OS TRIBUNAIS DE CONTAS À LUZ DA SEPARAÇÃO DE PODERES NO DIREITO BRASILEIRO: UM ESTUDO SOBRE A NATUREZA JURÍDICA DE SUAS DECISÕES

THE COURTS OF ACCOUNTS IN THE LIGHT OF THE SEPARATION OF POWERS IN BRAZILIAN LAW: A STUDY ON THE LEGAL NATURE OF ITS DECISIONS

 

 

Álisson José Maia Melo[1]

Centro Universitário 7 de Setembro (UNI7), Fortaleza, CE, Brasil.

[email protected]

 

Thaís Rodrigues Brito Aguiar[2]

Centro Universitário 7 de Setembro (UNI7), Fortaleza, CE, Brasil.

[email protected]

 

 

Resumo: O presente trabalho possui como objetivo realizar uma análise acerca da natureza jurídica das decisões dos Tribunais de Contas no Brasil. Utiliza-se de pesquisa teórica, com método dedutivo, e exploratória. Para tanto, em um primeiro momento, realiza-se um exame da visão doutrinária sobre a natureza jurídica dos Tribunais de Contas à luz da teoria da separação dos poderes. Posteriormente, é fundamental dar ênfase na comparação da tese do exercício da função jurisdicional com a tese da natureza administrativa, as principais existentes quanto à natureza jurídica dos julgados proferidos pelos Órgãos de Contas, retratando-se ainda, a instituição vinculada ao Princípio da Inafastabilidade da Tutela Jurisdicional e ao Sistema da Jurisdição Una. Por fim, com a delimitação estabelecida das naturezas jurídicas, torna-se possível compreender conflitos futuros quanto à possibilidade de revisão do mérito de suas decisões pelo Poder Judiciário. Ressalta-se a importância e a natureza jurídica sui generis do órgão, dotado de competências próprias, exclusivas e indelegáveis; e filia-se ao posicionamento do exercício de jurisdição pelas Cortes de Contas.

 

Palavras-chave: Tribunal de Contas; Separação de Poderes; função jurisdicional.

 

Abstract: This work aims to analyze the legal nature of the decisions of the Courts of Auditors in Brazil. Uses theoretical research with deductive method, and exploratory. To do so, at first, an examination of the doctrinal view on the legal nature of the Courts of Auditors in light of the theory of separation of powers. Next, it is essential to emphasize the comparison of the thesis from the exercise of the judicial function with the thesis of an administrative nature the main ones regarding the legal nature of the judgments given by the Audit Bodies, portraying more the institution linked to the Principle of Inafasability of Jurisdictional Tutelage and the System of One Jurisdiction. Finally, with the established delimitation of legal natures, it becomes possible to understand future conflicts regarding the possibility of reviewing the merits of its decisions by the Judiciary. The importance and the sui generis legal nature of the body, endowed with its own exclusive and non-delegable competences, is highlighted; and is affiliated to the positioning of the exercise of jurisdiction by the Court of Auditors.

 

Keywords: Court of Accounts; Separation of Powers; jurisdictional function.

 

1      INTRODUÇÃO

 

Os Tribunais de Contas, no contexto do ordenamento jurídico brasileiro, são considerados órgãos essenciais previstos constitucionalmente, com funções e competências definidas pela Carta Magna, e desempenham atribuições relevantes ao ordenamento jurídico brasileiro. Tais órgãos são incumbidos para, em auxílio aos Poderes Legislativos, no exercício do controle externo, realizar a fiscalização contábil, financeira e orçamentária da União e das entidades da Administração Direta e Indireta, encontrando disciplina legal nos artigos 70 a 75 da Constituição Federal. Pela análise constitucional e entendimento jurisprudencial dominante, sua atuação ocorre de modo independente e não subordinado ao Parlamento. Para Reis (2017, p. 204), o controle externo se exerce diretamente pelo Poder Legislativo e apenas indiretamente pelos Tribunais de Contas.

Em regra, o Poder Judiciário examina eventuais ações advindas de processos julgados pelo Tribunal de Contas, primordialmente no campo processual, relativo ao direito à defesa e ao contraditório, não adentrando na apreciação dos pontos de competência exclusiva da Corte de Contas. Ocorre que, em algumas demandas judiciais, desde as instâncias inferiores da Justiça até as mais altas Cortes, surgem decisões com o intuito de desconstituir julgados emanados pelas Cortes de Contas, afetando o seu mérito. Relevante, por conseguinte, é delimitar a natureza jurídica desses órgãos e de suas decisões.

Desta forma, afloram indagações quanto à existência de um sentido definitivo das manifestações das Cortes de Contas, se tais órgãos podem ser considerados como um Quarto Poder Estatal, entre outros. Em razão do exposto, busca-se atestar a importância dos Tribunais de Contas no ordenamento jurídico brasileiro atrelada à relevância de suas decisões, visto que a discussão que será retratada enseja consequências diversas que atingem a sociedade em suas demandas.

O artigo 71, inciso II, da Constituição Federal de 1988, dispõe sobre o julgamento dos Tribunais referente às contas de administradores e outros responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da Administração Direta e Indireta, bem como de contas daqueles que derem causa a situação de perda, extravio ou irregularidade resultante em prejuízo ao erário. É verificada uma circunstância prevista constitucionalmente de exercício da função judicante por essa instituição.

De tal forma, é possível indicar que os Tribunais de Contas podem exercer essa função; no entanto, o ponto principal a ser abordado é de que maneira suas decisões poderão ser caracterizadas, se serão frutos do exercício de uma função jurisdicional ou se possuem natureza meramente administrativa.

Além de serem abordados os divergentes entendimentos quanto ao aspecto funcional dos Tribunais de Contas, também será discutido o aspecto orgânico da instituição, sendo explanada sua natureza jurídica, aspecto que também é reprodutor de variadas ideologias. Essas discussões atingem diretamente o meio processual, sendo mecanismos embasadores da maneira como o Poder Judiciário vai poder realizar o controle das decisões proferidas pelas Cortes de Contas, assunto que traz consequências diversas que influenciam a sociedade, pois é referente a uma inserção na prática de um Poder sobre as deliberações de um órgão.

O objetivo geral deste trabalho é confrontar as teses quanto à natureza jurídica das Cortes de Contas e das decisões por elas emitidas, buscando identificar a teoria que melhor explica isso à luz da separação dos poderes.

A metodologia utilizada neste artigo é a pesquisa teórica, mediante procedimentos discursivos e argumentativos com o intuito de convencimento sobre a validade do ideal a ser proposto. Em relação aos fins e objetivos, tal pesquisa se classifica como exploratória, por buscar proporcionar maior familiaridade com determinado problema. O estudo também possui cunho descritivo, pois demanda descrever e explicar a situação retratada. Quanto aos procedimentos usados, a pesquisa é classificada como bibliográfica e documental.

Assim, inicialmente, retratam-se a teoria da separação dos poderes e a maneira como é constituída a natureza jurídica dos Tribunais de Contas em conformidade com esse princípio (seção 1). Posteriormente, são expostas duas teses quanto à natureza jurídica das decisões das Cortes de Contas, a primeira dissertando sobre a realização da função jurisdicional e a segunda indicando o caráter administrativo das decisões proferidas por estes órgãos, sendo explanados ainda, o princípio da inafastabilidade da tutela jurisdicional e o sistema da jurisdição una, ambos vinculados a esse tema (seção 2), com vistas a melhor elucidação da problemática existente neste trabalho.

 

2     OS TRIBUNAIS DE CONTAS À LUZ DA TEORIA DA SEPARAÇÃO DE PODERES: A NATUREZA JURÍDICA DAS CORTES DE CONTAS

 

A teoria da separação dos poderes surgiu com a intenção de enfraquecer a centralização e a concentração do poder estatal, sendo associada ao ideal de Estado Democrático de Direito. A ideologia liberal de Montesquieu não se originou com o intuito de multiplicar por três os poderes, mas de limitar a propagação da independência absoluta de um Poder. Segundo Falcão (2006, p. 237):

[...] a separação é um instrumento de limite e não de expansão de poderes, sejam eles quais forem, do Judiciário inclusive. O bem jurídico democrático prioritário a proteger não é a independência sem limites de qualquer poder, mas a liberdade da cidadania, que é afetada quando o conceito de independência do poder se absolutiza.

 

Locke (1994, p. 75), um dos precursores do liberalismo e contribuinte da doutrina da separação dos poderes, mesmo que ainda de modo pouco ordenado, já observava esta como algo essencial para a proteção da liberdade constitucional. O filósofo inglês fazia a distinção entre os Poderes Legislativo e Executivo, e reconhecia a existência de um terceiro Poder, o qual chamava de federativo. Este último Poder, apesar de distinto, estaria atrelado ao Executivo. O autor tende a considerar o Poder Judiciário como parte do Poder Executivo, mesclando os dois.

Essa ideologia incorporada na Constituição dos Estados Unidos, aprovada no fim do século XVIII, foi tida como uma das grandes inovações do referido documento. Inicialmente, no entanto, não foi abordada com tanta clareza por seus idealizadores, que distinguiam quanto à sua organização e ao seu sentido. Ao explanar sobre os poderes estatais, Locke (1994, p. 76) ordenava o Poder Legislativo como supremo em relação aos demais.

Montesquieu, em sua obra “O Espírito das Leis”, apresenta diversas críticas ao poder absoluto, despótico ou totalitário, explanando que este causa na natureza humana males que chegam a ser assustadores. O filósofo francês, ao tratar da separação dos poderes, afirmava, inicialmente, que no governo dos reis dos tempos heroicos os três poderes estavam mal distribuídos. Assim, para ele, os gregos desconheciam a distribuição de três poderes no governo de um, somente a imaginavam no governo de vários. Com efeito, Montesquieu (2000, p. 180) acreditava que Aristóteles não possuía uma ideia clara de monarquia, justamente por não conhecer essa maneira de distribuição dos três poderes.

