INTERCULTURALIDADE E PAZ PERPÉTUA: DIÁLOGOS ENTRE KANT E A PERSPECTIVA DOS DIREITOS HUMANOS NO CENÁRIO MULTICULTURAL

INTERCULTURALITY AND PERPETUAL PEACE: DIALOGUES BETWEEN KANT AND THE PERSPECTIVE OF HUMAN RIGHTS IN THE MULTICULTURAL SCENARIO

 

 

Adriano Rodrigues Remor[1]

Universidade Estácio de Sá (UNESA), Rio de Janeiro, RJ, Brasil

[email protected]

 

 

Resumo: A proposta de paz perpétua escrita por Kant depende do cumprimento de artigos que dirimem conflitos entre indivíduos e Estados nacionais, dentre eles: a necessidade de se estabelecer uma ordem cosmopolita de hospitalidade e respeito ao próximo. A presente pesquisa reside na inquietação kantiana a respeito do direito cosmopolita entre os indivíduos no cenário multicultural sob a ótica da interculturalidade. A problemática reside em estabelecer uma ligação entre a inquietação kantiana e a complexidade da efetividade dos direitos humanos diante das diferentes culturas. Os dados coletados a partir da pesquisa bibliográfica demonstram que a atual ideia de direitos humanos necessita de uma ressignificação e superação de antigos conflitos teóricos que impedem a ressignificação da dignidade humana e, por consequência, não permitem a inserção destes direitos em distintas culturas.

 

Palavras-chave: Paz Perpétua. Interculturalidade. Direitos Humanos.

 

Abstract: Kant´s perpetual peace lies in the fulfillment of articles that resolve conflicts between individuals and countries, among them: the need to establish a cosmopolitan order of hospitality and respect for others. The present paper resides in the Kantian restlessness regarding the cosmopolitan right between the individuals in the multicultural context from the point of view of interculturality. The main investigation lies in establishing a connection between Kantian unrest and the complexity of the effectiveness of human rights in the face of different cultures. The bibliographic research show that the current idea of ​​human rights requires a re-signification and the overcoming of previous theoretical conflicts that prevent the re-signification of human dignity and, consequently, does not allow the insertion of these rights in different cultures.

 

Keywords: Perpetual Peace. Interculturality. Human Rights.

 

1      INTRODUÇÃO

 

Na obra “A Paz Perpétua” Immanuel Kant, visa estabelecer artigos preliminares (transitórios) e definitivos para a construção de relações entre Estados e indivíduos na sociedade internacional, o propósito do autor é estabelecer condições para impedir o início de conflitos armados e, desta forma, atingir a paz.

Dentre os artigos descritos pelo autor está a necessidade de estabelecimento de um direito cosmopolita, fundamentado na ideia de hospitalidade entre os indivíduos para o respeito das diferenças. A partir disto, a pesquisa apresenta uma conexão entre a premissa da hospitalidade entre povos diferentes, proposta no terceiro artigo definitivo da paz perpétua kantiana e a perspectiva da análise intercultural dos direitos humanos.

A problematização reside na tensão entre a pretensa universalidade dos direitos humanos e a perpetuação destes direitos nas diferentes culturas, sendo assim, a pesquisa busca esclarecer se a construção de um direito cosmopolita, com fundamento na hospitalidade e integração entre distintos povos, deve ser compreendida a partir da atual discussão dos direitos humanos no cenário intercultural.

Para tanto, a pesquisa se divide em três seções: na primeira, propõe uma breve análise da obra “A Paz Perpétua” escrita por Immanuel Kant e a sistematização dos artigos preliminares e definitivos para se chegar ao cenário de paz.

Na segunda seção é proposto o esclarecimento dos conceitos de multiculturalismo e interculturalismo, fenômenos inerentes à modernidade e ao estreitamento das relações sociais pautadas nas diferenças culturais e no reconhecimento do “outro”. A terceira seção, trata a questão dos direitos humanos no cenário intercultural na busca da superação entre universalistas e relativistas e na redefinição dos fundamentos da dignidade da pessoa humana.

Quanto ao método, a pesquisa desenvolveu-se a partir do método hipotético dedutivo, com abordagem qualitativa (FARIAS FILHO, 2018, p. 56-57), exploratória em relação aos objetivos e bibliográfica no tocante aos procedimentos técnicos (MARCONI e LAKATOS, 2017).

