OS DESAFIOS PARA A IMPLEMENTAÇÃO DE UM TRIBUNAL CONSTITUCIONAL BRASILEIRO

THE CHALLENGES FOR THE IMPLEMENTATION OF A BRAZILIAN CONSTITUTIONAL COURT

 

 

Roberta Magalhães Gubert[1]

Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), São Leopoldo, RS, Brasil.

robertamgubert@gmail.com

 

 

Resumo: O presente artigo tem por objetivo abordar a questão dos modelos de justiça constitucional e debater a (in)existência (e a necessidade de implantação) de um verdadeiro Tribunal constitucional em solo brasileiro. O trabalho está dividido em duas partes; na primeira apresenta os modelos de justiça constitucional – da Suprema Corte norte-americana e dos Tribunais Constitucionais europeus – e, na segunda, apresenta o modelo brasileiro. Por fim, conclui que a ausência de certos traços – como a separação orgânica e institucional do Tribunal Constitucional da estrutura do Poder Judiciário, a competência exclusiva e concentrada para o contencioso constitucional, bem como as diferenças quanto a forma de provimento dos cargos e a permanência na Corte por mandato com prazo determinado – comprovam o distanciamento que existe entre o Supremo Tribunal Federal e as Cortes Constitucionais européias.

 

Palavras-chave: Justiça Constitucional. Tribunal Constitucional. Supremo Tribunal Federal.

 

Abstract: This article aims to address the issue of constitutional justice models and discuss the (in) existence (and the need for implementation) of a real Constitutional Court on Brazilian soil. The work is divided into two parts; in the first one it presents the models of constitutional justice - the US Supreme Court and the European Constitutional Courts - and, in the second, it presents the Brazilian model. Finally, it concludes that the absence of certain features - such as the organic and institutional separation of the Constitutional Court from the structure of the Judiciary, exclusive and concentrated jurisdiction for constitutional litigation, as well as differences in the manner of filling positions and permanence in the Court by mandate with determined term - prove the distance that exists between the Federal Supreme Court and the European Constitutional Courts.

 

Keywords: Constitutional Justice. Constitutional Court. Federal Court of Justice.

 

1      INTRODUÇÃO

 

A temática da globalização dos problemas fundamentais dos estados contemporâneos no cenário do século XXI nos convida a uma reflexão sobre os desafios – apesar de todo avanço e expansão que marcaram o direito constitucional no último século – que ainda se apresentam ao constitucionalismo contemporâneo; o fenômeno da globalização expôs um aparente paradoxo a ser desvendado: de um lado, surge o questionamento acerca do futuro do estado (moderno) – estruturado tradicionalmente na base das ideias de povo, território e governo soberano – diante da formação de novas configurações de organização política e econômica, e de outro, apresentam-se os problemas e, principalmente, as demandas do estado nacional, tais como a busca pela maior efetividade de direitos sociais, debate ainda muito presente no debate interno dos contextos nacionais.

Sob a perspectiva do futuro do Estado, torna-se necessária a  investigação acerca das transformações do Estado contemporâneo – impostas por novos desafios geopolíticos e econômicos, tais como a globalização e o chamado processo de “desconstitucionalização dos estados nacionais”, o desenvolvimento da ideia de constitucionalismo multinível, o capitalismo financeiro e ausência de fronteiras na atuação e na influência dos mercados, o terrorismo, a crise migratória do fluxo de populações vindas especialmente da África e da Ásia para o continente europeu, mas também para a América do Norte e do Sul, as crises ambientais, entre outros – e, especialmente, a abertura para se pensar novos modelos de governo não fundados, necessariamente, na concentração de poder na figura do Estado constitucional.

Muitos trabalhos acadêmicos vem apresentando grande esforço criativo nesta seara, na medida em que, além de analisar e contrapor a formação histórica do estado nacional e o atual cenário existente, são propositivos, e buscam vislumbrar novas instituições e formas de organização, capazes de atender mais adequadamente às exigências presentes e futuras.

Nesse sentido, destacam-se pensadores como David Held, especialmente na obra Cosmopolitismo e Modelos de Democracia, Jacques Chevallier, com O Estado Pós-Moderno, Michael Hardt e Antonio Negri, pela trilogia Império, Multidão e Comune, Georg Sorensen, na obra La transformación del Estado, assim como Saskia Sassen em seu Territory, Authority, Rights: from medieval to global assemblages, e Pierre Rosanvallon no livro La Legitimidad Democrática, entre muitos outros, que refletem sobre temas centrais da filosofia política – tais como democracia, soberania, elementos do Estado moderno, constitucionalismo, Estado de bem-estar social – e apontam para a insubsistência do modelo atual, sem deixar de refletir sobre o paradoxal problema decorrente da necessidade de manutenção de algum vínculo entre as populações e a noção de constituição.No âmbito brasileiro, a obra As crises do Estado e da Constituição e a transformação espacial dos direitos humanos, de José Luís Bolzan de Morais, é precursora na temática. O trabalho identifica as crises do estado contemporâneo no cenário da globalização – conceitual, estrutural, institucional/constitucional, funcional e política – e retoma o debate acerca do papel (ainda necessário) a ser desempenhado pelo constitucionalismo na proteção dos direitos humanos[2].

