“O DOADOR DE MEMÓRIAS” À LUZ DA CULTURA POSITIVISTA: POR UMA NOVA FORMA DE VER E APRENDER DIREITO

"THE MEMORIAL DONOR" IN THE LIGHT OF POSITIVE CULTURE: FOR A NEW WAY TO SEE AND LEARN RIGHT

 

 

Alexandre de Castro Coura[1]

Faculdade de Direito de Vitória, Vitória, ES, Brasil

acastrocoura@gmail.com

 

Bruno Taufner Zanotti[2]

Faculdade de Direito de Vitória, Vitória, ES, Brasil

brunotaufner@hotmail.com

 

 

Resumo: A literatura e o cinema, por meio da narrativa, ajudam a interpretar e a justificar a realidade. O direito também se vale dessa ferramenta para interpretar a sociedade e a si próprio. Nessa linha, o presente artigo busca relacionar cinema e Direito, propondo metodologia não tradicional de reflexão acerca da ciência jurídica. Assim, serão levantados os seguintes questionamentos: de que forma é possível relacionar Direito e cinema a partir do filme “O doador de memórias”? Como o positivismo jurídico pode ser identificado e moldado à luz do referido filme? A partir desse contexto, como o filme escolhido e o pós-positivismo superam a pretensão de neutralidade? Inicialmente, serão apresentadas as ideias centrais do filme “O Doador de Memórias”. Em seguida, será analisado o conceito de paradigma a partir do filme, sua relação com o Direito, em especial o conceito positivista kelseniano de direito, e, por fim, a superação dessa noção pelo pós-positivismo.

 

Palavras-chave: Cinema. Direito. Positivismo. Pós-positivismo. Direito e Moral.

 

Abstract: Literature and cinema, through narrative, help to interpret and justify reality. Law also uses this tool to interpret society and itself. In this line, this article seeks to relate cinema and law, proposing a non - traditional methodology of reflection on legal science. Thus, the following questions will be raised: in what way is it possible to relate Law and cinema from the movie "The Memories Giver"? How can legal positivism be identified and shaped in the light of this film? From this context, how does the chosen film and post-positivism overcome the pretension of neutrality? Initially, the central ideas from the film "The Giver of Memories" will be presented. Then, the concept of paradigm will be analyzed from the film, its relation with the Law, especially the positivist concept of Kelsenian law, and, finally, the overcoming of this notion by post-positivism.

 

Keywords: Movie theater. Right. Positivism. Post-positivism. Right and Moral.

 

1      INTRODUÇÃO

 

O tema do artigo se insere na proposta do grupo de pesquisa “Hermenêutica Jurídica e Jurisdição Constitucional”, vinculado ao programa de pós-graduação em sentido estrito (doutorado) da Faculdade de Direito de Vitória (FDV). Durante alguns semestres, os integrantes do grupo desenvolveram pesquisas relacionadas a literatura, cinema e Direito, a fim de discutir, de forma não tradicional, questões relevantes à ciência jurídica. Afinal, a literatura e o cinema, por meio da narrativa, ajudam a interpretar e justificar a realidade. O direito, na mesma linha, também se vale dessa ferramenta.

Um dos filmes escolhidos, como mote de discussão, foi “O doador de memórias”, que narra a história de uma pequena comunidade em um mundo ideal sem doenças, sem guerras, mas, também, sem sentimentos, emoções e moral. No presente trabalho, a busca dessa sociedade por uma pretensa neutralidade servirá para desenvolver um paralelo com o conceito de Direito que busca, no positivismo, uma forma similar de estruturação do pensamento jurídico.

Em síntese, o presente artigo objetiva responder aos seguintes questionamentos: De que forma é possível relacionar Direito e cinema a partir do filme “O doador de memórias”? Como o positivismo jurídico pode ser identificado e moldado no referido filme? A partir desse contexto, como a narrativa do filme e o pós-positivismo superam a pretensão de neutralidade?

Trata-se de respostas complexas. A relação entre conceitos jurídicos e o filme “O doador de memórias” é possível, na medida em que a obra cinematográfica apresenta uma estrutura preestabelecida e vinculante para os que vivem na sociedade, ao passo que os casos sem uma resposta dessa estrutura são levados aos portadores de memórias com capacidade de dar uma resposta que a sociedade tomaria caso tivesse esses privilegiados conhecimentos.

Assim, inicialmente, serão apresentadas as ideias centrais do filme “O Doador de Memórias” e o modo pelo qual o desenvolvimento do jovem Jonas repercutiu numa mudança paradigmática de sua vida e da sociedade na qual estava incluído. Em seguida, será analisado o conceito de paradigma a partir do filme com a sua relação com o Direito, em especial o conceito positivista kelseniano de Direito até a sua superação pelo pós-positivismo. Ao final, será feita uma análise do filme “O Doador de Memórias” a partir de tudo o que foi exposto, em especial a relação entre a narrativa cinematográfica e o positivismo jurídico.

Com a finalidade de integrar as fontes de estudo e alcançar os objetivos propostos, verificou-se a necessidade de uma abordagem hermenêutica. Por meio da interpretação das diversas fontes, que envolvem tanto o filme quanto o Direito, será possível responder os questionamentos colocados, de modo a compreender a necessidade de se superar a suposta impossibilidade relacionamento entre o Direito com a Moral.

 

2     UMA BREVE APRESENTAÇÃO DA ESTRUTURA DA SOCIEDADE NO FILME “O DOADOR DE MEMÓRIAS”

 

O filme “O Doador de Memórias” é inspirado no livro “O Doador”, de Lois Lowry, e conta uma estória, na qual foi criada uma sociedade fundamentada numa estrita igualdade. As pessoas não possuem memórias do passado, não possuem sobrenome, moram em casas idênticas e utilizam a mesma vestimenta. A finalidade da criação dessa estrutura decorreu da necessidade de superar as diferenças do passado, que justificaram as guerras e a maldade do ser humano.