Os resultados indicam que a inquietação kantiana a respeito de um direito cosmopolita, pautado na hospitalidade, como requisito necessário para atingir a paz, guarda semelhanças em relação à atual preocupação do respeito aos direitos humanos no cenário multicultural, portanto, o ideário kantiano, em conjunto com as hipóteses necessárias para o diálogo intercultural, podem auxiliar no processo de ressignificação da atual política de direitos humanos.

 

2     A PAZ PERPÉTUA DE IMMANUEL KANT

 

Em 1795 Immanuel Kant publicou o livro “A Paz Perpétua”[2], uma obra crítica em relação aos “falsamente chamados Tratados de Paz” com o objetivo de traçar premissas práticas para se chegar a um cenário de paz entre os Estados (KANT, 2008). A obra, dividida em duas seções, dois suplementos e dois apêndices, discorre de forma sistemática e organizada a respeito destes princípios de paz. O objeto deste capítulo reside em uma breve análise das duas primeiras seções, sob o enfoque da questão dos direitos cosmopolitas.

Na primeira seção da obra, o autor discorre sobre os chamados “Artigos preliminares para a paz perpétua entre os Estados”, a primeira das seis máximas descritas na seção inicial tem o objetivo de estabelecer condições negativas para alcançar a paz perpétua, nesses artigos, Kant formula seus princípios para a coexistência entre Estados e pessoas, no Direito Internacional. (PINHEIRO, 2009).

O primeiro dos artigos apresentados nesta seção é: “Não deve considerar-se como válido nenhum tratado de paz que se tenha feito com a reserva secreta de elementos para uma guerra futura.” (KANT, 2008, p. 4).  A respeito desta primeira colocação, Kant (2008) comenta que um acordo de paz, utilizado como artifício para postergar um conflito eminente, não tem validade em relação ao seu objetivo principal, alcançar a paz que significa o fim eterno de todo tipo de conflito.

A segunda premissa levantada por Kant diz respeito ao modo de aquisição de Estados independentes, para o autor: “Nenhum Estado independente (grande ou pequeno, aqui tanto faz) poderá ser adquirido por outro mediante herança, troca, compra ou doação” (KANT, 2008, p. 5). Nesta colocação, Kant remonta à finalidade do Estado, constituído por uma sociedade de homens e legitimado para regulamentar as ações destes, logo, não é um patrimônio passível de escambos ou relações de caráter comercial.

Nos termos do terceiro artigo preliminar: “Os exércitos permanentes (miles perpetuus) devem, com o tempo, de todo desaparecer” (KANT, 2008, p. 6), este artigo tem fundamento na finalidade da formação de um exército permanente que é o resguardo do Estado em caso de guerra. Se o objetivo da paz é cessar permanentemente os conflitos, a criação de um exército é antagônica à ideia de paz perpétua. (KANT, 2008).

O Quarto artigo preliminar reside na seguinte ideia: “Não se devem emitir dívidas públicas em relação aos assuntos de política exterior”. Este artigo, com relação intrínseca ao anterior, impõe o não endividamento estatal com a finalidade de iniciar ou manter uma guerra. (KANT, 2008).

Em relação ao quinto artigo preliminar, Kant revela preocupação com a estabilidade das instituições e das Constituições de Estados vizinhos: “Nenhum Estado se deve imiscuir pela força na constituição e no governo de outro Estado”. Ao traçar essa premissa, Kant deixa clara a preocupação com a autonomia e independência dos Estados, inclusive, na opinião do autor, mesmo em tempos de crise e lutas internas, Estados estrangeiros não devem insurgir dentro de outro. O derradeiro artigo da seção preliminar diz que:

 Nenhum Estado em guerra com outro deve permitir tais hostilidades que tornem impossível a confiança mútua na paz futura, como, por exemplo, o emprego no outro Estado de assassinos (percussores), envenenadores (venefici), a ruptura da capitulação, a instigação à traição (perduellio), etc. (KANT, 2008, p. 8).