Contudo, curiosamente ainda existe – e talvez de forma mais intensa nos últimos anos, em decorrência da crise econômica mundial que, especialmente após 2008, vem colocado em risco direitos sociais como previdência e auxílio-desemprego, tradicionalmente assegurados no contexto europeu e norte-americano –, uma forte demanda pela presença das instituições estatais na vida das populações nacionais e pela efetividade de direitos sociais que dependem quase exclusivamente das estruturas do Estado constitucional.

Por tudo isso, não podemos olvidar que o termo Estado, aplicado em seu sentido moderno, por si só já designa uma instituição histórica e geograficamente situada. Como explica J. J. Canotilho, o termo Estado, mesmo sem adjetivos, carrega consigo um sentido profundo de historicidade, indissociável do processo ocidental da modernidade.

Basta um breve relance de olhos pela vasta literatura jurídica, política e económica relacionada com o Estado para verificarmos esta intriga: o Estado do não está só. Tem sempre o acompanhamento de adjectivos. À guisa de um curto inventário, apresentamos algumas adjectivações: “estado subsidiário”, “estado sobrecarregado”, “estado dispensador de serviços”, “estado activo”, “estado económico”, “estado-arena”, “estado desobediente”, “estado aberto”, “estado cooperativo”, “estado protector”, “estado garantidor”, “estado desfronteirizado”, “estado internacional”, “estado cosmopolítico”, “estado ponderador”, “estado cooperativo”, “estado ecológico”, “estado argumento”, etc. Pela lista assim esboçada, poderemos ver que nem sequer a sobrecarregámos com adjectivos tradicionais, como “estado de direito”, “estado democrático”, “estado autoritário”, “estado social”, “estado liberal”, “estado intervencionista”, “estado socialista”, “estado unitário”, “estado regional”, “estado federal”, “estado republicano”, “estado nação”. Quando vemos o Estado cercado de adjectivos, talvez se possa dizer o que Carl Schmitt afirmou acerca da Constituição. Mais ou menos isto: um Estado carecedor de adjectivos indicia um claro mal-estar do próprio Estado. Parece não ter substância. Apela a algumas qualidades. É tudo e nada[3].

 

Por isso, a paradoxalidade do problema é tão instigante: a crise do estado contemporâneo é ao mesmo tempo a crise do modelo de estado social e a crise pela insuficiência do estado social. Daí a premência e a relevância em se discutir o compartilhamento global dos problemas fundamentais do estado constitucional.

Nesse contexto, a atuação da justiça constitucional e o aclaramento do embate entre as noções de jurisdição constitucional, judicialização da política e ativismo judicial (ainda) são um grande desafio do constitucionalismo contemporâneo, razão pela qual o presente artigo pretende abordar a questão dos modelos de justiça constitucional e debater a (in)existência e a necessidade de implantação de um verdadeiro Tribunal constitucional em solo brasileiro.

 

2     OS MODELOS DE JUSTIÇA CONSTITUCIONAL

 

A ideia de uma justiça constitucional está pautada principalmente nas noções de controle de constitucionalidade e jurisdição constitucional. Embora a segunda, desenvolvida especialmente no constitucionalismo do segundo pós-guerra, seja mais recente que a primeira, foi somente com a afirmação daquela que os mecanismos de proteção da Constituição (controle) ganharam um novo patamar de importância e se expandiram em abrangência e complexidade, a partir da segunda metade do século XX.

O desenvolvimento da justiça constitucional é certamente o acontecimento mais marcante do Direito constitucional europeu da segunda metade do século XX. Atualmente não podemos mais conceber um sistema constitucional que não dê lugar a essa instituição e, na Europa, todas as novas Constituições prevêem a existência de uma Corte Constitucional.[4]

 

Desta forma, os modelos de controle da constitucionalidade não podem ser confundidos com os conceitos de jurisdição e justiça constitucional, haja vista que a função de controlar a constitucionalidade das leis é apenas uma das atribuições de uma justiça que exerce a jurisdição constitucional.

Dentre as diversas atribuições e competências da justiça constitucional, J. J. Gomes Canotilho[5] destaca que

são muito heterogéneas as funções da justiça constitucional. A pontualização dos momentos relevantes na génese da justiça constitucional permite agora, em forma de síntese, individualizar os seus domínios típicos, ressalvando-se sempre, como é natural, as particularidades concretas de cada ordenamento jurídico-constitucional: (1) litígios constitucional (“Verfassungsungstreitigkeiten”), isto é, litígios entre órgão supremos do Estado (ou outros entes com direitos e deveres constitucionais); (2) litígios emergentes da separação vertical (territorial) de órgãos constitucionais (ex.: federação e estados federados, estados e regiões); (3) controlo da constitucionalidade das leis e, eventualmente, de outros actos normativos (Normenkrontolle); (4) protecção autónoma de direitos fundamentais (“Verfassungsbeschwerde”, “recurso de amparo”); (5) controlo da regularidade de formação dos órgãos constitucionais (contencioso eleitoral) e de outras formas importante de expressão política (referendos, consultas populares, formação de partidos); (6) intervenção nos processos de averiguação e apuramento da responsabilidade constitucional e, de um modo geral, a «defesa da constituição» contra crimes de responsabilidade (Verfassungsschutzverfahren).