A vida nessa sociedade deveria seguir cinco regras básicas, consideradas as condições de possibilidade da estrutura social, quais sejam: o uso de linguagem precisa, a utilização somente das roupas designadas, a ingestão do remédio matinal, a obediência ao toque de recolher e a obrigatoriedade de nunca mentir. Trata-se de regras rígidas e de observância obrigatória, características essas também muito presentes no positivismo jurídico por formarem a moldura dentro da qual as pessoas deveriam viver.

O uso da linguagem precisa tinha por finalidade evitar o uso de termos que pudessem exprimir questões morais ou emocionais, como “amor” e “justiça”, de modo a utilizar uma linguagem básica e de acessibilidade e compreensão igual para todos. Essa regra básica estava intrinsecamente ligada à ingestão de uma substância química toda manhã, capaz de inibir as emoções das pessoas e garantir a manutenção da ordem social. Note que a necessidade do “uso da linguagem precisa”, por si só, já é uma regra fadada ao fracasso, na medida em que a linguagem é naturalmente ambígua, não possuindo uma significação definitiva, tanto que essa pretensa exatidão linguística tem por premissa a ideia de que a linguagem está à disposição do sujeito (numa relação sujeito-objeto). Em outras palavras, o mundo é constituído por uma linguagem que não se apresenta exata (GADAMER, 2005, 441-447).

As regras relativas à utilização somente das roupas designadas e da obediência ao toque de recolher demonstram uma imposição unilateral pelo governo de um padrão de conduta a ser obrigatoriamente seguido por todos. A concessão unilateral de direitos foi uma característica do Estado Social, do seu caráter clientelista, que trata o cidadão como se fosse um freguês, o qual vai ao Estado pedir algum direito. Em vez de chamar esse indivíduo para, dentro de uma perspectiva discursiva, criar a norma, o Estado estipulava, de forma unilateral, qual seria, em tese, a melhor forma de se exercer aquele direito. Durante esse período histórico, a igualdade tinha por finalidade a inclusão de grupos que foram historicamente deixados à margem da sociedade, cenário evidenciado pela necessidade de o Leviatã mostrar preocupação igual com os destinos de todos aqueles que governa (HABERMAS, 2007, 304; DWORKIN, 2012, p. 362-363).

A última regra estabelecia a obrigatoriedade de as pessoas nunca mentirem, situação que, aliada à ausência de questões morais e emocionais, garantia a manutenção da vida daquela comunidade dentro do contexto apresentado. “Não mentir” se apresenta como uma regra absoluta, sem exceções, cenário que se apresenta como violador de direitos, na medida em que pode gerar a exposição de intimidades pessoais de um cidadão ou mesmo ser capaz de justificar equivocadamente condenações quando existirem outros direitos de maior envergadura[3] presentes no caso concreto (CARVALHO NETO, 2003, p. 103).

Apesar das críticas traçadas às regras base do filme, ainda assim elas eram as guias da sociedade, que era dividida em castas e composta pela seguinte estrutura hierarquizada: anciões, trabalhadores e menores de idade. A graduação consistia em um rito da adolescência para a fase adulta, durante a qual era designado um trabalho previamente escolhido pelos anciões com base na necessidade da sociedade e nas qualidades desenvolvidas pelo adolescente até aquele momento. Acima, existiam os anciões cuja sabedoria era baseada unicamente na superficial experiência de vida a partir do respeito às cinco regras de convívio. No topo da estrutura, encontrava-se a anciã-chefe, a líder da sociedade e a responsável por julgar eventual quebra das regras acima mencionadas, mas ela mesma estava sempre limitada a essas regras. Essa situação também encontra certa similitude com o positivismo jurídico exclusivista[4], na medida em que os magistrados também estão limitados às regras existentes no sistema, não podendo decidir de acordo com princípios ou suas convicções pessoais.

Os casais, no filme, existem para cuidar das crianças criadas artificialmente em laboratório, uma vez que a estrutura desenvolvida não permitia o toque físico entre as pessoas. Desprovidos de emoções, as pessoas vivem o dia a dia sem grandes ambições e objetivos além de trabalhar, cuidar dos menores e cumprir as cinco regras básicas.

Paralelamente à estrutura acima mencionada, existiam dois portadores de memórias – um recebedor de memória e um doador de memória. Eram os únicos com conhecimento das memórias da história da humanidade e os únicos com “capacidade de ver além”. Esses dois não seguiam as regras acima mencionadas, sendo autorizados a mentir e não podiam passar para ninguém os conhecimentos obtidos.

Somente os portadores de memórias tinham acesso ao conhecimento por meio de livros e revistas. Conheciam, portanto, a “história secreta” do mundo. Contudo, a principal finalidade era fornecer conhecimento e sabedoria para quando aos anciões precisassem da ajuda além da experiência superficial que possuíam. Ao argumento de que “as memórias determinam o futuro”, eram os responsáveis por iluminar os anciões nas constantes trevas no qual essa sociedade estava mergulhada.

Diante desse cenário apresentado, o filme é gravado em preto e branco e assim permanece para as pessoas que vivem de acordo com as regras estabelecidas. Com o filme centrado no adolescente Jonas, o menor é escolhido na graduação como o novo receptor de memórias, passando a ter um papel único naquela sociedade em lições diretas com o doador de memórias acerca da importância da história, da moral, de justiça e das emoções. O contato com esse lado inexplorado do seu ser e o abandono das cinco regras de convivência faz o mundo ganhar cores, passando a filmagem a ser colorida pelos olhos desse adolescente.

A ação não é o ponto forte do filme e questões filosóficas são colocadas diante do adolescente Jonas. Questionamentos inerentes à estrutura de poder, relativos à ausência da emoção e da moral e ligados à obediência cega às regras são abordados com frequência nesse drama.

Na medida em que o filme consigna o papel do Estado na sociedade com a finalidade de garantir a proteção do indivíduo contra si mesmo, chegando ao ponto de rotular o adolescente Jonas como subversivo à ordem por não mais aceitar as rígidas regras, inicia-se, por parte do adolescente, uma sequencia de atos capazes de desestruturar o que até então era tão certo e tão aceito pela sociedade, gerando um rompimento de paradigmas.