 

Este último artigo provisório trata da questão da existência de um mínimo moral/jurídico, mesmo em um cenário de guerra. Até então, os artigos elaborados visam o não início de um conflito, contudo, em termos práticos, “Kant não abandona a realidade e sabe que, mesmo injusta e ilegítima, a guerra pode existir.” (PINHEIRO, 2009). A preocupação de Kant, reside na manutenção de respeito mútuo entre os Estados, mesmo em tempos de guerra, para evitar resquícios futuros que levem a outro conflito.

Em Relação aos artigos definitivos, Kant (2008), apresenta-os em três premissas: 1) “A Constituição civil em cada Estado deve ser republicana”; 2) “O direito das gentes deve fundar-se numa federação de Estados livres”. 3) “O direito cosmopolita deve limitar-se às condições da hospitalidade universal”.

O primeiro artigo tem o propósito de estabelecer condições para a formação de uma Constituição, Carta que irá regular as instituições e a sociedade pertencentes a um Estado. Esta Constituição, deve pautar-se na liberdade dos indivíduos, na relação de subordinação entre estes indivíduos e o Estado e, por fim, na igualdade de todos perante a Lei, a partir disto, a Constituição terá o conteúdo do “contrato originário” resgatando as premissas básicas do direito. (KANT, 2008).

O segundo artigo definitivo propõe uma federação de Estados, ou seja, Kant (2008), partindo do princípio anterior, pede a união indissolúvel de diferentes Estados no estabelecimento de premissas jurídicas semelhantes, isto, servirá de pressuposto para estreitar laços e garantir a paz.

O terceiro artigo definitivo, central para desenvolvimento desta pesquisa, tem como título “O direito cosmopolita deve limitar-se às condições da hospitalidade universal”, revela a preocupação de Kant na formação de uma sociedade cosmopolita, ou seja, uma dimensão dos direitos dos cidadãos em escala global. “Aqui, ao mesmo tempo que permanece membro de seu Estado, o indivíduo é também membro de um Estado mundial, de uma sociedade cosmopolita” (PINHEIRO, 2009, p. 39).

Segundo Kant (2008), essa premissa de direito cosmopolita reside na hospitalidade, ou seja, se um estrangeiro visita outro Estado, estes devem ter relações diplomáticas e sociais suficientes para que o indivíduo seja tratado de forma acolhedora, ou seja, mesmo diante das diferentes sociedades do globo, esse último artigo visa traçar um mínimo de proteção a todos os indivíduos onde estiverem, ideia relacionada à questão dos direitos humanos.

A partir dessa integração hospitaleira e igualitária, os estrangeiros seriam componentes de uma sociedade que transpassa os Estados nacionais, isto é, uma sociedade internacional entre indivíduos que, em suas respectivas esferas privadas, buscam regras igualitárias e universais para a convivência a nível global.

 

3     MULTICULTURALISMO E INTERCULTURALISMO: ESCLARECENDO CONCEITOS

 

 

Cultura é elemento fundamental às sociedades humanas, pois, inclui “ideias, valores e normas tradicionais que são amplamente compartilhados em um grupo social”, deste modo, englobam preposições sobre crenças normativas: “matar é errado exceto quando autorizado pelo estado” e cognitivas como: “a terra é redonda” (CHASE, 2014). Ou seja, é um produto dos valores agregados e repassados por elementos de tradição, gozando, portanto, de certa mutabilidade.

A coexistência de diversos padrões culturais interagindo em uma sociedade, caracteriza o fenômeno chamado de multiculturalismo (SACCO, 2013). O cenário multicultural é imprevisível e pode dar lugar a formas de interação, dentre elas, a correta seria fomentar políticas de reconhecimento fundamentadas na “suposta relação entre reconhecimento e identidade, significando este último termo qualquer coisa como a maneira, como uma pessoa se define, como é humano” (TAYLOR, 1994).

Esta rede de reconhecimento das diferenças deve-se à interação de dois atores, “os iguais” que compartilham uma identidade cultural comum e o “outro” que foi excluído da identificação, portanto, a construção de uma identidade coletiva entre “iguais” necessariamente parte do reconhecimento do “outro” (SACCO, 2013). No entanto, para evitar distorções, a gênese desta relação de conhecimento e reconhecimento do “outro” deve ser cautelosa e igualitária, caso contrário, o produto desta relação desencadearia uma rede de desavenças prejudiciais à ordem social vigente. (TAYLOR, 1994).