 

Quanto ao desenvolvimento da noção de jurisdição constitucional, importante resgatar a obra A Força Normativa da Constituição, de Konrad Hesse – considerada por muitos, na seara do direito constitucional, a mais importante do século XX –, uma vez que representa um marco “divisor de águas” para as transformações do constitucionalismo contemporâneo. Buscando romper com o conceito sociológico de Constituição defendido por Ferdinand Lassalle, no século XIX, para o qual a essência da Constituição residiria nos interesses políticos dos “fatores reais de poder”, enquanto a Constituição em seu sentido jurídico não passaria de uma mera folha de papel, Hesse introduz a ideia de que as normas constitucionais possuem, por si só, força jurídica para regular o Estado e a sociedade, ou seja, as normas da Constituição são normas jurídicas e, portanto, dotadas de imperatividade[6]. É com Hesse que passamos a afirmar: a Constituição obriga.Nas palavras de Ingo Wolfgang Sarlet,

a Constituição, ainda segundo Hesse, é dotada de uma pretensão de eficácia, ou seja, de que a situação por ela regulada pretende ser concretizada na realidade, pretensão de eficácia que, por sua vez, não pode estar dissociada das condições históricas de sua realização, contemplando aqui as contemplando aqui as condições naturais, técnicas, econômicas e sociais, pois somente dessa forma a Constituição e sua pretensão de eficácia lograrão imprimir ordem à realidade política e social[7].

 

A força normativa da Constituição, ou seja, sua pretensão (jurídica) de ser efetiva e eficaz irá depender, portanto, de mecanismos jurídicos capazes de transformar em realidade os conteúdos nela previstos. Com isso, Hesse defende a existência de uma “vontade de Constituição”[8], compartilhada por todos aqueles que participam da vida constitucional. Para tanto, fatores externos e internos deverão contribuir para esse acontecer das normas constitucionais. Os fatores externos seriam aqueles relacionados aos atores e aos interesses da vida política, social, econômica e cultural do país, enquanto os internos seriam os mecanismos e instrumentos propriamente jurídicos, instituídos pela Constituição, para assegurar seu próprio cumprimento – tais como os mecanismos de controle de constitucionalidade e ações constitucionais[9].

Esse processo de “ressignificação” das Constituições – que já existiam desde o século XVIII –, passa agora a assegurar não apenas uma garantia formal de sua existência, mas sim uma aplicação substancial de seu conteúdo, criando um processo de “constitucionalização” ou “publicização” do Direito, ou seja, a Constituição torna-se o referencial de validade para todos os ramos do direito (civil, penal, trabalho, etc.). É na Constituição que reside o fundamento para todo o direito; e diante dessa nova relevância atribuída às normas constitucionais, sua efetividade – transformação em realidade concreta – também se torna o grande objetivo a ser perseguido e alcançado.

A jurisdição constitucional, portanto, vai se desenvolver no contexto do século XX, a partir da formação do próprio Estado Democrático de Direito, impulsionada pela ideia de força normativa da Constituição. A característica marcante da jurisdição constitucional é, por conseguinte, uma atuação e uma presença mais evidente do Judiciário nas questões econômicas, sociais e políticas do país, especialmente nas que envolvem a eficácia dos direitos fundamentais. Esse processo de expansão da jurisdição constitucional é autoevidente e pode ser explicado no sentido de que se todo fundamento de validade do direito reside na Constituição e esta é uma norma jurídica dotada de imperatividade, logo toda a jurisdição é uma jurisdição constitucional.

Nesse contexto, a importância da justiça constitucional se mostra clara e indiscutível, visto que a ela caberá o exercício deste papel de transformação social. Para Lênio Luiz Streck, a jurisdição constitucional é fundamento de validade do próprio Estado Democrático de Direito[10]; e, para Vital Moreira, “a existência de uma jurisdição constitucional, sobretudo se confiada a um tribunal específico, parece ter-se tornado nos tempos de hoje um requisito de legitimação e de credibilidade política dos regimes constitucionais democráticos”[11].

Contudo, apesar da clara distinção acima elencada, existe uma certa correlação entre essas noções, uma vez que os modelos de justiça constitucional se desenvolveram, em grande parte, em decorrência dos sistemas de controle jurisdicional da constitucionalidade adotados por cada ordenamento jurídico. Desta forma, assim como se fala em dois grandes modelos de justiça constitucional – da Suprema Corte norte-americana e dos Tribunais Constitucionais europeus –, pode-se identificar também duas grandes vertentes dos sistemas de controle da constitucionalidade – o sistema de controle difuso e concreto, iniciado pela ideia de judicial review, e o sistema europeu continental, de controle concentrado e abstrato.

Não obstante, qualquer tentativa de vinculação obrigatória entre determinado modelo e sistema será precipitada, incorrendo em excessivo reducionismo, haja vista o crescimento exponencial da complexidade dos mecanismos de controle e técnicas de interpretação constitucional, que permitiram o entrecruzamento desses modelos e sistemas e o surgimento de figuras híbridas de controle da constitucionalidade – dos quais o Brasil talvez seja o exemplo mais fecundo.