Jonas compreende que, sem memórias e sem moral, a liberdade é uma mera ilusão. Não existia justiça naquele mundo cinza e os questionamentos do adolescente acompanham o crescimento do seu conhecimento, de modo a verificar que nem todas as respostas estão previamente dadas, que não se limitam a certo ou errado e que todos os fatos podem ter mais de uma interpretação a depender do conhecimento da pessoa. A sua conclusão, em muito, caminha com as críticas que o pós-positivismo faz ao positivismo jurídico, em especial por causa da limitação que as regras impõem ao positivismo e por causa da inexistência da relação entre o Direito e a Moral.

 

3     A QUESTÃO DO PARADIGMA E O LIMITE DA LINGUAGEM OU DO CONHECIMENTO

 

Jonas, o principal personagem do filme “O Doador de Memórias”, vai passando por uma lenta transformação na medida em que é escolhido como o receptor das memórias e deixa, por determinação do seu mentor – o doador de memórias –, de ingerir o remédio matinal capaz de inibir suas emoções e responsável por manter a ordem e a cega obediência às regras postas.

Esse é o contexto que envolve a quebra de paradigma, que se efetiva somente com o recebimento e compreensão das memórias dos antepassados. Jonas passa a conhecer uma quase infinita pluralidade de fauna e flora, tem contato com as guerras do passado e seus efeitos avassaladores, compreende o conceito de família a partir do amor e respeito ao próximo, entre muitas outras questões.

A ampliação do seu conhecimento, portanto, reflete na ampliação da sua linguagem, de modo que passa a refutar aquela estrutura estatal hierarquizada e subordinada rigidamente a regras previamente postas sem qualquer fundamento substantivo. Desse modo, o filme muda de perspectiva e delineia a vida do jovem Jonas a partir do conflito entre os dois mundos ou dois paradigmas de vida, quais sejam, o mundo limitado que até então vivia e o novo mundo aberto ao conhecimento, à moral e à emoção.

Nesse contexto, verifica-se a necessidade de entender o que consiste um paradigma e de que forma ele é preponderante para entender a evolução do personagem Jonas e a evolução do positivismo jurídico.

Um paradigma pode ser visualizado como conceitos prévios de um mundo, com capacidade para guiar a leitura que dele se faz e limitar a compreensão que dele se tem. Ressalta-se que um paradigma consiste na leitura precária do mundo por ser concebido dentro de um tempo e lugar, sendo cada resposta decorrente da inserção do ser nesse mundo, na medida em que

[...] nenhum de nós pode construir o mundo das significações e sentidos a partir do nada: cada um ingressa num mundo “pré-fabricado”, em que certas coisas são importantes e outras não o são; em que as conveniências estabelecidas trazem certas coisas para a luz e deixam outras na sombra. (BAUMAN, 1997, p. 17).

 

Contudo, um paradigma não é somente o que os membros de uma comunidade partilham (aspecto objetivo), mas, também, é um conjunto de pessoas que partilham esse mundo pré-fabricado (aspecto subjetivo). Isso é o que Kuhn (2001, p. 219) vai qualificar como caráter circular do paradigma.

Kuhn (2001, p. 220) enfatiza a existência de paradigmas em esferas restritas de compreensão das ciências ou mesmo em esferas sociais de menor abrangência. O autor trata do exemplo da linguagem utilizada por determinada especialidade científica, ao argumento de que certo ramo da ciência possui linguagem e ensinamentos próprios, tornando a comunicação difícil com pessoas que estejam fora desse círculo hermenêutico-paradigmático.

Isso ocorre porque, como mencionado acima, o paradigma possui um duplo aspecto ao limitar e nortear a leitura do mundo. No que diz respeito ao primeiro aspecto, Menelick de Carvalho Netto (1999, p. 476) afirma que o paradigma

[...] possibilita explicar o desenvolvimento científico como um processo que se verifica mediante rupturas, através da tematização e explicitação de aspectos centrais dos grandes esquemas gerais de pré-compreensões e visões-de-mundo, consubstanciados no pano-de-fundo naturalizado de silêncio assentado nas gramáticas das práticas sociais, que a um só tempo tornam possível a linguagem, a comunicação, e limitam ou condicionam o nosso agir e a nossa percepção de nós mesmos e do mundo (CARVALHO NETTO, 1999, p. 476).

 

Em outras palavras, o primeiro aspecto do paradigma torna possível o diálogo, o relacionamento e a convivência entre as pessoas que vivem em determinado paradigma. Tais esquemas gerais de visões-de-mundo possuem um conteúdo que tenta eternizar o paradigma, em especial por vincular a ideia de que essa leitura se apresenta como a mais adequada àquele tempo e lugar.

No que diz respeito ao segundo aspecto, nas palavras de Menelick de Carvalho Netto (1999, p. 476), o paradigma

[...] padece de óbvias simplificações, que só são válidas na medida em que permitem que se apresente essas grades seletivas gerais pressupostas nas visões de mundo prevalentes e tendencialmente hegemônicas em determinadas sociedades por certos períodos de tempo e em contextos determinados.

 

Esse aspecto do paradigma pode ser traduzido como uma ideia datada de um determinado contexto histórico-cultural-social. De fato, a história é muito mais rica do que a simplificação imposta pela idealidade utópica de um paradigma, mas essa limitação torna possível compreender o prólogo silencioso que age em determinado tempo e local, condicionando o agir e o pensar das pessoas.

Um exemplo de aplicação do paradigma e de sua natural limitação pode ser encontrado no filme. Em determinada cena, o pai da família, no qual Jonas estava inserido, entrega um bicho de pelúcia para um bebê e o chama de hipopótamo. Mais tarde no filme, após ter iniciado o procedimento relativo ao recebimento das memórias do passado, Jonas percebe o equívoco do pai por se tratar o bicho de pelúcia, na verdade, de um elefante. Esse contexto demonstra o perigo de se limitar o acesso à linguagem e ao conhecimento a um grupo bem restrito de pessoas, na medida em que acordos semânticos equivocados assim permanecem por não serem jamais colocados à refutação ou à reflexão.