Há relação intrínseca, entre a noção de cultura e identidade individual e coletiva, logo, pode-se definir substancialmente uma sociedade, dentro de um cenário multicultural, a partir de sua identidade (cultura) fundada na vinculação de práticas (linguísticas, religiosas, artísticas etc.), valores e ideais semelhantes. Deste modo, o reconhecimento do “outro” é um exercício de auto reconhecimento, logo, eventuais distorções sobre grupos distintos, também distorcem a própria percepção da identidade.

Os debates acerca do multiculturalismo ganharam força a partir do século XX, momento em que, em virtude da globalização, se colocou em evidência a diferença cultural em cenário mundial e a necessidade de confronto com o tema. (MEDEIROS, 2009).

Isto ocorre, porque a coexistência de múltiplas culturas, em um mesmo espaço social, pode levar o reconhecimento de forma colonizadora, com a subjugação de culturas menos difundidas e por consequência, “consagra a cultura ocidental dominante como uma espécie de metacultura que benevolamente concede alguns espaços a outras”. (FORNET-BETANCOURT, 2004, p. 6).

O multiculturalismo como política social, pode se converter em instrumento colonizador na dinâmica dos direitos humanos,         pois, neste panorama, a tentativa de imposição cosmopolita à ideia central dos direitos humanos no mundo globalizado (multicultural) fomenta uma universalização “de cima para baixo”, ou seja, tenderão ao localismo globalizado[3] e, por consequência a um inevitável choque civilizatório (SANTOS, 2001).

Estes possíveis conflitos podem ser dirimidos se as relações forem pautadas na ideia de interculturalidade, instrumento capaz de estabelecer uma comunicação hegemônica e igualitária entre culturas coexistentes, ao passo que a interculturalidade necessariamente fundamenta-se na comunicação e interação entre as culturas “buscando uma qualidade interativa das relações das culturas entre si e não uma mera coexistência fática entre distintas culturas em um mesmo espaço.” (FORNET-BETANCOURT, 2004).

Políticas multiculturalistas e interculturalistas partem da constatação quantitativa e social de culturas coexistentes em um mesmo espectro, a diferença reside no desenvolvimento das relações entre as diversas culturas. Ações voltadas na simples constatação do cenário multicultural podem levar à sobreposição de uma cultura mais hegemônica a outra menos difundida, por outro lado, o ideal interculturalista, depende do reconhecimento igualitário e do diálogo entre culturas, pressupondo uma relação de harmonia.

 

4     DIREITOS HUMANOS E INTERCULTURALIDADE

 

Na contemporaneidade, a abordagem em torno dos direitos humanos necessita de uma ressignificação do conteúdo destes, uma visão mais complexa que supera os textos escritos e os conceitos postos. Essa racionalidade não se opõe a práticas interculturais, nômades e híbridas. Logo, aporias entre as proposições universalistas e particularistas (relativistas) há tempos, impedem uma análise comprometida desta categoria de direitos (FLORES, 2004).

Nino (2011, p. 19) descreve os direitos humanos como uma das maiores invenções da humanidade e os considera uma “ferramenta indispensável para evitar o tipo catástrofe que com frequência ameaça a vida humana”. E, conforme mencionado, o conceito sofre com uma aporia entre concepções universalistas e relativistas.

A construção teórica em torno dos direitos humanos é marcada diretamente pela universalidade, pois vivem “sob a crença de que a condição de pessoa é o requisito único para a titularidade de direitos, considerando o ser humano como um ser essencialmente moral, dotado de unicidade existencial e dignidade” (PIOVESAN, 2007). Essa pretensa universalidade esbarra em algumas concepções do cenário multicultural pois, em diferentes culturas, com distintas perspectivas religiosas, simbólicas, sociais e jurídicas, possuem modos próprios para traduzir a realidade (CURI, 2015). Além disto, ainda no campo do relativismo, leciona Silveira (2012, p. 13):

Em que pese ter se tornado a primeira ideologia universal do mundo, como a seguir veremos, essa apregoada política de direitos humanos se revela insuficientemente débil para agasalhar os interesses de algumas coletividades marginalizadas dentro dos estados nacionais, uma vez que restou toda ela construída sob a lógica da individualidade; dizendo de outro modo, quem titulariza o direito oficial é o indivíduo humano e não a coletividade considerada enquanto entidade autônoma.