O primeiro modelo de justiça constitucional a se desenvolver foi aquele decorrente da experiência histórica do constitucionalismo norte-americano, na qual não se empregou a ideia de uma jurisdição propriamente ou exclusivamente constitucional. J. J. Gomes Canotilho denomina este de Modelo Unitário, uma vez que a jurisdição constitucional não será exercida com autonomia institucional, ou seja, todos os juízes e tribunais terão competência (poder-dever), no âmbito da prestação jurisdicional comum das ações e recursos a eles submetidos, de decidir acerca da conformidade constitucional[12]. Por isso, a denominação modelo unitário, uma vez que todos os órgãos que compõem o Poder Judiciário exercerão função semelhante de guarda da Constituição, funcionando de forma una. Este é um modelo adotado por países como Estados Unidos, Canadá, Austrália, Índia e Brasil.

No sistema estadudinense, a justiça constitucional é confiada ao conjunto do aparelho jurisdicional e não se distingue da justiça ordinária, na medida em que os litígios, de qualquer natureza, são julgados pelos mesmos tribunais e nas mesmas condições. A dimensão constitucional pode estar presente em todos os litígios e não necessita de tratamento especial: não há propriamente contencioso constitucional, assim como não existe contencioso administrativo ou judicial, não há, pois, nenhuma razão para distinguir as questões levadas perante o mesmo juiz.[13]

 

O desenvolvimento deste modelo se deu em grande parte pela construção jurisprudencial da noção de judicial review, denominado no Brasil de controle difuso. O marco histórico que inaugura esta ideia – e a própria noção de um sistema de controle de constitucionalidade – é o caso Marbury versus Madison, julgado pela Supreme Court dos Estados Unidos em 1803. Os principais argumentos utilizados na fundamentação deste processo – supremacia da constituição e judicial review – não foram teses inéditas, fato que em nada reduz a importância do caso.

Antecedente histórico muito relevante para formação da ideia de um controle jurisdicional dos atos estatais reside na tradição inglesa dos séculos XVI e XVII, na qual Sir Edward Coke[14] já defendia a possibilidade de controle sobre os atos do Parlamento, no sentido de que estes não poderiam interferir na formação e aplicação da common law, sendo esta uma atividade exclusiva dos juízes. Nesse sentido, Lênio Streck[15] destaca a importância da adoção do rule of Law – Estado de Direito ou “governo da lei” – na criação do judicial review, isso porque

essa concepção de “governo da lei” foi importantíssima para a afirmação (e legitimidade) do judicial review. Na verdade, a intervenção das Cortes na revisão dos frutos do processo legislativo é resultado da compreensão da existência de um “governo das leis” (rule of law), à distinção de “governo dos homens”, como império da soberania popular (rule of people). Ou seja, não bastaria a legalidade para que se substituísse o “governo dos homens” pelas leis, mas seria necessária uma correspondência entre a legislação e a afirmação dos direitos civis e políticos. Com isso, houve uma “desvalorização da legislação parlamentar como fonte do direito”, fortalecendo o papel das Cortes de tal forma que a tradição norte-americana ficou marcada pelo “risco de uma passagem da supremacia da Constituição à supremacia das Cortes Constitucionais”, devido à existência de um controle da constitucionalidade fortalecido.

 

O paradigmático caso Marbury v. Madison teve início com o writ of mandamus interposto, em 1801, por William Marbury alegando que havia sido impedido de assumir a função pública de juiz de paz, por ato do então Secretário de Estado James Madison, durante o mandato do novo Presidente da República Thomas Jefferson (partido republicano), como represália ao fato de que o cargo havia sido designado por lei aprovada ainda no final da presidência de John Adams, membro do partido federalista e opositor político da atual administração. A decisão final do caso, que chega ao conhecimento da Suprema Corte norte-americana pela via recursal, foi proferida pelo Justice John Marshall[16].

O voto decisivo foi estruturado em duas partes. A primeira dedicada à demonstração do direito de Marbury e a segunda declarando que, reconhecido este direito, deveria haver, então, uma solução jurídica para assegurá-lo. A fundamentação construída por Marshall é no sentido de que inexistindo óbice legal ou vício no ato de nomeação de Marbury, o decreto de Madison careceria de legitimidade e amparo constitucional, razão pela qual deveria ser cassado. Ocorre que que a Constituição dos Estados Unidos não conferia expressamente à Suprema Corte, ou a qualquer outro órgão jurisdicional, a competência para agir nesse sentido[17]. E esse é o ponto de maior inovação.

