realizado, as queixas dos trabalhadores e as estatísticas de adoecimento nessa atividade, é nítida a preocupação da norma em abordar detalhadamente aspectos de duração do trabalho e concessão de pausas, visando a garantia da preservação da saúde dos empregados.

A norma assegura, por exemplo, que não deve haver trabalho em domingos e feriados, a menos que haja autorização do Ministério do Trabalho ou nas atividades previstas em lei. Assegura ainda que mesmo em tais casos excepcionais, deve ser garantido aos trabalhadores ao menos um repouso coincidente com o domingo por mês, independentemente de faltas, metas e produtividade. Prevê ainda que as escalas de fim de semana e feriados devem ser informadas aos trabalhadores com antecedência. Restringe os casos de prorrogação da jornada de trabalho e prevê a concessão de pausa, em caso dessa prorrogação. Determina o tempo máximo de 06 horas diárias e 36 horas semanais em atividade de tele atendimento, nesse tempo incluídas as pausas. Estabelece que a fruição de pausas e intervalos devem ser asseguradas para prevenção de sobrecarga psíquica, muscular estática de pescoço, ombros, dorso e membros superiores. Importante notar que todas as previsões citadas acima são normas que ao mesmo tempo regulamentam a duração do trabalho e são normas de saúde e segurança, visando à garantia da higidez física e mental do trabalhador.

Interessante a previsão trazida pelo item 5.4.5, de acordo com o qual devem ser garantidas pausas no trabalho imediatamente após a operação onde haja ocorrido ameaças, abuso verbal, agressões ou especial desgaste, para permitir ao operador recuperar-se e socializar conflitos e dificuldades com colegas, supervisores e profissionais capacitados. Com efeito, tais situações são comuns nesse tipo de função e causam desgaste psicológico, sendo garantida a pausa por norma de saúde e segurança do Ministério do Trabalho. Como se vê, não se mostra adequado à melhoria das condições de trabalho preconizada constitucionalmente que esse tipo de norma possa ser suprimida mediante negociação coletiva.

Diante de todo esse contexto, cabe ainda ressaltar que as doenças desenvolvidas em razão das condições em que o trabalho é realizado, ou das condições inerentes a ele, também se equiparam a acidente do trabalho para todos os efeitos, nos termos do artigo 20 da Lei de Planos e Benefícios da Previdência Social. De acordo com a referida legislação, doença profissional é a produzida ou desencadeada em razão do risco próprio do ramo da atividade, como por exemplo a LER – lesão por esforços repetitivos. Já a doença do trabalho é aquela “adquirida ou desencadeada em função de condições especiais em que o trabalho é realizado”, como por exemplo a perda da audição decorrente da exposição prolongada a níveis de ruído acima dos limites de tolerância permitidos.

Ao longo desta seção do artigo, abordamos casos de categorias de trabalhadores ou de tipos de atividades em que os aspectos temporais da organização do trabalho representam enorme influência na ocorrência de adoecimentos e acidentes. Com isso, fica perceptível que a proposição legislativa aqui estudada, contida no parágrafo único do art. 611-B da Consolidação das Leis do Trabalho, e que afirma o oposto, não possui correspondência com a realidade fática, constituindo medida legal de cunho fundamentalmente político, no sentido de permitir a flexibilização de normas que efetivamente dizem respeito à saúde e segurança do trabalho por meio de negociação coletiva.

 

§ CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Ao longo do presente trabalho procuramos demonstrar a intrínseca relação existente entre a organização temporal do trabalho, incluindo nessa temática aspectos de duração da jornada e concessão de intervalos e pausas para descanso, e seus impactos sobre a higidez física e mental dos trabalhadores.

Tal relação foi estabelecida com base no estudo de diversas normas técnicas e documentos afins, os quais demonstram, de forma incontestável, que as normas trabalhistas que tratam de temas como duração da jornada de trabalho, concessão de intervalos e de pausas, são normas que possuem uma interseção inafastável com a temática da higidez física e mental dos trabalhadores de variadas ocupações. A interseção entre esses dois aspectos deve ser conhecida e deve balizar a organização temporal do trabalho, de modo a preservar a saúde, bem jurídico indisponível em nosso ordenamento constitucional.

Estabelecida essa relação, mostra-se preocupante a nova previsão legal existente no direito brasileiro, incluída pela reforma trabalhista de 2017, de que normas sobre duração do trabalho não dizem respeito a questões de saúde e segurança no trabalho para fins de negociações coletivas, dando a entender que os acordos e convenções coletivas poderiam estabelecer critérios mais gravosos de jornada, seja através de ampliação de jornada de trabalho, seja através da supressão de pausas e intervalos, sem que fossem levados em consideração os possíveis danos à saúde ou à segurança das categorias abrangidas pelos referidos instrumentos normativos.