O filósofo grego demonstrava cuidado com a delimitação de poder a uma só pessoa, apresentando objeções à monarquia absoluta. Segundo Aristóteles (1998, p. 257), “os que são semelhantes por natureza devem ter os mesmos direitos e a mesma dignidade; em virtude da sua própria natureza”. Apesar de não distribuir cada um dos poderes a órgãos independentes específicos, Aristóteles (1998, p. 325) distinguiu o corpo estatal em três partes, conforme disposto na sequência.

Uma dessas três partes relaciona-se com a deliberação sobre assuntos que dizem respeito à comunidade. A segunda é a que se refere às magistraturas (ou seja, por um lado, quais as magistraturas e sobre que assuntos devem ter autoridade; por outro, de que modo se deve proceder à sua eleição). A terceira parte é a que respeita ao exercício da justiça.

 

O filósofo retrocitado designou magistraturas, quais sejam: as magistraturas deliberativas, as magistraturas executivas e as magistraturas judiciais. Portanto, na Grécia Antiga, já era visionado esse sistema de separação de poderes, o qual foi se adequando aos pensamentos individuais de cada idealizador.

No Capítulo VI da obra “O Espírito das Leis”, destinado à Constituição da Inglaterra, Montesquieu (2000, p. 167-168) diferenciou os três tipos de poder, quais sejam, o poder legislativo, o poder executivo das coisas que dependem do direito das gentes e ainda o poder executivo das coisas que dependem do direito civil, os explicando da seguinte maneira:

Com o primeiro, o príncipe ou o magistrado cria leis por um tempo ou para sempre e corrige ou anula aquelas que foram feitas. Com o segundo, ele faz a paz ou a guerra, envia ou recebe embaixadas, instaura a segurança, previne invasões. Com o terceiro, ele castiga os crimes, ou julga as querelas entre os particulares. Chamaremos a este último poder de julgar e ao outro simplesmente poder executivo do Estado.

 

Assim, estariam previstos os três poderes, atualmente conhecidos como Legislativo, Executivo e Judiciário. Para Montesquieu (2000, p. 168) “tudo estaria perdido se o mesmo homem ou o mesmo corpo dos principais, ou dos nobres, ou do povo exercesse os três poderes”. Esta situação ensejaria o despotismo, conforme ocorreu na Turquia, e foi exemplificado pelo filósofo, por apresentar essa característica de acúmulo de poderes ao sultão. Ainda Montesquieu (2000, p. 172), já antecipando a técnica dos checks and balances, ou sistema de freios e contrapesos, distinguiu duas faculdades promovedoras do equilíbrio entre os poderes, quais sejam: a faculdade de estatuir (faculté de statuer) e a faculdade de impedir (faculté d’empêcher). A primeira seria o direito de determinar por si mesmo, ou corrigir algo determinado por outro. Já a segunda, seria o direito de anular alguma ação tomada por outrem.

Pelo fato de restringir a função desempenhada pelo Poder Judiciário, o autor não atribuía a este qualquer das faculdades, sendo a aplicação delas uma possibilidade de controle recíproco entre os Poderes Legislativo e Executivo, de modo que o primeiro examinaria a maneira como estariam sendo executadas as leis que elaborou, e o segundo impediria iniciativas que tornariam o Legislativo um Poder despótico.

Na perspectiva de Bonavides (2000, p. 178), o princípio da separação de poderes também foi abordado pelo filósofo alemão Kant, o qual reproduziu divisão em conformidade com a disposta por Montesquieu, afirmando que “a trias política de Kant reproduz a de Montesquieu: poder legislativo soberano (potestas legislatoria), poder executivo (potestas rectoria) e poder judiciário (potestas iudiciaria)”. O Legislativo seria a proposição maior de um silogismo do ordenamento estatal.

Na obra “O Federalista”, em capítulo destinado ao exame e explicação do princípio da separação dos poderes, Hamilton, Madison e Jay (2003, p. 298) reafirmam a importância desse ideal, e relatam a forma como esta teoria estava disciplinada nas constituições dos Estados americanos, nas quais os três poderes não estavam inteiramente distintos e separados. Explanam que foi gerado posicionamento quanto à infração daquela teoria na aplicação de Constituição, quando observada qualquer acumulação de poderes, o que deveria provocar a rejeição do texto político. Discordando dessa premissa, eles acreditam que tal argumentação foi realizada sem fundamento.

Entendem Hamilton, Madison e Jay (2003, p. 301) que a doutrina de Montesquieu tinha o propósito de que um Poder não realizasse as funções de outro de maneira total, mas que a mistura parcial deles era possível em alguns casos, por exemplo, no poder de veto pelo magistrado executivo de decisões do corpo legislativo.

Norberto Bobbio, importante filósofo italiano, analisou Montesquieu e consequentemente a teoria da separação dos poderes. O escritor retratou que das ideologias explanadas pelo autor de “O Espírito das Leis” esta foi a que teve maior projeção, sendo aplicada nas constituições escritas, norte-americana de 1776 e francesa de 1791. Inicialmente, no entanto, Bobbio dispôs sobre a visão de Hobbes em relação a tal assunto. Ao fazer uma abordagem sobre os pensamentos de Hobbes, Bobbio (1980, p. 114) assinala que as críticas efetuadas por aquele ao governo misto também seriam à separação de poderes.

Segundo seu entendimento, na separação de poderes cada uma das três funções do Estado seria preenchida por uma parcela da sociedade, surgindo uma problematização quando se verifica que a divisão de poderes, segundo alguns teóricos, como Locke, reduz a apenas duas funções fundamentais do Estado. No Capítulo X da obra “A Teoria das Formas de Governo”, específico sobre Montesquieu, Bobbio (1980, p. 136) dispõe que a teoria da separação dos poderes “pode ser considerada como a interpretação moderna da teoria clássica do governo misto”. Ocorreria, portanto, uma inspiração no governo misto e no governo moderado de Montesquieu, objetivando proporcionar um equilíbrio entre os poderes, de modo a não gerar a concentração deles em uma só pessoa.

Assim, para Bobbio (1980, p. 137), a teoria da separação dos poderes teria sido a maneira encontrada pelo constitucionalismo moderno para frear o perigo recorrente representado pelo despotismo. Ao fazer uma análise sobre o pensamento de Hegel em relação a essa teoria, o jurista italiano acentua que aquele aceitava a divisão dos poderes, mas objetivando a liberdade pública. De acordo com Bobbio (1980, p. 160-161), Hegel priorizava o ideal unitário do Estado, a unidade política, e, portanto, para ele, a teoria teria outro significado, qual seja, de gerar a organização estatal, e não uma autonomia absoluta dos poderes. O Poder Judiciário não aparecia na divisão, por ser considerado uma “atividade administrativa diretamente funcional”, e não um Poder constitucional.

Esta teoria foi discutida e defendida por vários autores, das mais diversas nacionalidades, que a moldavam de acordo com perspectivas pessoais. Dessa maneira, em seu sentido classicamente consagrado nas constituições modernas – sob inspiração do modelo americano –ter-se-ia a divisão de três poderes, um Legislativo, um Executivo e um Judiciário, harmônicos e independentes entre si, nos mesmos termos implementados no artigo 2º da atual Constituição Federal Brasileira.

O Brasil aderiu ao modelo de separação de poderes com explicitação formal. Esse ideal possui a abrangência na atual Constituição Brasileira de cláusula pétrea. Assim, de acordo com o artigo 60, § 4º, inciso III, da Constituição, a separação dos poderes está no rol de assuntos que, se não estão proibidos de ser alterados, devam ser alterados com bastante denodo, sendo uma limitação material ao poder de reforma de uma Constituição.

A configuração clássica e bem definida da separação das funções do Poder se mostrou inicialmente bastante útil, mas, com o surgimento de desafios e novos parâmetros, foi necessária uma evolução do pensamento em relação ao exercício do Poder. Uma parte da doutrina defendeu a posição de que a teoria da separação dos poderes deveria ser renovada, conforme dispõe Mascarenhas (2011, p. 88):

A necessidade premente, no entanto, é que os direitos fundamentais sejam garantidos. Ao existirem agressões a esse rol mínimo de direitos, mesmo que por omissões ou ações tomadas nas esferas político-administrativas do Estado, deve ser facultado ao cidadão um mecanismo de reversão. Para isso é preciso que ocorra a flexibilização da separação dos poderes para que, na medida da individualidade pessoal, cada um possa buscar e receber, efetiva e eficazmente, uma prestação judicial de qualidade e nos limites da esfera juridicamente protegida do ser humano.

 

Com o surgimento do Estado Social e o progresso democrático contemporâneo, os direitos humanos fundamentais foram valorizados, assim como o notório princípio da proteção à dignidade da pessoa humana. Como leciona Bonavides (2000, p. 186):

Desde porém que se desfez a ameaça de volver o Estado ao absolutismo da realeza e a valoração política passou do plano individualista ao plano social, cessaram as razões de sustentar, em termos absolutos, um princípio que logicamente paralisava a ação do poder estatal e criara consideráveis contra-sensos na vida de instituições que se renovam e não podem conter-se, senão contrafeitas, nos estreitíssimos lindes de uma técnica já obsoleta e ultrapassada.

 

Na prática, observam-se modos de equilíbrio e de interferência de uns poderes nos outros. O mecanismo do veto, por exemplo, é a atuação do Executivo no âmbito Legislativo. O processo de impeachment – tecnicamente, o julgamento do Presidente da República por crime de responsabilidade –, é uma reprodução do controle parlamentar sobre o Poder Executivo. O indulto é a modalidade de participação do Executivo em área competente ao Poder Judiciário.