Seja no filme “O Doador de Memórias”, seja no Direito, a presença de esferas de pré-compreensão paradigmáticas da interpretação é uma condição de possibilidade do diálogo e da vida em sociedade, mesmo que essas esferas, posteriormente, se mostrem equivocadas. Contudo, tais esferas devem ser constantemente colocadas à prova. Desafios não podem faltar para os paradigmas, que devem apresentar respostas condizentes e fundamentadas para que possam se manter. Quando essas respostas não são adequadas, ocorrerá a transição de um paradigma para o outro por meio da ruptura do paradigma pretérito.

Isso ocorre porque o paradigma anterior não mais consegue dar respostas satisfatórias aos novos problemas, criando verdadeiras anomalias no sistema que vão gradualmente minando a sua possibilidade de ler o mundo. Kuhn (1998, p. 225) afirma que a transição de um paradigma para outro não ocorre necessariamente por crises traumáticas; na verdade, essa transição (ou essa crise) precisa “[...] apenas ser o prelúdio costumeiro, proporcionando um mecanismo de autocorreção, capaz de assegurar que a rigidez da ciência normal não permanecerá para sempre sem desafio [...]”. Com o crescimento dessas anomalias, tem início uma crise paradigmática que deve ser resolvida com a ascensão do novo modelo de paradigma, capaz de dar as respostas inviáveis no modelo anterior. Apesar de o mundo fático ser o mesmo, a lente pela qual ele é visualizado sofre sensível alteração e isso repercute no modo de pensar e agir das pessoas.

Como se verificou pelo filme “O Doador de Memórias”, nem todos são capazes de transpor essa hercúlea barreira paradigmática. A resistência à mudança é natural, todavia é, também, um desafio imposto a todos. Requer a aceitação de novo conhecimento e, principalmente, a necessidade de se abandonar o que até então era certo e natural, em especial por ser o paradigma constitutivo de próprio ser humano. Essa autorreflexão é o que torna cada pessoa possível viver um novo horizonte de possibilidades, ao mesmo tempo em que é, também, limitado pelas sombras do novo paradigma.

Acontece que tal questão não é exclusiva de um filme ou da vida em sociedade, mas também está claramente presente no Direito. Por isso, quando se trabalha com paradigmas hermenêuticos jurídicos, tal como o positivismo ou o pós-positivismo, não se busca exaurir suas características, mas, tão-somente, identificar prólogos silenciosos, que, ainda hoje, condicionam a interpretação do Direito no Brasil e direcionam a metodologia a ser utilizada no caso concreto.

 

4     A IDEIA DE PARADIGMA APLICADA AO DIREITO

 

A Revolução Industrial e a Primeira Guerra Mundial possibilitaram o crescimento do viés social dos Estados, período conhecido como Estado Social, e a interpretação judicial, que até então era atribuição do Poder Legislativo, foi incorporada como condição de possibilidade para o exercício da magistratura (CAPPELLETTI, 1999, p. 41-43). Nesse período, acentuou-se o rompimento do Direito com a Moral e com outras ciências não jurídicas em razão do crescimento de diversos autores positivistas, como Hans Kelsen e Herbert Hart.

A obra Teoria Pura do Direito, escrita por Hans Kelsen, é bem designativa da ideia central divulgada nesse período. O título do livro evidencia preocupação do autor pela consolidação de uma ciência pura. Assim, Hans Kelsen solidifica a autonomia da ciência jurídica em relação a todas as demais ao partir do pressuposto de que esse conceito do Direito não busca estudar se determinada norma é certa ou errada, se é boa ou má; ao contrário, tem por finalidade estudar e identificar as normas válidas ou inválidas e o que é lícito ou ilícito. Essa ruptura do Direito constitui um dos pontos centrais sobre o qual Kelsen estabelece a sua teoria:

Quando a si própria se designa como “pura” Teoria do Direito, isto significa que ela se propõe garantir um conhecimento apenas dirigido ao Direito e excluir deste conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto, tudo que não se possa, rigorosamente, determinar como Direito. Quer isto dizer que ela pretende libertar a ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos. Esse é o seu princípio metodológico fundamental. (KELSEN, 2003, p. 1)

 

A inexistência de tal vínculo, também visualizado no filme em comento, apresenta-se evidente, em especial porque o autor defende a validade de um direito independentemente de qualquer mandamento de justiça ou de moral. Em outras palavras, a validade do Direito e o poder coercitivo do Estado dispõem de conteúdo estritamente jurídico, de modo que a Moral, a Sociologia e outras ciências não possuem condição de se relacionarem com essa ciência pura:

Quanto a Teoria Pura pretende delimitar o conhecimento do Direito em face destas disciplinas, fá-lo não por ignorar ou, muito menos, por negar essa conexão, por que intenta evitar um sincretismo metodológico que obscurece a essência da ciência jurídica e dilui os limites que lhe são impostos pela natureza do seu objeto. (KELSEN, 2003, p. 2)

 

Assim, a plenipotenciariedade da regra pode ser qualificada como fonte e pressuposto do sistema jurídico vigente, de modo a fechar o Direito para a amplitude normativa dos princípios e a sua relação com a moral e com os demais ramos científicos (STRECK, 2012, p. 59). A regra é fonte de legitimidade do Direito e imprescindível para a sua correta aplicação aos casos apresentados ao Poder Judiciário, situação também verificada no filme, na medida em que as cinco regras de convivência constituem a legitimidade das condutas das pessoas e são condições de possibilidade para a existência da estrutura social.

Fortifica-se a ideia da plenipotenciariedade da regra, por ser identificada como fonte do Direito e verdadeiro pressuposto para o funcionamento do ordenamento jurídico, sem possibilidade de abertura aos princípios e à Moral (STRECK, 2012, p. 59). Em outras palavras, a regra é qualificada como verdadeira condição para a legitimidade do Direito, situação também verificada no filme, na medida em que as cinco regras de convivência constituem a legitimidade das condutas das pessoas e são condições de possibilidade para a existência da estrutura social.