 

As proposições relativistas examinam os direitos humanos como produto de uma cultura e, aliada à ideia de multiculturalismo, estabelece uma premissa que impossibilita a existência de uma ordem jurídica capaz de satisfazer, em termos globais, as exigências socioculturais das distintas comunidades humanas. Contudo, as evidências antropológicas não permitem a existência dos direitos humanos, pois, por serem estritamente empíricas, não conseguem ler com exatidão a existência ou não de valores humanos universais, tratando-se de uma resposta a ser obtida a partir de reflexões filosóficas. (BARRETTO, 2013).

Logo, a pretensão de estabelecer em escala universal, uma consciência generalizada a respeito dos direitos humanos representa o principal ponto de fricção com os espectros relativistas e universalistas. Estes acreditam, conforme mencionado anteriormente, ser impossível, em virtude da variedade cultural existente no mundo, um direito que comportasse todas as necessidades, aqueles, por outro lado, defendem um núcleo rígido de proteção ao ser humano que pode ser replicado em escala global, a partir da proteção em torno da dignidade da pessoa humana.

Este conflito ideológico de nada contribui para o real objeto de proteção dos direitos humanos, a dignidade humana, pois, no lugar de propostas pacificadoras, universalistas e relativistas discutem a sobreposição de conceitos, sendo assim, Santos (2001) apresenta o diálogo intercultural como pressuposto para a pacificação do conflito. Para tanto, o conceito de dignidade da pessoa humana deve partir de uma concepção mestiça de direitos humanos, ou seja, merece ressignificação.

Como concepção clássica, a doutrina kantiana é ainda a mais expressiva fonte de fundamentação, nacional e estrangeira, para a Dignidade Humana e de certa forma, para a conceituação deste instituto (SARLET, 2015). Portanto, antes de adentrar no cerne da rediscussão sobre a dignidade humana, faz-se necessário um estudo acerca das formulações kantiana sobre o tema.

Kant (2011), compreende que o ser humano deve obedecer a princípios supremos, denominados imperativos, regidos por máximas[4]. O primeiro princípio, denominado de imperativo categórico, pode ser descrito da seguinte forma “age só segundo máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne universal” (KANT, 2011, p.51).

Por outro lado, o segundo princípio, o imperativo prático é descrito como “age de tal maneira que possas usar a humanidade, tanto em sua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio.” (KANT, 2011, p. 59).

Vale salientar que os imperativos kantianos são possíveis em virtude da racionalidade humana e autonomia da vontade[5], esta difere-se da vontade heterônoma[6] pelo fato de ser fruto da liberdade individual, livre de qualquer inclinação, ou seja, as máximas representam um dever, enquanto a vontade inclinada (heterônoma), um dever ser.

No tocante ao segundo imperativo mencionado, tratar o ser humano como um fim em si mesmo nunca simplesmente como um meio, dele pode ser extraído o conteúdo da dignidade humana, pois, segundo Kant (2011, p. 54):

 No reino dos fins, tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem preço, pode ser substituída por algo equivalente; por outro lado, a coisa que se acha acima de todo o preço, e por isso não admite qualquer equivalência, compreende uma dignidade.

 

Neste contexto, os ideais kantianos, a respeito da dignidade da pessoa humana visam, além de comportamentos universalizados, que impedem o ser humano de ser desrespeitado em seu fim, ou seja, utilizado com fins deturpados ou degradantes, ou um objeto de satisfação de outro (BARRETTO, 2013).

À vista da doutrina kantiana, Barroso (2014) destaca a importância desta para a construção filosófica da dignidade humana, resumindo a preposição do filósofo afirmando que “todo homem é um fim em si mesmo, e não deve ser instrumentalizado por projetos alheios; os seres humanos não têm preço, nem podem ser substituídos, pois eles são dotados de um valor intrínseco absoluto, ao qual se dá o nome de dignidade.”.