É importante frisar que, apesar de a teoria da separação dos poderes ter essa denominação, de acordo com o artigo 1º da Constituição Federal, reitera-se que o poder político, verdadeira alavanca legitimadora do Estado, é uno e indivisível, em que seu titular é o povo, o qual é tripartido para o melhor desenvolvimento das funções estatais. Segundo Guerra e Paula (2012, p. 67):

Na verdade, o poder do Estado é uno, e, portanto, não se deve falar em separação de poderes, mas sim em separação ou distribuições de funções do poder uno, a cada órgão ou complexo de órgão corresponde uma função estatal materialmente definida. Nesse diapasão, não há, no Estado contemporâneo, nenhum inconveniente em reconhecer outras realidades que se apresentam como centros de poder e que constitucionalmente exercem parcela da soberania estatal na esfera das finanças públicas.

 

Assim, pode-se observar que, como melhor maneira de organização do Estado, foram divididas suas atividades entre órgãos, de acordo com sua finalidade. Observou, ainda, Meirelles (2016, p. 65), que Montesquieu nunca retratou em sua obra “O Espírito das Leis”, que existiria uma divisão ou separação de poderes, sendo deturpado seu pensamento por seguidores dele, que dispuseram um grau de incomunicabilidade entre os poderes. O que haveria sido explanado pelo filósofo seria o equilíbrio na distribuição entre os órgãos das funções estatais.

Ademais, no ordenamento jurídico brasileiro, até a alegação da separação das funções em legislativa, executiva e judiciária no lugar de separação dos poderes, não pode ser tida como absoluta, nem deve ser restrita a respectivos poderes, visto que, por exemplo, o Poder Executivo exerce função legislativa através da iniciativa de leis, conforme artigo 84, inciso III, da CF/88, e o Poder Judiciário exerce função legislativa mediante a imposição de sentença normativa em dissídio coletivo, nos moldes do artigo 114, § 2º, da Constituição Federal, entre outras atribuições constitucionais.

Ao explanar sobre a unidade e indivisibilidade do Poder, Bonavides (2000, p. 137-138) destaca que o poder do Estado, referente ao seu titular, é indivisível, somente ocorrendo a divisão quanto ao exercício desse poder. Deste modo, três tipos fundamentais são formados de maneira a acoplar as várias funções do Estado uno, distinguindo-se as funções legislativa, executiva e judiciária, exercidas por órgãos diversos, justamente com o intuito de evitar a concentração do exercício numa só entidade ou pessoa.

E perante este conflito conceitual entre esses poderes, ainda surgirá a discussão sobre a natureza jurídica dos Tribunais de Contas, e se tais órgãos seriam um Quarto Poder Estatal ou apenas uma instituição com autonomia para tratar sobre assuntos relativos às contas públicas. Deve-se buscar fundamentos positivos para identificar os atributos necessários a um órgão para ser entendido como um Poder. A partir do próprio art. 2º, é possível extrair duas características fundamentais de um Poder: a independência e a harmonia. Em outras palavras, identificando na própria Constituição elementos de forte autonomia institucional em relação aos demais Poderes clássicos, bem como a existência de controles recíprocos em relação aos mesmos Poderes, pode-se identificar uma instituição que funciona de maneira análoga a um Poder. O ideal renovado da separação dos poderes busca reproduzir maior eficiência do Estado. Ante o pluralismo político e social, tornou-se necessária a criação de órgãos capazes de suprir as novas atribuições estatais e garantir os direitos fundamentais, conforme Moreira Neto (2001, p. 5):

É por esse motivo que quaisquer institutos que representem um instrumento de proteção de direitos fundamentais constituem-se em avanços concretos no sentido da realização da democracia substantiva, como aquela que preserva a condição pluralista da sociedade e também do Estado.

 

Sendo assim, é possível conceber que existem outros entes relevantes dentro do corpo estrutural formador do Estado. O Poder estatal, apesar de uno, será distribuído por via de competências designadas a órgãos específicos que o exercerão de maneira exclusiva, compartilhada ou associada. Se antes eram tidas três funções como únicas, hoje se tem um “policentrismo institucional”, expressão adotada por Canotilho (1991, p. 711). Os órgãos componentes do Estado estarão caracterizados através de normas jurídicas, as quais poderão ser constitucionais ou infraconstitucionais. Para Moreira Neto (2001, p. 8), “será, porém, exclusivamente pela constitucionalização que em alguns deles se concentrarão certas específicas funções tidas como essenciais à existência do Estado”.

Os Tribunais de Contas são tidos como órgãos essenciais previstos constitucionalmente. Suas funções e competências são definidas pelo Texto Constitucional, e eles possuem atribuições relevantes à proteção dos direitos fundamentais. Em virtude do disposto, sugere-se um posicionamento quanto à possibilidade de estas instituições também serem consideradas Poderes em suas esferas federativas, pela sua autonomia estrutural e independência funcional.

Para Justen Filho (2014, p. 120), existem cinco poderes autônomos no Brasil. Segundo o autor, além dos três poderes formadores da teoria da separação, a Constituição Brasileira ainda previu o Ministério Público e o Tribunal de Contas, os quais não são subordinados aos demais. Conforme observa, apesar de não possuírem a denominação formal de Poder, apresentam todas as características formadoras de um. Para defender seu entendimento, explana o autor que ambos os órgãos possuem funções próprias, que, portanto, só podem ser exercitadas por eles mesmos; ademais, que apresentam organização própria e autônoma e que seus membros possuem garantias que asseguram sua independência ante os demais poderes, exercendo controle sobre estes.

Para Mello (1984, p. 136-137), o Tribunal de Contas poderia ser considerado como um Poder, no entanto, como o Texto Constitucional não o designou assim, é suficiente enquadrá-lo como um “conjunto orgânico perfeitamente autônomo”, o que garante a sua autonomia em relação aos demais.

Por uma questão histórica e tradicional, que remonta à criação moderna da repartição dos Poderes, essas instituições, apesar de sua enorme relevância, não foram alocadas como Poderes, sendo clara a disposição constitucional do artigo 2º da atual Constituição Federal brasileira, ao indicar como Poderes da União, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. Mesmo não sendo, porém, tido propriamente como um Poder, em sentido formal, com essa designação, o Tribunal de Contas possui autonomia para exercer suas atividades, a ele é assegurado orçamento próprio suficiente para realizá-las, as quais possuem relevância de igual modo que as decorrentes dos três poderes fiscalizados por ele, podendo ser caracterizado, assim, como um Poder em sentido material.

Para Mileski (2011, p. 245), “pode-se dizer que o Tribunal de Contas sem ser Poder ficou com o poder de fiscalizar o Poder”, advindo da sua independência e autonomia previstas constitucionalmente. A questão referente à natureza jurídica das Cortes de Contas não deve ser desprezada. Pelo contrário, ela é por demais relevante, sendo devido o concreto discernimento sobre o assunto. Ao dissertar sobre o Tribunal de Contas da União, dispõe Silva (2012, p. 13):

A respeito da natureza jurídica da Corte de Contas existem disputas ferrenhas entre os doutos. Com efeito, há a corrente daqueles que profligam ser a Corte de Contas da União um organismo do Poder Judiciário. Por outro lado, existe outra que a propugna como órgão do Poder Legislativo. E outra que a entende como função essencial do Estado, acobertada de regime misto ou híbrido aos órgãos jurisdicionais ou administrativos.

 

Ademais, tal órgão não está vinculado a nenhum dos poderes estatais, realizando uma função extremamente relevante, de maneira autônoma, assim como a desempenhada pelo Ministério Público. Portanto, teria esse organismo uma natureza sui generis, sendo único no seu gênero, e apresentando poderes e funções peculiares.

Apesar de prevalecer o entendimento na doutrina de independência dos Tribunais de Contas, algumas concepções o vinculam aos poderes estatais. A previsão constitucional como órgão auxiliar ao Poder Legislativo, a possibilidade de as deliberações das Cortes de Contas não serem acatadas pelo Legislativo – ainda que com quórum qualificado constitucionalmente exigido, como sói ocorrer nas câmaras municipais –, e a sua demarcação na Constituição atual no capítulo específico sobre o Poder Legislativo produzem algumas discussões. Para Castro (2000, p. 57), as Cortes de Contas examinariam a atuação dos três Poderes da República, sendo “da incumbência insubtraível do Tribunal de Contas fiscalizar o Executivo, o Judiciário e o próprio Legislativo, de cuja estrutura é integrante”. Carvalho Filho (2017, p. 1045) externa entendimento semelhante ao definir Tribunal de Contas como “órgão integrante do Congresso Nacional que tem a função constitucional de auxiliá-lo no controle financeiro externo da Administração Pública, como emana do artigo 71 da atual Constituição”.

No entanto, Mileski (2011, p. 245), inovando um pouco mais o entendimento, acredita que, apesar de organizadas como participantes do Poder Legislativo, tais Cortes possuem competências realizadas sobre os poderes, como, por exemplo, a fiscalização, fazendo com que não estejam subordinadas a qualquer deles.

É importante ressaltar que, quando o artigo 71 da CF/88 expressamente dispõe “com o auxílio do Tribunal de Contas da União” (BRASIL, 1988), é observado que esse órgão não foi caracterizado em momento algum como inerente ao Poder Legislativo, nem subordinado. O Tribunal de Contas agirá como um órgão auxiliar, apesar de não ser assim previsto de maneira explícita, mas não deve ser confundida a sua atividade com a sua natureza. Tal competência não faz com que ele seja componente ou dependente do Legislativo, é um órgão independente e seu trabalho dá assistência àquele Poder. Nunes (apud MARANHÃO, 1993, p. 267) já defendia o pensamento da Corte de Contas como externo aos três poderes, de modo que se posicionava entre eles, conforme disposto abaixo:

Se o instituto está entre os poderes é que a nenhum deles pertence propriamente, nem ao Judiciário, nem à administração como jurisdição subordinada, porque, já então, seria absurdo que pudesse fiscalizar-lhe os atos financeiros; nem mesmo ao Legislativo, com o qual mantém afinidades.