Os acidentes de trabalho e as doenças do trabalho são um grande problema no Brasil. O país é um dos líderes no infeliz ranking de ocorrência de acidentes do trabalho, os quais causam enormes prejuízos à economia, às empresas, e sofrimento às pessoas e famílias. Pode-se citar, por exemplo, as despesas previdenciárias despendidas com os trabalhadores afastados de suas atividades por adoecimentos e acidentes, em um cenário em que o sistema previdenciário do país já atravessa uma crise em seu equilíbrio financeiro e atuarial.

Nesse contexto, entende-se como preocupante a flexibilização proporcionada pela reforma trabalhista, no sentido de ampliar o alcance das negociações coletivas, inclusive para dispor sobre normas que efetivamente tratam da saúde e da segurança no trabalho, desconsiderando os possíveis e significativos impactos que representam sobre a saúde dos trabalhadores. Essa possibilidade representa um caminho no sentido da precarização das condições de trabalho.

Conforme nos assevera respeitada doutrina nacional, as normas relativas à concessão de intervalos trabalhistas possuem caráter de normas de saúde pública, não podendo, portanto, serem suplantadas pela ação privada de indivíduos e grupos sociais. Deve-se considerar, no caso, a imperatividade de tais normas, a vedação a transações lesivas, e ainda a especial obrigatoriedade de que são imantadas as regras de saúde pública. Maurício Godinho Delgado nos lembra que a Constituição da República tem o aperfeiçoamento das condições de saúde e segurança laborais como um valor intransponível, e que as regras jurídicas que em vez de reduzirem os riscos, os aprofundam, tornam-se inválidas, ainda que emergidas da vontade coletiva dos agentes econômicos e profissionais envolvidos em sua elaboração.

Entendemos que a concepção acima exposta se encontra em consonância com os preceitos constitucionais de valorização da saúde e da vida humanas, significando que, em se tratando de proteção à higidez física e mental dos trabalhadores, os preceitos técnicos relativos aos limites temporais de exposição, bem como a definição da necessidade de concessão de intervalos e pausas, devam prevalecer sobre as normas negociadas em acordos e convenções coletivas.

Por fim, a proposição legal contida no parágrafo único do art. 611-B da Consolidação das Leis do Trabalho, e que assevera que as regras sobre duração do trabalho e concessão de intervalos não são consideradas como normas de saúde, higiene e segurança do trabalho para os fins de negociação coletiva, deve ser a exceção, devendo prevalecer sempre a norma mais benéfica à preservação da saúde dos trabalhadores e que melhor aponte no sentido da melhoria de sua condição social.

 

REFERÊNCIAS

 

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Informações adicionais e declarações dos autores

 

Declaração de conflito de interesses (conflict of interest declaration): os autores confirmam que não há conflitos de interesse na realização das pesquisas expostas e na redação deste artigo.

 

Declaração de autoria e especificação das contribuições (declaration of authorship): todas e somente as pessoas que atendem os requisitos de autoria deste artigo estão listadas como autores; todos os coautores se responsabilizam integralmente por este trabalho em sua totalidade.

 

Declaração de ineditismo e originalidade (declaration of originality): os autores asseguram que o texto aqui publicado não foi divulgado anteriormente em outro meio e que futura republicação somente se realizará com a indicação expressa da referência desta publicação original; também atestam que não há plágio de terceiros ou autoplágio.

 

Dados do processo editorial

· Recebido em: 07/04/2019

· Controle preliminar e verificação de plágio: 08/04/2019

· Avaliação 1: 29/04/2019

· Avaliação 2: 01/05/2019

· Decisão editorial preliminar: 01/05/2019

· Retorno rodada de correções: 07/05/2019

· Decisão editorial final: 07/05/2019

 

Equipe editorial envolvida

·  Editor-Chefe: FQP

·  Assistente-Editorial: MR

·  Revisores: 2

COMO CITAR ESTE ARTIGO

REIS, Jair Teixeira dos; PRADO, Antônio Zoti. A reforma trabalhista brasileira de 2017 e a desconsideração da duração do trabalho como norma relacionada à saúde dos trabalhadores. Revista de Direito da Faculdade Guanambi, Guanambi, v. 6, n. 01, e246, jan./jun. 2019. doi: https://doi.org/10.29293/rdfg.v6i01.246. Disponível em: http://revistas.faculdadeguanambi.edu.br/index.php/Revistadedireito/article/view/246



* Editor Responsável: Flávio Quinaud Pedron. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4259444603254002. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4804-2886.

[1] Doutorando em Direito Econômico pela Universidad Internacional Iberoamericana (UNINI). Professor do Mestrado Profissional em Gestão Pública na UFES. Mestre em Educação pela Universidad Internacional Iberoamericana. Especialista em Direito Tributário pelo IBET. Bacharel em Direito pela Unimontes. Auditor Fiscal do Trabalho no Espírito Santo. Lattes: http://lattes.cnpq.br/2871270093927513. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6706-9307.

[2] Pós-Graduado em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Estácio de Sá (UNESA). Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Auditor-Fiscal do Trabalho. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4631113626338135. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7199-7395.

[3] O projeto de lei foi proposto e apresentado pelo Presidente da República, Michel Temer, em 23 de dezembro de 2016 na Câmara dos Deputados.