Dentro desse contexto se insere a concepção formal do Direito, de modo que a pureza de sua ciência sequer permitia um diálogo das normas com a realidade social ao qual ela seria dirigida:

O juspositivismo tem uma concepção formalista da ciência jurídica, visto que na interpretação dá absoluta prevalência às formas, isto é, aos conceitos jurídicos abstratos e às deduções lógicas que se possam fazer com base neles, com prejuízo da realidade social que se encontram por trás de tais formas, dos conflitos de interesse que o direito regula, e que deveriam (segundo os adversários do positivismo jurídico) guiar o jurista na sua atividade interpretativa (BOBBIO, 2006, p. 221).

 

O positivismo kelseniano teve, em 1960, um dos seus capítulos mais importantes[5]. Nesse ano, foi publicada uma nova edição da Teoria Pura do Direito, com modificações em relação às edições anteriores. Dentre as inúmeras mudanças, ressalta-se uma relativa à hermenêutica jurídica e à interpretação autêntica:

A propósito importa notar que, pela via da interpretação autêntica, quer dizer, da interpretação de uma norma pelo órgão jurídico que a tem de aplicar, não somente se realiza uma das possibilidades reveladas pela interpretação cognoscitiva, da mesma norma, como também se pode produzir uma norma que se situe completamente fora da moldura que a norma a aplicar representa. (KELSEN, 2003, p. 394).

 

Há quem ignore tal assertiva ao afirmar que essa frase não representaria a ideia do autor, sob o argumento de que seria só mais uma dentro de um livro bem denso e vasto, de modo que não se deveria dar uma relevância desproporcional ao seu significado[6]. De fato, em nenhum outro momento Kelsen retoma a ideia colocada, mas isso não tira a sua relevância na nova edição da Teoria Pura do Direito. Nessa passagem, Kelsen enaltece a atividade interpretativa do juiz como legítima criadora do Direito para além da moldura. Mesmo que a norma esteja fora da moldura, ela pode ser extraída de uma fonte não jurídica (não positiva), que, então, transmutar-se-á em conteúdo jurídico pelas mãos do magistrado, o intérprete autêntico.

Essa verdadeira atividade legislativa-judicial não é vista por Kelsen (2003, p. 395) como um problema do seu sistema, mas decorre do fato de ele aceitar que certas decisões não possam ser anuladas quando transitadas em julgado, em especial pelos tribunais de última instância[7]. São decisões incompatíveis com uma ciência pura, mas, ainda assim, aceitas na Teoria Pura do Direito, por se tornarem estáveis dentro das regras processuais.

É possível afirmar que a quadro kelseniano não deixou de existir, mas, na verdade, que ele estará crescendo pelos atos de vontade do magistrado. Em outras palavras, cada nova interpretação feita fora da moldura significa a ampliação natural da moldura até então existente, por ser a decisão do intérprete autêntico um ato complexo, composto por um ato de conhecimento e um ato de vontade, criador do Direito (KELSEN, 2003, p. 394). De forma mais específica, o texto explicita a conclusão de que qualquer decisão tomada pelo magistrado, mesmo que originariamente fora da moldura até então estabelecida, seja juridicamente válida. O perigo é que mesmo as decisões flagrantemente contrárias ao sistema constitucional passam a ser admitidas pela Teoria Pura do Direito, desde que os instrumentos processuais não sejam utilizados para invalidar tais decisões:

No ano de 1960, em uma nova Teoria Pura do Direito, importantes modificações foram apresentadas por Kelsen no capítulo dedicado à interpretação jurídica. Tais inovações consubstanciaram um significativo giro na perspectiva kelseniana, na medida em que o autor reconheceu a impossibilidade de limitar o poder discricionário da autoridade competente para aplicar o Direito, o que acabou por colocar em risco os próprios objetivos da Teoria Pura, diluindo-a em puro decisionismo (COURA, 2013, p. 133).

 

Nesse contexto, é outorgado ao magistrado uma “carta branca” e as interpretações da moldura kelseniana passam a ser vistas como uma referência para o julgamento, que podem ser utilizadas (ou não) de acordo com o entendimento do magistrado. O intérprete torna-se difícil de ser previsto, de modo que a utilização de padrões extrajurídicos coloca em dúvida a própria existência de uma ciência pura, uma vez que a vontade do magistrado se apresenta para além do quadro imaginado, no que pode ser rotulado como um “giro decisionista”.

Essa situação expõe o reconhecimento pelo próprio positivismo do problema em tentar anteceder por meio de regras postas todos os fatos de uma sociedade complexa, de modo a gerar uma crise paradigmática. Crise essa que também pode ser verificada no filme, em especial quando o adolescente Jonas compreende que existem respostas possíveis além das regras previamente estabelecidas, bem como essas respostas não se limitam a certo ou errado e que todos os fatos podem ter uma interpretação mais adequada que dependerá do real acesso de cada um ao conhecimento e à linguagem.

 

5     O DIREITO IMITA A ARTE OU A ARTE IMITA O DIREITO?

 

A partir de tudo o que foi exposto, nota-se um paralelo existente entre o paradigma inicial do filme “O doador de memórias” e o positivismo jurídico, do mesmo modo que existe também um segundo paralelo entre o paradigma iniciado pelo adolescente Jonas e o pós-positivismo jurídico.

Para entender o primeiro paralelo, faz-se necessário fazer uma breve síntese do contexto inicial do filme. A vida naquela sociedade deveria seguir cinco regras fundamentais, estáticas e inquestionáveis, cuja validade decorria da sua simples existência e aceitação por todos. A estrutura social tinha no ápice a anciã-chefe, pessoa qualificada como líder da sociedade e a responsável por julgar eventual quebra das regras acima mencionadas, julgamento esse limitado a sua experiência das regras pré-existentes.