Em abstrato o conteúdo da dignidade humana pode ser definido a partir de três bases fundamentais: 1) o valor intrínseco dos seres humanos no plano individual; 2) a autonomia da vontade como aspiração das liberdades; 3) a ordem limitadora da referida autonomia, construída a partir dos valores sociais comunitários. Sintetizar este tripé de “conteúdos mínimos” tem o condão de conferir aplicabilidade instituto (BARROSO, 2014).

Remontando à ideia de ressignificação do conteúdo da dignidade da pessoa humana, proposto por Santos (2001), destaca-se que compreender o instituto é ponto central do estabelecimento de uma noção intercultural dos direitos humanos.

Ocorre que, algumas culturas adotam práticas distintas em relação à matriz ocidental da dignidade humana, além disso, nem todas concebem o princípio como matriz teórico-normativa dos direitos humanos; neste cenário, o diálogo intercultural propõe uma política capaz de identificar as preocupações de diferentes culturas, a fim de estabelecer semelhanças ou torná-las similares até que se estabeleça um elo entre dignidade humana e direitos humanos. (SANTOS, 2001).

Por outro lado, a pluralidade de manifestações culturais sobre a dignidade humana, os sentidos seriam incompletos e, para tanto, torna-se vital a consciência máxima destas incompletudes; a partir disto, consegue-se aplicar a quinta premissa proposta pelo autor: comparar os diferentes sentidos, suas incompletudes, e preenchê-los, a partir de um ciclo de reciprocidade.

Portanto, falar em dignidade humana no contexto da interculturalidade se apresenta como um desafio, pois, a adoção de um conceito exclusivo para o instituto, estabelecido ‘de forma universal’, pode encontrar dificuldade de adaptação em outras culturas. (MOLINARO, 2014).

Isso ocorre, pois, a dignidade além de empírica (consciência psicológica de respeito ao ser humano) é formada pela manifestação cultural que está a sua volta, ou seja, não basta o reconhecimento e o respeito ao outro, exige-se também a reciprocidade no reconhecimento e no respeito ao outro. E a reunião destas duas perspectivas promove a aproximação do conceito de dignidade humana à proposta de um diálogo intercultural, com base nas teorias de Santos, pois, o conceito se torna flexível a mudanças, de acordo com o parâmetro cultural que entorna o indivíduo, permitindo assim, reduções. (MOLINARO, 2014). Sobre o tema conclui Silveira (2009, p. 22):

Essa versão multicultural de direitos humanos, na exata conclusão de Boaventura de Souza Santos, pressupõe que o princípio da igualdade seja utilizado de par com o princípio do reconhecimento da diferença, em que temos o direito a ser iguais quando a diferença nos inferioriza e, de outro tanto, temos o direito a ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza.

 

Estas premissas, quando efetivadas pari passu, possibilitariam um diálogo entre as distintas culturas, o chamado diálogo intercultural, pressupõe uma rediscussão dos direitos humanos e da dignidade humana a fim de combater falsos universalismos em nome de uma concepção mestiça e emancipatória. (SANTOS, 2001).

O diálogo intercultural não pressupõe a imposição de regras e tampouco visa convencer ou derrotar o outro por meio da dialética posto que, “seu campo não é a luta entre idéias, mas o ágora espiritual do encontro entre seres falantes”. (DAMAZIO, 2008, p. 80).

Uma redefinição dos direitos humanos como multiculturais, a ser conseguida com diálogos interculturais sobre preocupações convergentes, ainda que expressas em linguagens distintas e a partir de universos culturais diferenciados pode elevar os direitos humanos ao patamar da efetividade real pois, seriam eliminados obstáculos que impedem o reconhecimento do instituto no campo epistemológico.

A prática em torno dos direitos humanos deve ser compreendida como um processo dinâmico em eterna mutação, permitindo a abertura e a conseguinte consolidação e em distintos espaços de luta pelo seu reconhecimento e proteção, todos eles pautados em uma particular manifestação da dignidade humana (FLORES, 2002).

Portanto, o reconhecimento de distintas concepções de dignidade da pessoa humana, além de pressuposto fundamental para uma compreensão desta categoria de direitos, surge como elemento essencial para a concretização e proteção dos direitos humanos em termos práticos. Uma visão intercultural dos direitos humanos permite a permeabilidade desta categoria de direitos em diversos espaços de luta social em diferentes culturas.