Marshall afirma que diante de um conflito de normas, cabe ao Judiciário, dentre os três poderes, a função de interpretar a aplicar as leis e, portanto, também excluí-las quando em contradição com a norma maior. Ou seja, mesmo não existindo previsão expressa do cabimento dessa função ao Judiciário ou a qualquer dos outros poderes, o controle de constitucionalidade das leis, por ele denominado de judicial review, seria uma função implícita, decorrente da função precípua do Poder Judiciário de interpretar e aplicar as leis. Nesse sentido, é pertinente a análise de Alexis de Tocqueville[18] acerca da “invenção” do estado norte-americano e a importância do caso concreto na atuação do Judiciário:

A segunda característica do poder judiciário é a de se pronunciar sobre casos particulares e não sobre princípios gerais. Se um juiz, deslindando uma questão particular, destrói um princípio geral, pela certeza que se tem de que, sendo cada uma das consequências desse mesmo princípio atingidas da mesma maneira, o princípio se torna estéril, ele permanece dentro do círculo natural de sua ação; mas quando o juiz ataca diretamente o princípio geral e o destrói sem ter em vista um caso particular, sai do círculo dentro do qual todos os povos concordaram em encerrá-lo, torna-se algo de mais importante, de mais útil talvez, que um magistrado, mas deixa de representar o poder judiciário [...] a causa acha-se exclusivamente no seguinte fato: os americanos reconheceram o direito de fundarem os juízes as duas decisões na Constituição, antes que nas leis. Noutras palavras, permitiram-lhes jamais aplicar as leis que lhes parecessem inconstitucionais. (grifo nosso)

 

A fundamentação de Marshall foi inspirada, em grande parte, na obra “O Federalista”, de Alexander Hamilton, datada de 1787, na qual já se debatia o judicial review – ou seja, a possibilidade de anulação dos atos do Legislativo, pelo Judiciário, quando contrários à Constituição. Nas palavras do próprio Alexander Hamilton, seu texto de n. 78.

Relativamente à competência das cortes para declarar nulos determinados atos do Legislativo, porque contrários à Constituição, tem havido certa surpresa, partindo do falso pressuposto de que tal prática implica em uma superioridade do Judiciário sobre o Legislativo [...] Não há posição que se apoie em princípios mais claros que a de declarar nulo o ato de uma autoridade delegada, que não esteja afinada com as determinações de quem delegou a autoridade. Consequentemente, não será válido qualquer ato legislativo contrário à Constituição. Negar tal evidência corresponde a afirmar que o representante é superior ao representado, que o escravo é mais graduado que o senhor, que os delegados do povo estão acima do próprio povo, que aqueles que agem em razão de delegações de poderes estão impossibilitados de fazer não apenas o que tais poderes não autorizam, mas sobretudo o que eles proíbem [...] É muito mais racional supor que as cortes foram destinadas a desempenhar o papel de órgão intermediário entre o povo e o Legislativo, a fim de, além de outras funções, manter este último dentro dos limites fixados para sua atuação. O campo de ação próprio e peculiar das cortes se resume na interpretação das leis. Uma Constituição é, de fato, a lei básica e como tal deve ser considerada pelos juízes. Em consequência, cabe-lhes interpretar seus dispositivos, assim como o significado de quaisquer resoluções do Legislativo. Se acontecer uma irreconciliável discrepância entre estas, a que tiver maior hierarquia e validade deverá, naturalmente, ser a preferida; em outras palavras, a Constituição deve prevalecer sobre a lei ordinária, a intenção do povo sobre a de seus agentes.[19] (grifo nosso)

 

Com o reconhecimento do judicial review, dá-se início ao sistema americano de controle da constitucionalidade – que também pode ser denominado controle difuso, caracterizando-se como uma fiscalização em concreto da matéria, uma vez que a violação da Constituição é julgada como uma questão prejudicial à solução do mérito de um caso concreto. Apesar de sua raiz norte-americana, este sistema foi reproduzido por muitos países, inclusive o Brasil. A inserção deste modelo de justiça constitucional e de sistema de controle no cenário jurídico brasileiro se deu nos mesmos moldes da experiência norte-americana, ou seja, a adoção dessa função por parte dos juízes não está expressamente autorizada pelo texto constitucional, mas decorre da importação, pela carta constitucional de 1891, do modelo de Estado norte-americano – com a adoção do republicanismo, do federalismo, do presidencialismo e de uma Suprema Corte, aqui denominada de Supremo Tribunal Federal.

A principal característica do modelo difuso é que o controle da constitucionalidade é competência comum de todos os órgãos do Poder Judiciário, ou seja, todos os juízes, na prestação de sua jurisdição, terão o poder/dever de afastar a aplicação das leis tidas por inconstitucionais diante do julgamento de um caso concreto. Desta forma, podemos concluir que o sistema de controle difuso é aquele no qual o julgador é chamado a decidir acerca da constitucionalidade das leis em sede de um processo singular (caso concreto),em razão do efeito da lei questionada sobre a decisão daquele caso – decidindo pela aplicação da lei ou seu afastamento,quando configurada  a inconstitucionalidade –, também por isso, Gomes Canotilho denomina este de modelo unitário, haja vista que o acesso à Suprema Corte se dará pela via recursal, mantendo a unidade do Judiciário.