 

Os Tribunais de Contas, vigentes a sua autonomia e relevância, revelam-se como cruciais ao corpo estatal, de maneira que auxiliam a Federação, como um todo, e não propriamente a um Poder específico. Segundo Torres (2000, p. 358-359), o Tribunal de Contas, além de ser órgão auxiliar dos três poderes estatais, o é também “da comunidade e de seus órgãos de participação política”, explanando ainda o entendimento de Rui Barbosa no mesmo sentido, de que, apesar de grande parte da doutrina, brasileira e estrangeira, colocar a instituição como órgão auxiliar dos poderes, este auxilia a própria comunidade.

A função de exercer o controle financeiro e orçamentário em conjunto com o Legislativo não faz do Tribunal de Contas órgão integrante da estrutura deste Poder. Ademais, segundo o artigo 44 da atual Constituição Federal, “O Poder Legislativo é exercido pelo Congresso Nacional, que se compõe da Câmara dos Deputados e do Senado Federal.” (BRASIL, 1988). Logo, o Parlamento brasileiro não possui o Tribunal de Contas em sua composição. O ex-ministro do STF, Carlos Ayres Britto (2001, p. 2), distingue a função de julgamento do Legislativo em relação à exercida pelos Tribunais de Contas, conforme explana:

[...] os julgamentos legislativos se dão por um critério subjetivo de conveniência e oportunidade, critério, esse, que é forma discricionária de avaliar fatos e pessoas. Ao contrário, pois, dos julgamentos a cargo dos Tribunais de Contas, que só podem obedecer a parâmetros de ordem técnico-jurídica; isto é, parâmetros de subsunção de fatos e pessoas à objetividade das normas constitucionais e legais.

 

Portanto, as apreciações e modos de exercer a atividade são diferentes entre aquele Poder e as Cortes de Contas, pois estas exercem uma função com caráter mais técnico. Quanto à posição do Tribunal de Contas como órgão auxiliar do Legislativo, Fernandes (2016, p. 141) dispõe que esse auxílio é feito “exercendo uma função, não assessorando, nem se submetendo a qualquer dos poderes”. Medauar (1990, p. 124), atendo-se ao disposto expressamente no Texto Constitucional, explana que:

A Constituição Federal, em artigo algum, utiliza a expressão ‘órgão auxiliar’; dispõe que o controle externo do Congresso Nacional será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas; a sua função, portanto, é de exercer o controle financeiro e orçamentário da Administração em auxílio ao poder responsável, em última instância, por essa fiscalização.

 

Portanto, como sua função seria atuar em auxílio ao Legislativo, esse órgão é tido pela autora como uma “instituição estatal independente” dentro do ordenamento jurídico pátrio, apresentando esta uma crítica ao posicionamento que utiliza a expressão “órgão auxiliar” para diminuir a relevância da atividade desempenhada pelas Cortes de Contas. Por meio do julgamento do Mandado de Segurança nº 24.510-7/DF, pelo Plenário do STF, em 19 de novembro de 2003, com relatoria da Ministra Ellen Gracie, o então Ministro Carlos Ayres Britto (BRASIL, 2004) registrou no seu voto que:

Quando a Constituição diz caber ao Tribunal de Contas da União auxiliar o Congresso Nacional, no exercício da função de controle externo, não está dizendo ser ele mero órgão auxiliar, mas sim que o controle externo, a cargo do Congresso Nacional, não se fará senão com o auxílio do TCU, prestigiando a participação desse Tribunal, verdadeiramente tida pela Constituição como inafastável e imprescindível, sem daí se deduzir um vínculo de subalternidade hierárquica. Também não é correto, data venia, afirmar que o Tribunal de Contas, enquanto órgão meramente técnico, apenas emite parecer. (STF - MS 24510 / DF, Relator: Min. Ellen Gracie, j. 19/11/2003, Tribunal Pleno, DJ 19/03/2004)

 

Assim, a previsão constitucional não foi realizada com o intuito de reduzir a importância do papel desempenhado pelas Cortes de Contas, ou de inferiorizá-las em relação ao Legislativo, ao contrário, deixou claro ser sua função crucial ao desenvolvimento do controle externo. Para Mello (apud MOREIRA NETO 2001, p. 21), “ser órgão auxiliar não configura, por si só, a integração em um dado corpo orgânico [...] O Tribunal de Contas, em verdade, não é subordinado ao Poder Legislativo, nem está sob a tutela dele”. De fato, mesmo que tido como órgão auxiliar, isso não faz com que uma instituição seja inerente ao auxiliado, mas sinaliza nitidamente o caráter harmônico da relação entre as instituições.

Ademais, observando a estrutura política brasileira, e analisando a organização nos Estados e Municípios, os Tribunais de Contas dos Municípios, órgãos estaduais, não integram as Câmaras Municipais, não possuindo, portanto, coerência em enquadrar as Cortes de Contas no Legislativo.

Em contrapartida, o Supremo Tribunal Federal, ao se manifestar sobre o assunto, proferiu decisão declarando a inconstitucionalidade da expressão “órgão preposto do legislativo” inserida no artigo 2º da Lei nº 3.564, de 8 de junho de 1983, do Estado do Espírito Santo. Na Representação nº 1.179 ES (BRASIL, 1984), assim foi disposto:

Ora, o Tribunal de Contas não é preposto do Legislativo. É, como resulta do § 1º do art. 70 da Constituição da República, órgão auxiliar do Legislativo. A função que exerce recebe-a diretamente da Constituição, que lhe define as atribuições. Isto não quer dizer, porém, que o Tribunal de Contas, posto que autônomo no exercício de sua competência e relevante no sistema da fiscalização financeira e orçamentária, seja outro Poder no seio das instituições nacionais. (STF - Rp 1179 ES, Relator: Min. Alfredo Buzaid, j. 29/06/1984, Tribunal Pleno, DJ 17/08/1984).

 

De tal feito, o órgão judicial de mais alto patamar no Estado brasileiro indicava que o Tribunal de Contas é órgão auxiliar do Legislativo e que, nos ditames nacionais, não seria outro tipo de Poder, apesar de sua autonomia. Quanto ao Poder Judiciário, surge a discussão se as Cortes de Contas estariam em sua estrutura e composição, principalmente em virtude do disposto no artigo 71, inciso II, da Constituição Federal de 1988, que explana uma atribuição de julgamento ao referido órgão. Outro ponto que também é disposto está atrelado à noção de que esse órgão exerceria função jurisdicional.

Para alguns doutrinadores, baseando-se na teoria da separação dos poderes, a jurisdição seria função exercida primordialmente pelo Poder Judiciário e, em regra, somente diante de casos concretos de conflitos de interesses, por provocação dos interessados. Com o entendimento de que os Tribunais de Contas são órgãos de natureza administrativa, dispõe Mascarenhas (2011, p. 168):

Primeiro porque suas decisões não recebem o manto da coisa julgada judicial, haja vista que esta somente é possível, na ordem constitucional brasileira, se originada do judiciário; e, segundo, pelo fato de que seu trabalho não recebe o atributo da inafastabilidade (entendido sob a ótica da resolução de todos os litígios e conflitos) expresso no inciso XXXV do artigo 5º da Constituição Federal.

 

Isso reproduz a discussão sobre a coisa julgada, e tem embasamento intensivo quando vinculado ao sistema de jurisdição una, matéria que será retratada posteriormente.

Divergentemente, entendendo que as Cortes de Contas exercem função jurisdicional, Frederico Pardini (apud FERNANDES, 2016, p. 147) explana que o exercício da função jurisdicional pelas Cortes de Contas não faz com que estas sejam integrantes do Judiciário em virtude do conteúdo de tal atividade ser diferente entre os dois, conforme disposto no seguimento.

É claro que o conteúdo da jurisdição dos Tribunais do Poder Judiciário difere do conteúdo da jurisdição do Tribunal de Contas da União. O conteúdo da jurisdição do Tribunal de Contas, exercida com exclusividade, examina a legalidade, legitimidade e economicidade expressas pelos elementos e valores contidos na prestação ou na tomada de contas públicas; enquanto a jurisdição dos órgãos judicantes do Poder Judiciário, exercida, também, com exclusividade, examina a legalidade e, de certa forma, a moralidade relativas ao comportamento, direito e deveres das duas partes que compõe a relação processual.

 

De efeito, independentemente de realizar esta função ou não, isto não deve ser preponderante para enquadrar este instituto àquele Poder. O papel de julgamento não faz com que um órgão necessariamente seja inerente ao Poder Judiciário, pois em outros casos o constituinte concedeu a competência para julgar a órgão não integrante daquele Poder. Para exemplificar, pode-se observar os artigos 49, inciso IX; e 52, incisos I e II, da atual Constituição Federal. O primeiro reporta-se à competência exclusiva do Congresso Nacional para “julgar anualmente as contas prestadas pelo Presidente da República”. O segundo indica a competência privativa do Senado Federal para “processar e julgar o Presidente e o Vice-Presidente da República nos crimes de responsabilidade, bem como os Ministros de Estado [...] nos crimes da mesma natureza conexos com aqueles”, e ainda para “processar e julgar os Ministros do Supremo Tribunal Federal, [...] o Procurador-Geral da República e o Advogado-Geral da União nos crimes de responsabilidade” (BRASIL, 1988). Nesse sentido, poder-se-ia deduzir que as competências específicas de julgamento configurariam exercício de função atípica pela Corte de Contas.

Outro ponto a ser abordado é que, mediante a análise do texto constitucional em vigor, o art. 92 da atual Constituição, ao listar os órgãos do Poder Judiciário, não traz o Tribunal de Contas em seu rol, corroborando sua independência em relação a esse Poder. Nada obstante, existe uma aproximação do Tribunal de Contas ao Poder Judiciário no tocante às garantias institucionais conferidas aos cargos dessa instituição, pelo estabelecimento das mesmas garantias, prerrogativas e vantagens, nos moldes do artigo 73, § 3º, da Constituição. Para Mileski (2011, p. 243), o disposto no artigo 73 da CF/88, bem como a possibilidade de organização própria, elaboração de seu regimento, entre outras previstas no artigo 96 do Texto Constitucional, não são suficientes para incorporá-lo a este Poder, ao contrário, ressaltam suas características de órgão independente e autônomo no exercício de suas funções, as quais podem até ser semelhantes às realizadas por um Poder.