Ora, a situação exposta mostra uma sociedade positivista, que, não só aceitou esse conceito de Direito, mas o adotou como condição de possibilidade para a sua existência. O positivismo jurídico, como exposto acima, ao excluir os princípios, limita-se a interpretar regras pré-estabelecidas e de observância obrigatória para o magistrado, características muito presentes no filme pelo fato de as cinco regras de convivência formarem a moldura dentro da qual as pessoas viverão e as respostas serão possíveis.

Ademais, como os anciões, responsáveis por reger a sociedade, retiravam a sabedoria e o conhecimento da superficial experiência de vida a partir do respeito às cinco regras de convívio, isso impossibilitava entender o caráter plural das pessoas e a potencialidade que cada indivíduo poderia ter dentro da sociedade. No positivismo não é diferente, na medida em que a impossibilidade do diálogo do Direito com outros ramos, como a sociologia e a criminologia, impossibilitava a emancipação do Direito em seu caráter plural e democrático.

No filme, existia um cuidado para que as pessoas não fossem dominadas por suas emoções ou influenciadas por questões morais. Em determinada cena do filme, Jonas descobre que o bebê que a sua família cuida será morto por não estar dentro dos padrões exigidos pela sociedade. Por mais que Jonas tente explicar às pessoas o que está em jogo, a obediência cega às regras estabelecidas impede as pessoas de entenderem a relevância do fato. Tal preocupação também é inerente ao positivismo jurídico que prega uma ciência pura, que tem por objetivo excluir deste conhecimento tudo que não pertença ao seu objeto, ou seja, tudo o que não seja de fato “Direito”.

Da mesma forma que Kelsen, em determinado momento, reconheceu a limitação do positivismo jurídico e possibilitou ao magistrado decidir fora da moldura após o seu giro decisionista. Um problema similar pode ser encontrado no filme “O Doador de Memórias”, já que os portadores de memórias tinham acesso ao conhecimento por meio de livros e revistas e forneciam o conhecimento e a sabedoria sempre que aos anciões precisassem da ajuda além da experiência. Quando Kelsen criou um mecanismo que possibilitou ao juiz decidir fora da moldura, o autor possibilitou a contaminação do Direito por questões extrajurídicas e estranhas à pureza então pretendida, do mesmo modo que os anciões consultavam os portadores de memórias, que tinha ampla liberdade de orientação, quando não possuíam a resposta para determinada situação.

Quando Jonas entende que sem memórias e sem moral, a liberdade é uma mera ilusão, o adolescente compreende que o seu objetivo é justamente mostrar à sociedade as trevas nas quais eles vivem. O fato de não existir justiça naquele mundo cinza, mas somente a análise das condutas à luz das cinco regras, e mesmo o fato de Jonas entender que existe mais de uma interpretação a depender do conhecimento da pessoa, trata-se de questões que aproximam o seu modo de ver o mundo do o pós-positivismo, no qual existe uma natural influência da moral e um caráter aberto das normas.

O pós-positivismo jurídico, a partir de Ronald Dworkin, traz novas cores para o Direito, que passa a não se limitar ao tudo ou nada (aspecto de validade) do positivismo, situação que é potencializada pela inserção dos princípios e pelo diálogo com outros ramos do Direito. Ganha corpo o movimento pós-positivista do Direito. É por isso que o positivismo entra em crise quando verifica a sua limitação e a sua incapacidade de regular todas as situações sociais postas, em especial na certeza de que a vida é mais rica do que a tentativa de limitar em algumas regras todas as questões previamente estabelecidas.

Ronald Dworkin dá um importante passo, além da pretensão de uma pureza metodológica tão idealizada por Hans Kelsen, ao buscar na Moral a legitimidade da decisão judicial. Com base nessa mudança paradigmática, Ronald Dworkin supera a pretensão de se separar o estudo do Direito das análises axiológicas de modo a construir a cientificidade de sua teoria em um fundamento valorativo. Para tanto, o autor (DWORKIN, 2012, p. 414) afirma que a relação entre o Direito e a Moral tem por base uma “estrutura em árvore”, na qual o Direito é um ramo da moral política e a moral política é um ramo de um tronco ainda maior, qual seja, a moral.

Com a finalidade de consolidar sua teoria no plano prático, Ronald Dworkin (2012, p. 415 e 416) refuta o positivismo jurídico, que fundamenta a legitimidade dos atos exclusivamente em comportamentos históricos, e constrói a sua teoria com base no interpretativismo. A teoria reconhece a importância dos comportamentos históricos, desde que dentro de um constante diálogo com o papel a ser desempenhado pelos princípios de moral política.

Com a finalidade de superar as limitações metodológicas do positivismo jurídico, Ronald Dworkin (2012, p. 280) faz uso de uma moral Kantiana, de modo a consolidar uma íntima relação entre ética e moral, capaz de nortear, por um lado, a comunidade que pretendemos ter e, por outro lado, a aplicação do Direito:

Devemos mostrar respeito total pela igual importância objetiva da vida de todas as pessoas, mas também respeito total pela nossa própria responsabilidade de fazer algo de válido com as nossas vidas. Devemos interpretar a primeira exigência de maneira a deixar espaço para a segunda e vice-versa.

 

As duas exigências são expressão da Ética, responsável pelo “[...] estudo de como devemos viver bem”, e da Moral, responsável pelo “[...] estudo de como devemos tratar as outras pessoas” (DWORKIN, 2012, p. 25). Em outras palavras, ou seja, as pessoas possuem responsabilidade pessoal pela própria vida que não pode ser delegada ou ignorada, do mesmo modo que o “princípio de Kant” exige igual reconhecimento dessa responsabilidade na vida dos outros.