Já o denominado modelo europeu (continental) de justiça constitucional é atribuído, majoritariamente, à Hans Kelsen[20]. A proposta do jurista se deu por meio da criação da Corte Constitucional, promovida pela promulgação da Constituição da Áustria de 1° de outubro de 1920. A ideia de um Tribunal Constitucional, separado da estrutura do Poder Judiciário, formado por magistrados, professores de direito e advogados, com a atribuição exclusiva de julgar a compatibilidade das leis perante a Constituição, foi idealizada por Kelsen em um período no qual ainda persistia uma concepção formalista de Constituição – apenas considerada como norma jurídica que ocupa o vértice de um ordenamento composto exclusivamente de normas jurídicas e organizado de forma hierárquica e escalonada. Desse órgão, criado com finalidade específica, origina-se o sistema concentrado de controle da constitucionalidade[21].

Em sua autobiografia[22], Kelsen rememora sobre o trabalho constituinte

Minha tendência própria era codificar de modo mais irrepreensível possível do ponto de vista da técnica jurídica os princípios políticos que me eram dados e construir, assim, garantias eficazes para a constitucionalidade da atividade estatal. Considerei como o núcleo jurídico da Constituição a seção sobre as garantias constitucionais e administrativas. Nesse sentido, pude referir-me a instituições da antiga monarquia: a Corte Imperial e o tribunal Administrativo. Este último pôde ser incorporado sem modificações substanciais. A Corte Imperial foi transformada em uma verdadeira corte constitucional – a primeira desse tipo na história do direito constitucional. Até então, nenhuma corte havia recebido competência para revogar leis por motivo de inconstitucionalidade com efeito geral e não restrito ao caso particular [...] A seção que me era mais cara e que eu considerava minha obra mais pessoal, a jurisdição constitucional, não sofreu alteração alguma nos debates parlamentares. (grifo nosso)

 

Dentre as principais características desse modelo de justiça constitucional, que guarda significativa originalidade em relação ao modelo norte-americano, destacam-se a forma de provimento dos magistrados, a concentração da competência para o julgamento da constitucionalidade das leis e os efeitos gerais e vinculantes das decisões proferidas, razão pela qual Gomes Canotilho denomina este de Modelo da Separação. Sob esta nova perspectiva organizativa, a justiça constitucional será confiada a um Tribunal institucionalmente separado do Poder Judiciário, com a competência específica de julgar as questões constitucionais, excluindo esta atribuição dos demais órgãos do Poder Judiciário[23].

Na atualidade, a preferência europeia pelo modelo de justiça constitucional concentrada – com a exclusão do controle difuso – e pela implantação de Tribunais Constitucionais pode ser comprovada por todo o continente europeu. Nesse sentido, o breve inventário de Louis Favoreu[24] é bastante minucioso:

A história das Corte Constitucionais não é longa, pois realmente teve início em 1920, com a criação da Corte Constitucional da Tchecoslováquia (Constituição de 29 de fevereiro de 1920) e a da Alta Corte Constitucional da Áustria (Constituição de 1 de outubro de 1920). A Espanha republicana seguiu esse movimento, criando em sua Constituição de 1931 um Tribunal de Garantia Constitucionais que durou até a ascensão de Franco. A segunda onda situa-se após a Segunda Guerra Mundial, quando após o restabelecimento da Corte austríaca de 1945, forma instituídas a Corte Constitucional italiana, 1948, e o Tribunal Constitucional Federal alemão, 1949, aos quais podemos acrescentar a criação, alguns anos mais tarde, das Cortes Constitucionais da Turquia (1961) e Iugoslávia (1963). A criação do Conselho Constitucional de França, 1959, deve ser situada nesse movimento, mesmo que na origem não parecesse ter as mesmas finalidades. A terceira onda manifestou-se nos anos 1970, com a criação dos Tribunais Constitucionais de Portugal (Constituição de 1976, revista em 1982), Espanha (Constituição de 1978) e, também, em certa medida, a Corte Especial Superior da Grécia (1975); movimento que se propagou na Bélgica, com a Corte de Arbitragem (1983) que teve grande desenvolvimento na Europa do Leste: Polônia (1985), Hungria (1989), Romênia, Bulgária (1991), Albânia e República Tcheca (1992), Lituânia (1993), Eslovênia (1994), Rússia (1995) e Armênia (1996).

 

Louis Favoreu[25] afirma que a opção europeia significou a aceitação de um desafio até então temido pelos norte-americanos: o caráter político das decisões que anulam as leis por razão de inconstitucionalidade. Retomando a análise de Alexis de Tocqueville, transcreve:

Os estadudinenses... confiram a seus tribunais um imenso poder político; mas, obrigando-os a não atacarem as leis senão por meios judiciais, diminuíram bastante os perigos desse poder [...] Se o juiz pudesse atacar as leis de maneira teórica e geral, se pudesse tomar a iniciativa de censurar o legislador, entraria estrepitosamente na cena política; tornando-se campeão ou adversário de um partido, teria chamado todas as paixões que dividem o país a tomar parte da luta. Mas, quando o juiz ataca uma lei em um debate anônimo e em uma aplicação particular, esconde em parte a importância do ataque aos olhos do público. Sua sentença não tem outro objetivo senão o de proteger um interesse individual; a lei só é atacada por acaso. (grifo nosso)

 

Nesse mesmo sentido é a crítica de Lênio Luiz Streck[26], na medida em que “a instituição de um tribunal de controle de constitucionalidade fora da estrutura do Poder Judiciário tinha o nítido objetivo de proteção do legislador, influência da Revolução Francesa”, pois ao mesmo tempo em que se criam mecanismos capazes de assegurar a vontade geral da lei, também é possível a instituição de freios entre os Poderes.