Ainda quanto à discussão sobre o exercício de função judicante das Cortes de Contas, Britto (2001, p. 7-8) contrário a este pensamento, indica que os julgamentos realizados pelos Tribunais de Contas são apenas algumas maneiras de realizar sua atividade de controle externo, existindo ainda muitas outras, diferentemente do Judiciário, que a realiza como função primordial. Para o autor, não existem litigantes, nem participam advogados necessariamente no julgamento próprio das Cortes, fazendo com que seja diferente do âmbito jurídico. É notório que os processos observados nos Tribunais de Contas são diversos dos judiciais, pois tratam assuntos da gestão pública, prestações de contas, concessão de aposentadorias e pensões, específicos, com matérias diferentes das observadas no Judiciário.

As designações “Tribunal” e “Ministro”, utilizadas para se referir a esses órgãos e alguns de seus membros, assim como utilizadas em órgãos do Poder Judiciário, remontam à relevância desta instituição e seu poder de dar a “palavra final” em matérias próprias de sua averiguação. Enquadrar tais membros como ministros é dar a prerrogativa para agirem como tais dentro dos limites previstos constitucionalmente.

Por fim, ainda existe uma parte da doutrina, com menor número de adeptos, que defende a vinculação do Tribunal de Contas ao Poder Executivo. É importante ressaltar que tal ideal encontra-se embasado de maneira errônea, pois os Tribunais de Contas não fazem parte da Administração Pública propriamente dita. O ministro ou conselheiro que preside o Tribunal de Contas atua como ordenador de despesas e administrador deste órgão, o qual deve prestar contas de sua gestão; os demais componentes trabalham como gestores públicos. Até Meirelles (2016, p. 899), no entanto, acredita que os Tribunais Administrativos são órgãos inerentes ao Poder Executivo, reconhece que os Tribunais de Contas possuem “posição singular na Administração”, com as competências especificamente previstas na Constituição.

Uma análise histórica da criação dos Tribunais de Contas no Brasil remete ao Decreto nº 966-A, de 7 de novembro de 1890, criando-se, a partir do Poder Executivo, o Tribunal de Contas do Brasil – somente com a Constituição republicana de 1891 é que a Corte agora com status constitucional, recebe uma atenção especial e posterior instalação (CORDEIRO NETO; AMORIM, 2014, p. 349). Todavia, não se pode ignorar que o próprio Poder Judiciário, no Brasil, também se desenvolve em sua gênese no próprio Poder Executivo, com o Tribunal da Relação na Bahia em 1609, cuja presidência estava a cargo do governador-geral do Brasil (SCHWARTZ, 2011).

O artigo 71, inciso IV, da Constituição Federal elucida que os atos praticados pelos três poderes serão fiscalizados pelas Cortes de Contas, vazado nos seguintes termos:

IV - realizar, por iniciativa própria, da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, de Comissão técnica ou de inquérito, inspeções e auditorias de natureza contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial, nas unidades administrativas dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, e demais entidades referidas no inciso II; [...]. (BRASIL, 1988)

 

Assim, ao exercerem sua atividade institucional em conformidade com as normas previstas constitucionalmente, é nítida a sua autonomia, inclusive para fiscalizar os poderes. As Cortes de Contas são, portanto, órgãos posicionados entre os Poderes, e que cooperam com estes em relação às suas atribuições. Segundo Maranhão (1990b, p. 99):

Na verdade, o Tribunal de Contas é um órgão independente, em relação aos três Poderes, mas de relevante contribuição, auxiliando-os no desempenho de suas atividades de governo, ou em suas específicas atribuições constitucionais e legais.

 

Por fim, é possível dizer que o Tribunal de Contas assessora os poderes estatais para o melhor exercício de suas funções, seja mediante o auxílio ao Legislativo no controle externo, ou apoio ao Executivo e Judiciário, no controle interno desempenhado por estes poderes e da legalidade. Na conclusão de Reis (2017, p. 208), o regime constitucional atribuído aos Tribunais de Contas instituiu um controle não só mais detalhado como também mais amplo.

Mais recentemente, todavia, o STF foi instado a se manifestar sobre a constitucionalidade de emenda constitucional que extinguiu o Tribunal de Contas dos Municípios do Estado do Ceará, incorporando-o ao respectivo Tribunal de Contas do Estado. Na ADI 5763/CE (com julgamento ainda pendente de publicação), a Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil alegava, entre outros aspectos, a ocorrência de violação da separação dos poderes, e vícios formais porque a iniciativa do projeto de emenda deveria ter sido apresentado por um dos Tribunais de Contas existentes. O entendimento veemente do STF, vai no sentido de que não procede o argumento de vício de iniciativa, já que se está falando de emenda à constituição, bem como os estados federados – o ente federativo, e não um de seus poderes – possuiriam a competência para desmembramento e para incorporação de Cortes de Contas específicas para a fiscalização dos municípios, mas desde que por emenda constitucional.

Conforme se pode concluir, as Cortes de Contas são abrangidas por peculiaridades que ressaltam a sua relevância ao ordenamento jurídico brasileiro. Com autonomia e independência exercem suas atividades de maneira única.

 

3     A NATUREZA JURÍDICA DAS DECISÕES DOS TRIBUNAIS DE CONTAS

 

Compreendida a complexidade e as nuances da posição institucional dos Tribunais de Contas, torna-se importante o exame quanto à natureza jurídica das decisões desta peculiar Corte. O ordenamento jurídico brasileiro, adotando a teoria da tripartição dos poderes, distribuiu as três tradicionais funções exercidas pelo Estado, entre as quais estão a legislativa, a executiva ou administrativa e a jurisdicional, cada qual com suas funções típicas. Analisando as deliberações dos Tribunais de Contas, em especial os julgamentos de contas, verificam-se algumas vertentes doutrinárias sobre o assunto. Corroborando o entendimento disposto por Justen Filho (2014, p. 1222), as funções desempenhadas por estes órgãos não têm natureza legislativa, conforme explana nos seguintes termos:

O Tribunal de Contas não é titular de competência para produzir normas jurídicas autônomas. A função primordial do Tribunal de Contas não é editar normas gerais e abstratas, destinadas a regular a conduta daqueles que administram recursos públicos. Ou seja, o Tribunal de Contas não é órgão dotado de poderes legiferantes.

 

Assim, criar normas não é uma característica primordial a ser realizada pelas Cortes de Contas, apesar das funções atípicas observadas, como em caso de consulta realizada pelo órgão. O exercício da fiscalização e o julgamento das contas são relevantes, e com isso surge a maior divergência, qual seja, se o exercício de suas funções é jurisdicional ou se possui mero caráter administrativo. Para enriquecer esse debate, faz-se necessária uma digressão prévia sobre a inafastabilidade da jurisdição e como o direito brasileiro estabelece o sistema de jurisdição una.

 

3.1             O princípio da inafastabilidade da tutela jurisdicional e o sistema da jurisdição una

 

Com fundamento no artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal de 1988, o princípio da inafastabilidade da tutela jurisdicional explana que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (BRASIL, 1988). Este direito fundamental destaca a relevância da função judicial no ordenamento jurídico brasileiro. Segundo Mascarenhas (2011, p. 102), a “condição da inafastabilidade, qual seja, de que o judiciário seja provocado (princípio da inércia) denota que a atuação jurisdicional depende da vontade e do interesse do jurisdicionado (direito de ação)”. Assim, distingue-se o Poder Judiciário perante os demais, por necessitar ser suscitado. A inafastabilidade, portanto, é para o jurisdicionado um mecanismo de defesa a fim de garantir que seus direitos sejam observados.

A ação jurisdicional, em busca do ideal democrático, não pode agir de modo a desvirtuar a independência advinda do princípio da separação dos poderes. Silva (2009, p. 131), denominando tal direito como princípio da proteção judiciária, dispõe que, partindo-se desse pilar de tripartição de poderes, são somadas prerrogativas aos juízes; entre elas, a da independência e da imparcialidade. O autor discorre sobre as garantias advindas deste direito fundamental da seguinte forma:

A primeira garantia que o texto revela é a de que cabe ao Poder Judiciário o monopólio da jurisdição, pois sequer se admite mais o contencioso administrativo, que estava previsto na Constituição revogada. A segunda garantia consiste no direito de invocar a atividade jurisdicional sempre que se tenha como lesado ou simplesmente ameaçado um direito, individual ou não, [...]. (SILVA, 2009, p. 132)

 

Assim, é esposado o entendimento de que a jurisdição é um procedimento somente realizado pelo Poder Judiciário, bem como que a atividade jurisdicional poderá ser demandada até quando o direito não foi lesado, mas ocorreu a ameaça de ser. Possuindo entendimento diverso, Fernandes (2016, p. 147-148) acredita que os Tribunais de Contas exercem função jurisdicional também, encontrando-se expressa na Constituição Federal, através da utilização do vocábulo “julgar”, disposto no artigo 71, inciso II, da CF/88, o qual não estaria no texto por “ignorância ou descuido”.

Insere-se, nesse contexto, o problema da revisão do mérito decisório. Para Cretella Júnior (1995, p. 448), o exame quanto à legalidade do ato administrativo pode ocorrer livremente, no entanto, “está proibido o Poder Judiciário de entrar na indagação do mérito, que fica totalmente fora do seu policiamento”. Assim, o controle judicial quanto à legalidade seria suscetível, no entanto, quanto ao mérito, não. Ocorre que, se baseando na premissa da proteção judiciária, foi observada uma tendência de ampliação do controle jurisdicional, o qual não analisaria somente o aspecto da legalidade formal, mas a motivação dos atos administrativos. Segundo Zymler (2015, p. 166), constituem-se “objeto de apreciação pelo Judiciário os motivos e os fins do ato administrativo, não como consectários da discricionariedade e mérito, mas sim como elementos integrantes da legalidade”.