A Ética não se apresenta com um viés individualista, mas em uma dimensão concreta no âmbito do que é bom para “nós”[8], pois “[...] devemos reconhecer, como fundamental entre nossos interesses privados, uma ambição para tornar as nossas vidas autênticas e válidas, em vez de más ou degradantes” (DWORKIN, 2012, p. 25). Não significa a possibilidade de fazer tudo o que uma pessoa de fato quer, mas é “[...] uma questão de nossos interesses vistos criticamente — os interesses que deveríamos ter” (DWORKIN, 2011, p. 611). A ideia de viver bem se apresenta como uma proposta, como um caminho a ser percorrido para criar uma vida boa, sujeita aos limites da dignidade da pessoa humana, que se apresenta como vetor central para identificar o significado de viver bem para além da vontade ou do interesse de um indivíduo (DWORKIN, 2011, p. 611-612).

A Moral possui uma pretensão de universalização, que foca na compreensão do que é igualmente bom para todos. Dworkin (2012, p. 26) baseia-se principalmente “[...] na tese de Immanuel Kant, segundo a qual só podemos respeitar adequadamente a nossa humanidade se respeitamos a humanidade dos outros”. Busca-se uma universalização da dignidade da pessoa humana, capaz de nortear o tratamento a ser dado às outras pessoas, em uma relação incindível da Ética. Assim compreendido, o desejo ético de viver uma vida boa provê uma razão moral justificável sobre o que devemos aos outros e sobre como devemos tratar os outros (DWORKIN, 2011, p. 607-608).

Essa relação entre a ética e a moral formará a base sobre a qual Dworkin trabalha o seu conceito de Direito e o paralelo com o estilo de gravação do filme mostra-se bem coerente com o avanço do positivismo para o pós-positivismo. Como colocado inicialmente, o filme é gravado em preto e branco e assim permanece para as pessoas que vivem de acordo com as regras estabelecidas. Contudo, com a emancipação do adolescente Jonas para a qualidade de portador de memórias, o contato com esse lado inexplorado do seu ser e o abandono das cinco regras de convivência, a filmagem mostra um novo mundo com cores, passando a gravação a ser colorida pelos olhos desse adolescente. O pós-positivismo, de igual modo, possui cores, uma liberdade inexistente no positivismo kelseniano que tornará, nas palavras de Dworkin (2007, p. 492), a sociedade mais construtiva, contestadora e fraterna.

 

6     CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

A relação entre arte e Direito, entre o filme “O Doador de Memórias” e a ciência jurídica, foi abordada por iniciativa do grupo de pesquisa “Hermenêutica Jurídica e Jurisdição Constitucional”, vinculado ao programa de pós-graduação em sentido estrito (doutorado) da Faculdade de Direito de Vitória (FDV). Longe de exaurir a temática sobre o tema, o presente artigo correlacionou dois conceitos de Direito – positivismo e pós-positivismo – com a estrutura social presente no filme.

A partir da compreensão do contexto estatal-estrutural apresentado no filme, verificou-se ser possível trabalhar um paralelo com o conceito de Direito que busca no positivismo uma forma de estruturação do pensamento jurídico. Desde a análise da ideia de paradigmas e o seu consequente rompimento, seja no filme, seja no Direito, passando por uma rápida análise do filme “O Doador de Memórias”, do positivismo jurídico e do pós-positivismo jurídico, verificou-se uma relação direta entre os conceitos apresentados e uma nova forma de abordagem do Direito, em especial para alunos da graduação.

Assim, a relação entre o Direito e o filme “O doador de memórias” é possível, na medida em que o filme apresenta uma estrutura pré-estabelecida e vinculante para os que vivem na sociedade, ao passo que os casos sem uma resposta a priori são levados aos portadores de memórias com capacidade de dar uma solução para o problema que a sociedade tomaria caso tivesse esses privilegiados conhecimentos. O paralelo com o Direito surge nesse contexto, uma vez que a leitura feita de Kelsen, com o giro decisionista, possibilitou reconhecer a limitação do positivismo jurídico e tornou possível ao magistrado decidir fora da moldura.

Esse e muitos outros pontos de contato entre a arte e a ciência jurídica servem como exemplo de uma abordagem alternativa para a compreensão do Direito. Da mesma forma que o pós-positivismo jurídico trouxe um novo colorido para o Direito – cuja proposta a partir de Dworkin se insere em um projeto não só da ciência jurídica, mas de vida em comunidade –, a abordagem diferenciada da ciência jurídica feita no presente artigo serve para proporcionar uma análise além do preto e do branco inerentes ao positivismo jurídico.

 

REFERÊNCIAS

 

BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Tradução de Mauro Gama e Cláudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. 272 p.

 

BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do Direito. Rio de Janeiro: Ícone, 2006.

 

BENJAMIN, Cássio Corrêa; SOUZA, Eron Geraldo. O problema da interpretação em Kelsen. Revista da Faculdade de Direito da UFG [online], v.34, n. 1, p. 132-148, jan./jun. 2010. Disponível em: <https://www.revistas.ufg.br/revfd/article/view/9969/9524>. Acesso em: 5 ago. 2017.

 

CAPPELLETTI, Mauro. O controle judicial de constitucionalidade das leis no Direito Comparado. Tradução de Aroldo Plínio Gonçalves. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1999. 141 p.

 

CARVALHO NETTO, Menelick de. Requisitos pragmáticos da interpretação jurídica sob o paradigma do Estado Democrático de Direito. Revista brasileira de Direito Comparado, Belo Horizonte: Mandamentos, v. 3, p. 573-586, 1999.

 

CARVALHO NETTO, Menelick de. Racionalização do ordenamento jurídico e democracia. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, v. 88, p. 81-108, dez. 2003.

 

CRETELLA JÚNIOR, José; CRETELLA, Agnes. Vida e obra de Hans Kelsen. In: KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito: versão condensada pelo próprio autor. Tradução de José Cretella Júnior e Agnes Cretella. 4. ed. rev. ampl. atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 17-18.

 

COURA, Alexandre de Castro. Sobre discricionariedade e decisionismo na interpretação e aplicação das normas em Kelsen. In: FARO, Julio Pinheiro; BUSSINGUER, Elda Coelho de Azevedo (Org.). A diversidade do pensamento de Hans Kelsen. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p. 131-139.

 

DWORKIN, Ronald. O império do direito. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2007. 513 p.