Uma vez que, no sistema de controle concentrado, o conhecimento da matéria constitucional ficará a cargo exclusivamente do Tribunal Constitucional, disso decorrerão consequências ou atributos próprios dessa nova forma de controle, quais sejam: a propositura dessas ações se dará de forma direta, por meio da competência originária, para conhecer de ações que dependerão da provocação de legitimados específicos, produzindo uma fiscalização abstrata da matéria – que significa dizer que as leis e atos normativos serão analisadas sem qualquer vínculo com os casos concretos[27]. Como consequência, considerando que neste modelo concentrado, a discussão da matéria será em tese e que o processo não envolve partes diretamente interessadas em um litígio que disputa certo bem da vida, a eventual decisão pela inconstitucionalidade da lei terá, em regra geral eficácia geral, alcançando a todos os destinatários da lei e será de aplicação vinculante aos órgãos do Poder Judiciário. Por isso a Corte Constitucional pode ser comparada a um “legislador negativo”[28].

No Brasil, o controle concentrado foi introduzido, às avessas, pela Emenda Constitucional n. 16, de 1965, durante a vigência do regime militar, possibilitando o controle abstrato de constitucionalidade de atos normativos federais e estaduais, por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), sem que, entretanto, tenha sido criado institucionalmente um órgão com os tradicionais atributos de Tribunal Constitucional nos moldes acima comentados, ficando o julgamento da referida ação – como persiste até os dias de hoje – sob a competência originária Supremo Tribunal Federal (STF), criado, ressalte-se, em 1891, sob a influência do modelo norte-americano de Suprema Corte. Daí dizer-se que o Brasil possui um sistema misto de controle da constitucionalidade, congregando o difuso, desde 1891, e o concentrado, desde 1965.

 

3     A CRISE DO MODELO BRASILEIRO DE JUSTIÇA CONSTITUCIONAL E A RAZÃO PELA QUAL O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NÃO É UM TRIBUNAL CONSTITUCIONAL

 

Voltando as atenções aos objetivos específicos do presente trabalho, que busca discutir a (in)existência e a necessidade da instituição de um verdadeiro Tribunal Constitucional no Brasil, cumpre pontuar com maior detalhamento os elementos institucionais e orgânicos que evidenciam a justiça constitucional e os Tribunais Constitucionais europeus. Assim, buscamos elencar as características comuns, que possam identificar o modelo, sem olvidar a existência de peculiaridades próprias de cada país.

A maioria dos Tribunais Constitucionais europeus estão situados em países que adotam o parlamentarismo como sistema de governo (Alemanha, Itália, Espanha, Bélgica, Portugal, entre outros); tal atributo se torna especialmente relevante diante da forma de provimento desses juízes, que em sua maioria não serão provenientes da magistratura de carreira – mas também selecionados entre advogados, membros do ministério público e, principalmente, professores universitários –, sendo escolhidos mediante indicação ou eleição de autoridades políticas. Apenas para citar alguns exemplos, na Alemanha oito membros são escolhidos pelo Bundestag (Parlamento) e oito membros são escolhidos pelo Bundesrat (Conselho Federal dos Länder); na Itália, cinco membros são indicados pelo Presidente da República, cinco membros pelo Parlamento e cinco pelas Magistraturas Supremas; e, por fim, na Espanha os membros são selecionados pelo Rei mediante proposição de quatro membros pelo Congresso, quatro membros pelo Senado, dois pelo governo e dois pelo Conselho Geral do Judiciário[29]. A título exemplificativo, os casos de composição heterogênea acima lançados evidenciam a marcante diferença em relação aos modelos norte-americano e brasileiro, no qual os membros da Suprema Corte são, em sua totalidade, indicados pelo Presidente da República e confirmados por posterior sabatina no Senado Federal[30].

Também imperioso registrar que diferentemente dos países que adotam um modelo norte-americano de justiça constitucional, no qual os juízes da Suprema Corte exercem função vitalícia – ou no caso brasileiro até que completem a idade para aposentadoria compulsória, atualmente fixada em 75 anos[31] –, nos países europeus, o mandato se dá por prazo determinado e poucos admitem a possibilidade de recondução. Na Alemanha o mandato é de doze anos, inadmita a renovação; na Itália e na Espanha, o mandato é de nove anos, também inadmitida a renovação; e, em Portugal, o mandato é de seis anos, permitida sua renovação[32].

 Contudo, a questão mais significativa diz respeito a independência – organizacional, administrativa e financeira – do Tribunal em relação a qualquer outro órgão ou autoridade estatal, colocando-o “fora do alcance dos poderes públicos que a Corte está encarregada de controlar”[33], bem como sua clara separação do Poder Judiciário. De acordo com Louis Favoreu esta “é a diferença fundamental entre uma Corte Suprema e uma Corte Constitucional: enquanto a primeira está necessariamente – daí seu nome – colocada no cume de um edifício jurisdicional, a segunda está localizada fora de todo aparelho jurisdicional[34] (grifo nosso).