Uma parte da doutrina acredita que as decisões das Cortes de Contas, desde que observada lesão ou ameaça de lesão a direito, poderiam ser sempre averiguadas por meio de ação judicial. Para Mascarenhas (2011, p. 109), por não haver nenhuma proibição constitucional quanto à possibilidade de o Poder Judiciário intervir nas deliberações dos Tribunais de Contas, “pode o gestor público recorrer ao judiciário para anular e buscar uma ordem para nova análise das contas”.

O ordenamento jurídico brasileiro, ao que tudo indica, adotou o sistema da jurisdição una, ou inglês, centralizada no Poder Judiciário, com previsão constitucional também no artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal de 1988. Segundo Fernandes (2016, p. 130), no entanto, já houve no País a tentativa de inclusão no ordenamento jurídico do sistema do contencioso de contas, mesmo que parcialmente, conforme observado no Projeto de Lei nº 175-1946, realizado com o intuito de reorganizar o Tribunal de Contas da União em face da Constituição de 1946.

Analisando o que consta no projeto, no Título II (Competência, Jurisdição, atribuições), Capítulo I (Competência e jurisdição), verifica-se no artigo 36, inciso II, do dispositivo, a jurisdição contenciosa exercida pelo Tribunal de Contas. No Capítulo II (Atribuições), Seção III (Jurisdição contenciosa), foram explanados o caráter e a força de sentença judicial das decisões definitivas proferidas pelo Tribunal de Contas quando funcionasse como Tribunal de Justiça, nos moldes do artigo 68 do dispositivo.

O sistema do contencioso administrativo ou sistema francês expõe a possibilidade de um órgão integrante da esfera administrativa, portanto externo ao Poder Judiciário, proferir determinada decisão a um caso concreto sem reapreciação do fato por aquele Poder. Assim, seria produzida a coisa julgada administrativa, formal e material. Fernandes (2016, p. 131), ao dispor sobre o assunto, assinala que o destinatário do artigo 5º, inciso XXXV, da Carta Magna de 1988, é o legislador infraconstitucional, e que, portanto, não é vedado à Constituição estabelecer o exercício da função jurisdicional a órgão não inerente ao Poder Judiciário, ou explanar que a determinada questão não seja cabível apreciação judicial.

A redução ou limitação ao exercício da revisão pelo Poder Judiciário adveio da Constituição e não da lei, como é proibido no dispositivo constitucional. Portanto, visto que artigos do Texto Constitucional ditam isso, é nítido que o princípio da inafastabilidade da tutela jurisdicional, pelo menos em sua dimensão que cuida da organização da jurisdição, não é absoluto. Meirelles (2016, p. 815-816) declara que na realidade é a preclusão, e não propriamente coisa julgada administrativa, a qual produziria efeitos no âmbito da própria Administração, mas não em relação ao Judiciário, conforme dispõe:

Essa imodificabilidade não é efeito da coisa julgada administrativa, mas é consequência da preclusão das vias de impugnação interna (recursos administrativos) dos atos decisórios da própria Administração. Exauridos os meios de impugnação administrativa, toma-se irretratável, administrativamente, a última decisão, mas nem por isso deixa de ser atacável pela via judicial.

 

Para Figueiredo (1995, p. 240), a prestação judicial deve ser realizada sempre que solicitada, de maneira que o Poder Judiciário pode rever o ato administrativo “até o limite que o próprio magistrado entenda ser seu campo de atuação”. Ante os diversos entendimentos da doutrina brasileira, seja quanto à existência da coisa julgada administrativa, mesmo que relativa, à sua inexistência ou à preclusão administrativa, é evidente que o Poder Judiciário pode realizar o controle de atos administrativos, mas inibido por limitações ao exercício desta atividade. Mas, a depender de como se compreende a decisão dos Tribunais de Contas, talvez haja maiores limitações à intervenção do Poder Judiciário.

Nesse sentido, cabe discutir sobre as teses que a enfrentam natureza jurídica das decisões das Cortes de Contas. Primeiramente, a que as tratam como de natureza judicial; posteriormente, a que as reputa como administrativa.

 

3.2            A tese do exercício da função jurisdicional pelos Tribunais de Contas

 

O reconhecimento do exercício da função jurisdicional pelas Cortes de Contas encontra suporte nas proposições de importantes doutrinadores do Direito brasileiro. Partindo-se da premissa de que o Brasil é adepto ao sistema de jurisdição única, Fagundes (2006, p. 170) observa que existem exceções ao monopólio jurisdicional do Poder Judiciário, e uma delas é referente ao “julgamento da regularidade das contas dos administradores e demais responsáveis por bens e valores públicos” previsto constitucionalmente. Para o autor, existe um exercício parcial da função judicante, realizado não por pretexto da utilização da palavra “julgamento”, mas pelo caráter definitivo da manifestação do Tribunal.

Assim, uma nova apreciação pelo Judiciário desqualificaria o pronunciamento feito pela Corte de Contas, sendo verificada a restrição da jurisdição realizada por aquele Poder. Fernandes (2016, p. 148), em notável apreciação acerca do tema, explana que:

[...] a análise das competências deve levar em conta o sentido técnico e próprio de cada um dos vocábulos empregados. Corolário dessa premissa, o Tribunal de Contas, como regra, não tem competência para dizer o direito no caso concreto, de modo definitivo, com força de coisa julgada; por exceção detém essa competência, na forma do art. 71, inc. II, da Constituição Federal.

 

Assim, a Corte de Contas, em previsão constitucional específica, possui competência privativa de julgamento, dizendo o direito aplicável ao caso concreto. Entre outros adeptos desta corrente doutrinária, Maranhão (1990a, p. 164), abordando o posicionamento do professor constitucionalista Luiz Pinto Ferreira, de que ainda no regime constitucional de 1891 o Tribunal de Contas já atuava como órgão judicante, explana ser necessário “não esquecer que a função jurisdicional do Estado não constitui monopólio do Poder Judiciário”. Para o autor, algumas atribuições de julgamento são previstas para órgãos externos ao Judiciário.

Ora, se se reconhece no artigo 5º, inciso XXXV, com a inafastabilidade da jurisdição, um princípio de jurisdição una, reforçado pelo artigo 92, com a integridade da estrutura do Poder Judiciário, é de se observar que, se haverá alguma exceção ao exercício da jurisdição, ela deverá ter assento na Constituição. Dessa forma, disposições constitucionais que estabelecem para outros Poderes e instituições (a exemplo dos Tribunais de Contas) a competência para julgamento e regra sobre jurisdição importam na identificação de exceções feitas pelo próprio poder constituinte à unidade da jurisdição. Não há, no texto constitucional, indícios de que se estaria tratando de significados diferentes para as mesmas palavras.

Outro grande doutrinador que adota essa posição é Miranda (1967, p. 250) que, analisando a inserção do Tribunal de Contas nas Constituições brasileiras, aborda que desde o texto constitucional de 1934 foi explanada a função de julgar a este órgão, sendo bis in idem o julgamento posterior pelo Poder Judiciário de contas que já haviam sido julgadas anteriormente. Portanto, esta função estava clara na Constituição, não sendo cabível entendimento diverso. Jappur (1977, p. 357) enfatiza que o exercício jurisdicional não é exclusivo do Poder Judiciário, desta maneira, foi criada uma jurisdição das contas, a ser realizada privativamente pelas Cortes de Contas.

Um dos pilares para este posicionamento foi Nunes (1943, p. 30), que também acreditava no exercício da função jurisdicional pelo Tribunal de Contas, conforme disposto abaixo:

A jurisdição de contas é o juízo constitucional de contas. A função é privativa do Tribunal instituído pela Constituição para julgar das contas dos responsáveis por dinheiros ou bens públicos. O judiciário não tem função no exame de tais contas, não tem autoridade para as rever, para apurar o alcance dos responsáveis, para os liberar. Essa função é “própria e privativa” do Tribunal de Contas.

 

Assim, por ser uma competência privativa, específica deste órgão, o Judiciário não teria, portanto, o condão de rever matéria que está fora do seu alcance, que foi designada constitucionalmente a órgão exclusivo. Leal (1960, p. 231) sustenta entendimento quanto à exclusividade de pronunciamento sobre as prestações de contas, ressaltando a “imutabilidade” das decisões por esta Corte, inclusive pelo Poder Judiciário, assentando-se no verbo “julgar”, utilizado nas Constituições de 1934 e 1937.

Conforme se pode notar, cada atribuição definida pela Constituição é de enorme relevância. A supremacia deste texto revela o quão importante são seus ditames para a formação de determinado posicionamento. Analisando as opiniões conflitantes, Feitosa Filho (1999, p. 84), auditor licenciado do Tribunal de Contas do Estado de Pernambuco, exprime posição própria, mas que confirma a função jurisdicional das Cortes de Contas. Explana o autor que:

Em suma, o Poder Judiciário não se sobrepõe ao Tribunal de Contas, nas matérias inerentes à sua razão de ser, tampouco as funções jurisdicionais de tão relevante órgão de controle externo se confundem com às do Judiciário. Ao contrário, complementam-se, convivendo harmonicamente dentro do nosso sistema jurídico-constitucional.

 

Assim, ressalta-se que o reconhecimento de jurisdição exercida pelo Tribunal realizador do controle externo não exclui aquela exercida pelo Judiciário. São situações previstas constitucionalmente que se adequam a instituições específicas. O intuito conclusivo sempre deve ser o melhor exercício da atividade estatal, e, para isso, as competências devem conviver de maneira harmônica.