 

DWORKIN, Ronald. Justiça para Ouriços. Tradução de Pedro Elói Duarte. Coimbra: Almedina: 2012. 515 p.

 

DWORKIN, Ronald. O que é uma vida boa? Tradução de Emilio Peluso Neder Meyer e

Alonso Reis Freire. Revista direito GV, v. 14, p. 607-616., jul./dez. 2011. Disponível em < http://direitosp.fgv.br/publicacoes/revista/edicao/revista-direito-gv-14>. Acesso em: 6 dez. 2017.

 

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: traços de uma hermenêutica filosófica. Tradução de Flávio Paulo Meurer. 7 ed. Petrópolis: Vozes, 2005.

 

HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro: estudos de Teoria Política. Tradução de George Sperber, Paulo Astor Soethe e Milton Camargo Mota. São Paulo: Loyola, 2007.

 

KELSEN, Hans.  Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

 

KUHN, Thomas Samuel. A estrutura das revoluções científicas. Tradução de Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 1998.

 

KUHN, Thomas Samuel. A estrutura das revoluções científicas. Tradução de Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira. São Paulo: Perspectiva, 2001.

 

MACEDO JUNIOR, Ronaldo Porto. Do xadrez à cortesia: Dworkin e a teoria do direito contemporânea. São Paulo: Saraiva, 2014.

 

STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

 

 

Data de Submissão: 15/08/2018, Data de Aprovação: 12/09/2018

 

COMO CITAR ESTE ARTIGO

COURA, Alexandre de Castro; ZANOTTI, Bruno Taufner. O “Doador de Memórias” à luz da cultura positivista: por uma nova forma de ver e aprender direito. Revista de Direito da Faculdade Guanambi, Guanambi, BA, v. 5, n. 1, p. 29-49, jan./jun. 2018. ISSN 2447-6536. Disponível em: http://revistas.faculdadeguanambi.edu.br/index.php/Revistadedireito/article/view/197. Acesso em: dia mês. Ano. doi: https://doi.org/10.29293/rdfg.v5i1.197.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 



[1] Doutor e mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professor do programa de pós-graduação em sentido estrito (mestrado e doutorado) da Faculdade de Direito de Vitória (FDV). Líder do Grupo de Pesquisa CNPq “Hermenêutica Jurídica e Jurisdição Constitucional”. Promotor de Justiça no Estado do Espírito Santo.

[2] Doutor e mestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV). Especialista em Direito Público pela FDV. Professor de Direito Constitucional e Direito Penal. Professor da especialização da Escola Superior do Ministério Público do Estado do Espírito Santo. Delegado da Polícia Civil do Estado do Espírito Santo.

[3] Cita-se o exemplo trabalhado por Carvalho Neto (2003, p. 103). Um professor, que morava em um país autoritário, foi interrompido  durante  uma  aula  por  um  aluno  que  entrou em sua, argumentando que estava sendo perseguido pelo tropa militar do regime desse país. Em seguida, o aluno solicitou que o professor lhe desse proteção, a fim de poupar sua vida ou sua integridade física. Com isso, o professor ofereceu a sua mesa, embaixo da qual ele poderia se esconder. Posteriormente, o professor foi mais uma vez interrompido pela tropa militar do regime que efetuou buscas no local em busca do fugitivo sem logra êxito. Os militares, antes de irem embora, perguntaram ao professor se sabia onde estava o cidadão que eles procuravam. Numa sociedade que tem como premissa absoluta “não mentir”, o professor deverá entregar o aluno, mesmo que isso represente sua morte ou a violação de seus direitos.

[4] Os positivistas são classificados em positivistas inclusivistas (que incluem os princípios em sua estrutura) e os exclusivistas (que não aceitam o fato de o Direito ter em sua estrutura princípios). “Essa divisão, de certo modo, agudizou a natureza metodológica do debate teórico-jurídico e veio a exigir uma parafernália filosófica ainda mais complexa, capaz de municiar de novos argumentos cada um dos polos do debate que dominou os anos 1980-2000. Por um lado, posicionaram-se os positivistas, divididos entre inclusivistas (ou soft positivists), como H. L. A. Hart, Jules Coleman, Will Waluchow e outros, e exclusivistas (ou hard positivists), como Joseph Raz, Andrei Marmor e outros” (MACEDO JUNIOR, 2014, p. 166-167).

 

[5] “O contato posterior, nos Estados Unidos, nas Universidades de Harvard (1941-1942) e da Califórnia (1945), com o Direito consuetudinário da Commom Law trouxe-lhe nova perspectiva e visão, passando Kelsen a considerar o Direito de um modo mais plástico, fundado nos precedentes” (CRETELLA JÚNIOR; CRETELLA, 2006, p. 18).

[6] “Essa passagem tem provocado muita controvérsia entre os leitores de Kelsen. Ela pode ser compreendida como uma radicalização de suas noções e de seu pensamento. Isso levaria até mesmo, no limite, a uma posição que acabaria por colocar em xeque a própria ideia de um Direito positivo. Por outro lado, pode-se também pensar que se trata apenas de uma frase em uma obra muito vasta. Isso implica dizer que não se poderia dar a essa frase um peso que parece desproporcional à sua extensão” (BENJAMIN, SOUZA, p. 147-148).

[7] “Através de uma interpretação autêntica deste tipo pode criar-se Direito, não só no caso em que a interpretação tem caráter geral, em que, portanto, existe interpretação autêntica no sentido usual da palavra, mas também no caso em que é produzida uma norma jurídica individual através de um órgão aplicador do Direito, desde que o ato deste órgão já não possa ser anulado, desde que ele tenha transitado em julgado. E fato bem conhecido que, pela via de uma interpretação autêntica deste tipo, é muitas vezes criado Direito novo — especialmente pelos tribunais de última instância” (KELSEN, 2003, p. 394-395).

[8] Como coloca Dworkin (2011, p. 610), viver tendo como referência o interesse próprio não se apresenta como condição suficiente para viver bem.