 

5     CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

O escrito de Kant destaca, dentre outros quesitos, a interação igualitária e hospitaleira dos homens em diferentes locais do globo como condição para se alcançar a paz perpétua, o preceito visa organizar a humanidade em uma sociedade que transcende os Estados nacionais. Esta visão deve ser transplantada em termos atuais, e tensionada a partir da problemática na efetividade dos direitos humanos, potencialmente universais, nas diversas sociedades do globo.

Muito se deve à persistência em debates vetustos entre universalistas e relativistas, de modo que, ambas as teorias incorrem em graves desacertos: o universalismo, no cenário multicultural, pode levar a práticas colonizadoras e desrespeitosas em relação a culturas menos difundidas, de outro lado, ao relativizar a noção de direitos humanos corre-se o risco de aceitar práticas degradantes contrárias aos fundamentos mínimos da dignidade da pessoa.

A proposta pelo diálogo intercultural apresenta-se como razoável para a superação do conflito e a adequação de conceitos para o cenário globalizado. Ao tentar entender as diferentes concepções de dignidade, nas diferentes manifestações culturais, pode levar a uma compreensão cosmopolita do instituto, que estabelece um mínimo comum entre as culturas e respeita as particularidades de cada cultura.

As relações pautadas na interculturalidade visam a construção de uma coexistência multicultural pacífica a partir do diálogo e interação com o outro representam, portanto, uma formatação contemporânea do cenário multicultural agregando a este, valores como o diálogo e a igualdade.

Neste ponto, a partir da conexão do escrito kantiano com a política intercultural dos direitos humanos pode-se considerar que em Estados soberanos com Constituições estas devem ser respeitadas como ‘lei maior’, de outro lado, no espectro transnacional, ou seja, na sociedade global os direitos humanos apresentam-se como instrumento jurídico capaz de permear os ordenamentos para a proteção do indivíduo, ao promover o diálogo entre as diferentes cultuas, os tanto o “igual” (aquele que compartilha a cultura local) quanto o “outro” (aquele fora da cultura local) podem ter relações de hospitalidade e igualdade, facilitando assim, o reconhecimento entre as diferentes culturas e indivíduos ao redor do globo.

 

REFERÊNCIAS

 

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Data de Submissão: 19/02/2019, Data de Aprovação: 17/04/2019

 

COMO CITAR ESTE ARTIGO

 

REMOR, Adriano Rodrigues. Interculturalidade e paz perpétua: diálogos entre Kant e a perspectiva dos direitos humanos no cenário multicultural. Revista de Direito da Faculdade Guanambi, Guanambi, BA, v. 5, n. 2, p. 286-300, jul./dez. 2018. doi: https://doi.org/10.29293/rdfg.v5i2.241. Disponível em: http://revistas.faculdadeguanambi.edu.br/index.php/Revistadedireito/article/view/241. Acesso em: dia mês. Ano.



[1] Doutorando em Direito pela Universidade Estácio de Sá (UNESA). Mestre em Direito pela Universidade Estácio de Sá (UNESA). Bacharel em Direito pela Faculdade Estácio da Amazônia. Coordenador de pesquisa e iniciação científica na Faculdade Estácio de Castanhal. Lattes: http://lattes.cnpq.br/6342644139437990. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4601-9236.

[2] O presente estudo foi realizado a partir da seguinte edição: KANT, Immanuel. A Paz Perpétua: um Projecto Filosófico. Tradução Artur Morão. Covilhã: Universidade da Beira Interior, 2008.

[3] Nas palavras de Santos (2001 p. 17) Globalismo localizado é uma expressão da globalização onde a uniformização de padrões socioculturais advém da cultura mais difundida e se impõe a menor, ou seja, de cima para baixo.

[4] Segundo Kant, Máxima é o princípio subjetivo da ação e deve se distinguir do princípio objetivo, isto é, da lei prática, ou seja, a máxima é o princípio segundo o ser age, e a lei define como o sujeito deve agir (2011, p. 51)

[5] Autonomia da vontade segundo Kant é o princípio que determina a liberdade individual dos seres humanos o “agir de acordo com sua vontade” deriva de ações puras, desprovidas de inclinações e influências externas (KANT, 2011).

[6] A vontade heterônoma é influenciada por fatores externos, alheias a pureza da vontade humana. (KANT, 2011).