Considerando-se essa tese, as decisões dos Tribunais de Contas no Brasil deveriam possuir um tratamento diferenciado caso enfrentadas pelo Poder Judiciário. Há que se cogitar, contudo, da existência de duas versões da tese. Na versão fraca, incluem-se nesse âmbito excepcional da jurisdição exercida pelo Poder Judiciário todas as decisões de mérito do Tribunal de contas; Isto é, salvo a apreciação de contas do chefe do Poder Executivo (artigo 71, inciso I), mediante pareceres não vinculantes ou parcialmente vinculantes, e outras hipóteses regimentais que se restrinjam à emissão de pareceres e opiniões consultivas, as demais decisões estariam abrangidas pelo manto jurisdicional. Na versão forte, por outro lado, com o propósito de reforçar a independência da jurisdição de contas pela restrição objetiva das competências, apega-se à literalidade dos dispositivos constitucionais para restringir o manto jurisdicional apenas para as situações de julgamento de contas (artigo 71, inciso II).

Levando a sério a versão forte, deve-se imputar ao julgamento das contas pelo Tribunal as mesmas restrições que o STF impõe, por exemplo, ao julgamento do Presidente da República por crime de responsabilidade, a cargo das duas casas do Congresso Nacional, inclusive com etapas em que não há acusado ou litigante. Nesse rol, incluem-se o argumento da intangibilidade dos atos interna corporis e a proibição de revisão de atos políticos, mas, por outro lado, a possibilidade de eventual revisão no que toca ao cumprimento dos parâmetros básicos de garantia do contraditório e da ampla defesa, bem como do devido processo legal procedimental.

Na versão forte da tese da natureza judicial, os demais atos das Cortes de Contas seriam compreendidos como atos administrativos. Em virtude disso, convém examinar mais a fundo a tese contrária à ora exposta, retratando as decisões dos Tribunais de Contas no Brasil, de um modo geral, como decisões administrativas.

 

3.3            A tese da natureza administrativa das decisões das Cortes de Contas

 

Exprimindo entendimento contrário quanto à caracterização das decisões proferidas pelos Tribunais de Contas como jurisdicionais, uma segunda corrente acredita que elas são meramente apreciações técnicas, compreendidas como atos administrativos de natureza especial. Silva (2005, p. 758-759) afirma que a participação do Tribunal de Contas, “órgão eminentemente técnico”, no controle externo, que é realizado por órgão político, qual seja o Congresso Nacional, as Assembleias Legislativas ou Câmaras Municipais, dependendo do âmbito em que se encontre, relativiza o teor político da atividade. Para o autor, o órgão não é jurisdicional, ademais, o julgamento de contas ou apreciação da legalidade de atos “é manifestamente atribuição de caráter técnico”. Existe também o entendimento de que o julgamento das contas realizado pelas Cortes de Contas teria natureza de laudo pericial. Para Fernandes (2016, p. 172-173), diferentemente da manifestação do perito, a qual é opinativa e pode ser rejeitada pelo Judiciário, a apreciação destes órgãos “em matéria de contas, é constitucionalmente denominada de julgamento”.

Ao discorrer sobre o assunto, Cavalcanti (1972, p. 8) acentua que o exame das contas realizado pelo Tribunal de Contas é uma “limitação ao controle judicial”, visto que o Judiciário não poderia realizar a revisão das contas, por tratar-se de questão de “matéria contábil”, na qual, via de regra, não implicaria lesão a direito individual. Assim, não verificada ilegalidade ou ofensa a direito nesta atividade, o exame judicial não seria cabível. Ao externar posição quanto à ausência de jurisdicionalidade das decisões proferidas pelas Cortes de Contas, Góis (2007, p. 135) explana que, apesar da relevância do papel desempenhado pelo Tribunal de Contas no âmbito político e da magnitude de suas funções, “não têm estas o atributo de jurisdicionalidade, uma vez que não envolvem julgamento de pessoas (partes), e não têm a presença do Estado-juiz (representante do Poder Judiciário)”. Assim, caberia somente ao Poder Judiciário exercer a jurisdição.

Gualazzi (1992, p. 186) define posicionamento contraposto à jurisdicionalidade dos julgamentos de contas realizados pelo Tribunal de Contas, abordando que a jurisdição, stricto sensu, é exclusiva do Poder Judiciário, e que, juridicamente, “não há como supor ou imaginar que o Tribunal de Contas seja órgão com natureza, substância, essência material intrínseca de órgão jurisdicional, judicante, cujas decisões produzam a coisa julgada, com definitividade”. Para ele, as decisões das Cortes de Contas não geram coisa julgada formal ou material, no máximo a coisa julgada administrativa, concluindo que “os Tribunais de Contas realizam parcela da jusintegração administrativa, jamais jurisdição” (GUALAZZI, 1992, p. 217). Entendendo que as decisões dos Tribunais de Contas não possuem coercibilidade, e que não vinculam a atuação do Poder Judiciário, Di Pietro (2017, p. 925) afirma que:

[...] embora o dispositivo fale em ‘julgar’ (inciso II do art. 71), não se trata de função jurisdicional, porque o Tribunal apenas examina as contas, tecnicamente, e não aprecia a responsabilidade do agente público, que é de competência exclusiva do Poder Judiciário; por isso se diz que o julgamento das contas é uma questão prévia, preliminar, de competência do Tribunal de Contas, que antecede o julgamento do responsável pelo Poder Judiciário; [...].

 

Com efeito, sempre seria possível a revisão judicial. Com entendimento similar, acreditando que nenhuma das atribuições do Tribunal de Contas é caracterizada como jurisdicional, Medauar (1990, p. 125) defende que qualquer decisão desta Corte, mesmo quando da apreciação das contas, pode ser objeto de reexame pelo Judiciário se considerada lesão a direito, estando ausente nas decisões da instituição “o caráter de definitividade ou imutabilidade dos efeitos inerente aos atos jurisdicionais”. Continuando seu posicionamento, Medauar (2011, p. 413) expõe em outra obra que “os vocábulos tribunal e julgar as contas, usados ao se tratar desse agente controlador, não implicam a natureza jurisdicional de suas funções”.

A interpretação e análise exclusivamente a partir do aspecto gramatical não é suficiente para formular o significado de uma norma constitucional; porém, deve-se observar que, ao instituir o Texto Constitucional, o constituinte busca atingir o sentido mais preciso em suas expressões. Para Cretella Júnior (2000, p. 125-126) a atividade dos Tribunais de Contas é sempre de natureza fiscalizadora, sem qualquer parcela de característica judicante. Entendendo que o verbo “julgar” foi utilizado em sentido diverso do tido no âmbito do Direito, o autor alega que o órgão não realiza atividade jurisdicional de nenhuma espécie, conforme disposto abaixo:

Não exerce o Tribunal de Contas nem jurisdição civil nem penal. Não julga litígios entre partes, nem pronuncia julgamentos sobre pessoas. Não decide. Não absolve nem condena. “Julga”, quer dizer, “aprecia”, fiscaliza “contas”, mas não profere julgamento de pessoas, condenando-as, impondo-lhes sanções penais.

 

Existem ainda adeptos a uma posição intermediária. Meirelles (2016, p. 900), por exemplo, acredita que o Tribunal de Contas da União exerce “atribuições jurisdicionais administrativas”, mesclando assim, as duas teses principais sobre a natureza jurídica destes órgãos. Mileski (2011, p. 252), em confluência similar de ideias, explana que as funções deste órgão possuem “caráter administrativo, mas com a qualificação do poder jurisdicional administrativo, que derivam de competência constitucional expressamente estabelecida”. Assim, não são revestidas completamente de natureza jurisdicional, nem são puramente administrativas, é o exercício de uma jurisdição administrativa.

Adotar um posicionamento extremo, apesar de majoritário, de que o Tribunal de Contas não exerce função jurisdicional, seria em alguma medida retirar a vinculatividade de suas deliberações e comprometer o seu papel e a sua existência no ordenamento jurídico brasileiro. Se qualquer decisão sua poderá ser revisada pelo Poder Judiciário, sem restrição alguma, a necessidade de funcionamento desses Tribunais passa a ficar comprometida, por ineficiência de gasto público. Aderir a tal entendimento, e acreditar que apreciar, fiscalizar e julgar, palavras utilizadas pelo texto constitucional para designar as competências deste órgão, referem-se à mesma coisa, é menosprezar o constituinte e frustrar a eficácia da atuação desta instituição tão relevante.

Quanto à tese da coisa julgada administrativa, é preciso explanar que essa expressão significa que determinada decisão não é mais retratável no âmbito da Administração, sendo esta parte da relação que será discutida. Para Di Pietro (2017, p. 918) “a função é parcial e, partindo do princípio de que ninguém é juiz e parte ao mesmo tempo, a decisão não se torna definitiva”, cabendo, assim, apreciação posterior pelo Poder Judiciário. Com relação ao exercício das funções pelo Tribunal de Contas, no entanto, verifica-se que isto ocorre de modo peculiar. Conforme foi explanado, o órgão possui independência funcional e autonomia, ditadas pela Constituição, devendo ser respeitado o princípio da força normativa da Carta Constitucional, dando-se máxima efetividade as suas normas. Estas características conferidas a estes órgãos e aos seus membros garantem a imparcialidade nos seus julgamentos, os quais são pronunciados com respeito à ampla defesa e ao contraditório.

De tal modo, analisando o fato de que o Tribunal de Contas profere determinadas decisões de natureza administrativa e outras de cunho jurisdicional, todas com valor coercitivo, podendo apresentar eficácia de título executivo, nos moldes do artigo 71, § 3º, do texto constitucional, verifica-se que a sua função de julgamento é revestida de atributos que garantem sua definitividade. Segundo dispõe acerca desta função destacada acima, Fernandes (2016, p. 164) afirma que:

Todas as manifestações das Cortes de Contas têm valor e força coercitiva, como já referido, mas apenas a inscrita no inc. II do art. 71 da Constituição Federal – ‘julgar as contas dos [...]’ - corresponde a um julgamento, merecendo, de todos os órgãos, o respeito, sendo, em tudo e por tudo, exatamente igual à manifestação do Poder Judiciário. 

 

Assim, é possível observar que as características procedimentais do contraditório, da ampla defesa, com citação formal, prazo para defesa, e possibilidade de audiência dos interessados, bem como a necessidade da presença do Ministério Público Especial que atua junto às Cortes de Contas, são semelhantes àquelas abrangidas pelo processo judicial, porém adequadas ao órgão específico.

A discussão sobre a natureza jurídica das decisões dos Tribunais de Contas não pode ser inócua, devendo produzir consequências práticas, em especial, o grau de efetividade do exercício do controle externo e o poder de revisão pelo Poder Judiciário. Com efeito, a partir da tese do caráter administrativo das Cortes de Contas, outras formas de restrição da atuação jurisdicional surgem. De uma maneira geral, as decisões tomadas pelos Tribunais de Contas seriam, partindo-se dessa tese geral, em sua grande maioria decisões com forte teor discricionário e, embora devidamente fundamentados em processos e motivada a decisão nos suportes fáticos e jurídicos existentes, há uma margem de deliberação – o mérito da decisão, ou seja, do ato administrativo – que estaria insindicável pelo Poder Judiciário. A este caberia fazer o controle da discricionariedade pelos aspectos relativos aos princípios constitucionais da Administração Pública e ao cumprimento dos direitos fundamentais dos cidadãos sujeitos à jurisdição do Tribunal de contas. Conclui-se que, ao se aproximarem as decisões dos Tribunais de Contas dos atos do Poder Executivo, a regra geral de atuação do Poder Judiciário inverte-se, devendo haver a revisão judicial sempre que se verificar a situação de abuso, excesso, omissão ou desvio de poder.

 

4     CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

A problemática da natureza jurídica das decisões das Cortes de Contas, debatida neste trabalho mostra-se de extrema relevância, tendo em vista o papel fundamental dessas instituições no ordenamento jurídico pátrio. Nesta pesquisa, verifica-se uma análise entre fundamentos dogmáticos divergentes, os quais foram abordados delimitadamente.

As Cortes de Contas brasileiras, em todas as suas tipificações, passaram por uma grande evolução no decorrer do tempo, mas sempre se portaram como instituições indispensáveis do Estado Democrático de Direito do Brasil. Conforme visto, o auxílio ao Poder Legislativo no desenvolvimento do controle externo não modifica sua caracterização como órgão estatal independente dentro do ordenamento jurídico pátrio. Ademais, a sua atribuição de julgamento ou o uso das expressões “Tribunal” e “Ministro” também não fazem com que esta instituição esteja vinculada ao Poder Judiciário. Esses órgãos são abrangidos por peculiaridades, competências próprias, exclusivas e indelegáveis, e possuem autonomia e independência no exercício de suas atividades de maneira excêntrica, apesar de não serem tidos como um Poder. Portanto, possuem natureza sui generis, sendo únicos no seu gênero.

Com a inovação da teoria da separação dos poderes, surgiram modalidades de equilíbrio e de interferência de uns Poderes nos demais, de maneira que o poder uno e indivisível, em que seu titular é o povo, é dividido para o melhor desenvolvimento das funções estatais. E com o pluralismo político e social tornou-se crucial a criação de órgãos capazes de suprir as novas atribuições estatais. Nesse sentido, o Tribunal de Contas, embora não seja Poder em sentido formal, dado que a Constituição Federal de 1988 não o designou assim, pode assim ser considerado em sentido material, pois é um órgão autônomo que não apenas fiscaliza os demais Poderes, como também submete-se a eles em alguma medida, seja na composição dos membros do Tribunal (repartida entre os Poderes Legislativo e Executivo), seja na revisão de suas decisões (repartida entre os Poderes Legislativo e Judiciário).

Cada competência prevista constitucionalmente pode significar uma maneira diferente de realizar uma função. Adotar o posicionamento de que a Corte de Contas não exerce função jurisdicional seria de certo modo retirar a vinculatividade de suas deliberações no ordenamento jurídico brasileiro. Ademais, seria uma maneira de menosprezar o constituinte e suas palavras dispostas no Texto Constitucional. Fiscalizar, apreciar, julgar, cada palavra tem um significado diferente.

No exercício de suas atribuições, as Cortes de Contas possuem matérias específicas de competência previstas constitucionalmente, o que, de um ponto de vista hermenêutico, ensejam uma interpretação diferenciada, que considere os elementos políticos envolvidos na questão constitucional subjacente. Com base nisso, dois aspectos precisam ser considerados.

Primeiramente, quanto ao princípio da separação de poderes, deve-se retomar o intuito da origem do princípio. Sua finalidade é buscar descentralizar e desconcentrar o poder político, aumentando as formas de participação ativa do cidadão na estrutura do Estado. Noutra perspectiva, a divisão das funções também implica a especialização de atribuições e, com isso, o crescimento da eficiência institucional para a realização de tarefas repetidas. De uma forma ou de outra, reconhecer nos Tribunais de Contas verdadeiro “Poder” é uma interpretação mais que razoável da Constituição brasileira, seja porque favorece a divisão das instâncias de poder político, seja porque especializa, dentro do Estado brasileiro, a função de análise de orçamentos públicos, finanças públicas e boa gestão da coisa pública. Quando analisa a regularidade ou irregularidade no julgamento das contas, ou a possibilidade de registro ou negativa deste em caso de atos de pessoal, é realizado um exame técnico e próprio desta instituição, e esse é o mérito dos Tribunais de Contas, são os atos de gestão.

Em contrapartida, outros aspectos podem ser sopesados nessa análise. Nesse sentido, os arranjos voltados para os freios e contrapesos dos Tribunais de Contas no Brasil podem não ser os mais favoráveis para a determinação de sua independência. Em especial, as regras que estipulam a forma de nomeação de seus integrantes podem comprometer a autonomia institucional, a depender da quantidade de lacunas que o texto possa deixar. Da mesma forma, a falta de transparência quanto aos processos informais realizados internamente nas Cortes de Contas pode comprometer valores importantes que justificam as garantias institucionais de seus membros, notadamente, a imparcialidade, propósito último das prerrogativas da magistratura.

Em segundo lugar, deve-se reconhecer que o princípio da separação dos poderes, ainda que positivado no texto constitucional, não é algo estanque. Aliás, é por se tratar justamente de norma materialmente constitucional que o princípio da separação dos poderes está sujeito às vicissitudes do fazer política no Brasil e, portanto, ser a separação de poderes algo dinâmico e sujeito a evoluções, às vezes explícitas e formais, mas muitas vezes silenciosas e informais.

Considerando os argumentos expostos nas duas teses apresentadas, considera-se uma grande plausibilidade na tese do caráter jurisdicional das decisões dos Tribunais de Contas, mas somente em sua versão forte. Ou seja, quando as Cortes de Contas realizam o julgamento da regularidade das contas dos administradores e demais responsáveis por bens e valores públicos, elas exercem função jurisdicional, com características procedimentais do contraditório, da ampla defesa, do prazo para defesa, por exemplo, similares ao processo judicial, mas adequadas a sua organização. Com efeito, no julgamento de contas, há nitidamente uma exceção estabelecida ao sistema da unicidade da jurisdição, com a competência exclusiva dos Tribunais de Contas, apesar da possibilidade de controle de legalidade pelo Poder Judiciário, compreendido dessa forma como um mecanismo de freios e contrapesos.

Já no que concerne à uma situação difícil, a saber, na apreciação dos atos de registro, para que se mantenha uma linha de coerência, deve-se reputar tais decisões à esfera administrativa. Aliás, a majoritária doutrina administrativista inclui a decisão dos Tribunais de Contas como etapa do ato administrativo composto de aposentadoria do servidor público. Conquanto a competência destes órgãos seja mantida, e a decisão eventualmente tomada pelo Tribunal de Contas esteja sob o crivo de sua competência especializada, realizada por um corpo de profissionais tecnicamente preparados, pois os atos de aposentadoria são analisados também pelos parâmetros da legitimidade, da economicidade e da eficiência, não se deve escapar da sindicabilidade pelo Poder Judiciário. Tais parâmetros poderão ser considerados, em grande medida, como mérito, mas noutros aspectos como discricionariedade, passível de revisão judicial a partir, especialmente, do atendimento aos princípios constitucionais da Administração Pública e da proteção dos direitos fundamentais.

 

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Data de Submissão: 11/12/2018, Data de Aprovação: 04/02/2019

 

COMO CITAR ESTE ARTIGO

 

MELO, Álisson José Maia; AGUIAR, Thaís Rodrigues Brito. Os tribunais de conta à luz da separação de poderes no Direito brasileiro: um estudo sobre a natureza jurídica de suas decisões. Revista de Direito da Faculdade Guanambi, Guanambi, BA, v. 5, n. 2, p. 121-157, jul./dez. 2018. doi: https://doi.org/10.29293/rdfg.v5i2.229. Disponível em: http://revistas.faculdadeguanambi.edu.br/index.php/Revistadedireito/article/view/229. Acesso em: dia mês. Ano.



[1] Doutor em Direito pela Universidade Federal do Ceará (2018). Mestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará (2013). Especialista em Direito Tributário pelo Centro Universitário 7 de Setembro (2012). Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará (2007). Professor de Direito do Centro Universitário 7 de Setembro (UNI7). Lattes: http://lattes.cnpq.br/5811851978196829. ORCID: http://orcid.org/0000-0001-8453-8884.

[2] Graduada em Direito pelo Centro Universitário 7 de Setembro (UNI7), com estágio no Tribunal de Contas do Estado do Ceará (TCE/CE). Lattes: http://lattes.cnpq.br/3081814671313248. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3869-4311.