Esta separação estrutural do Judiciário gera consequências importantes, como a diminuição no volume de processos que chegam ao Tribunal e, especialmente, no número de ações julgadas a cada ano – apesar da crescente demanda pelo controle na aplicação das leis, ou seja, das ações que versam sobre os pedidos de cassação a decisões judiciais, por meio de ações próprias, como o recurso constitucional alemão ou o recurso de amparo espanhol[35].

Por todos esses atributos, evidenciam-se as razões pelas quais o Supremo Tribunal Federal - STF não pode ser identificado como um verdadeiro Tribunal Constitucional, haja vista sua criação aos moldes da Suprema Corte norte-americana, em 1891, e sua manutenção quase inalterada desde então. A inclusão das ações do controle concentrado na competência originária da Corte Suprema brasileira – a ADI desde 1965 e a complementação com a ADO e a ADPF em 1988 e, por fim, a ADC em 1993 – apenas agravou a crise paradigmática que vive a justiça constitucional pátria.

Nesse sentido, são alarmantes os números produzidos pelo STF a cada ano. Apenas em 2014,foram distribuídos ao Supremo Tribunal Federal 78.110 processos das mais variadas categorias, tendo sido julgados o estarrecedor total de 110.603 processos.[36] Entre as ações do controle concentrado foram julgadas 181 ações, o que por si só representou um aumento de 351% em relação às 51 ações julgadas em 2013. O plenário julgou 166 ações diretas de inconstitucionalidade (ADI), 14 arguições de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) e uma ação declaratória de constitucionalidade (ADC).[37]

Isso significa dizer que o mesmo STF que julga o complexo conjunto das ações do controle concentrado, incluídas a elaboração das súmulas vinculantes, ainda é responsável pelas demais ações de competência originária e todo o universo recursal que lhe cabe – e cuja exigência de reconhecimento de repercussão geral não tem sido suficiente para filtrar as demandas que acessam a Suprema Corte. Uma consequência negativa desse excessivo volume de demandas a espera de julgamento é o uso indiscriminado das decisões monocráticas[38].

Algumas medidas vêm sendo tomadas, no sentido de racionalizar e otimizar a jurisdição prestada pelo STF. Contudo, na medida em que estas reformas vêm sendo realizadas por um impulso interno dos membros da própria corte – por meio de alterações em seu Regimento interno –, estas serão sempre parciais e de eficácia limitada, haja vista que uma reforma estrutural-institucional dependeria de proposta de emenda à Constituição. Dentre as inovações alcançadas em 2014, destacam-se a transferência de competências de uma série de matérias do Plenário para as turmas, dentre elas, (a) recebimento de denúncia ou queixa; (b) ações penais contra deputados e senadores (exceto dos presidentes da Câmara e do Senado) e ministros de Estado, entre outros; (c) ações contra o Conselho Nacional de Justiça e o Conselho Nacional do Ministério Público; (d) reclamações; (e) todos os mandados de segurança, mandados de injunção e habeas data; (f) ações envolvendo litígios entre Estados estrangeiros e a União e os conflitos federativos.[39] Todas essas modificações evidenciam a consciência e o interesse do Plenário em restringir sua atuação aos casos típicos de controle concentrado – ações diretas e repercussão geral.

 

4     CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

A finalidade do presente texto – diante do convite para debater a globalização dos problemas fundamentais dos estados contemporâneos – era problematizar, cotejando os atributos dos modelos de justiça constitucional norte-americano e europeu, a (in)existência de um verdadeiro Tribunal Constitucional no Brasil. A ausência de certos traços – como a separação orgânica e institucional do Tribunal Constitucional da estrutura do Poder Judiciário, a competência exclusiva e concentrada para o contencioso constitucional, bem como as diferenças quanto a forma de provimento dos cargos e a permanência na Corte por mandato com prazo determinado – comprovam com clareza o distanciamento que existe entre o Supremo Tribunal Federal e as Cortes Constitucionais europeias. Não obstante esse claro cenário, é notável a dramaticidade do problema diante da ausência de um amplo debate público – pelo menos entre a comunidade jurídica – que decorra de uma reflexão paradigmática acerca da justiça constitucional exercida no Brasil.

 

REFERÊNCIAS

 

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Data de Submissão: 27/09/2018, Data de Aprovação: 06/12/2018

 

COMO CITAR ESTE ARTIGO

GUBERT, Roberta Magalhães. Os desafios para a implementação de um tribunal constitucional brasileiro. Revista de Direito da Faculdade Guanambi, Guanambi, BA, v. 5, n. 1, p. 94-114, jan./jun. 2018. ISSN 2447-6536. Disponível em: http://revistas.faculdadeguanambi.edu.br/index.php/Revistadedireito/article/view/210. Acesso em: dia mês. Ano. doi: https://doi.org/10.29293/rdfg.v5i1.210.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 



[1] Doutora em Direito Público (UNISINOS). Mestre em Direito Público (UNISINOS). Graduada em Ciências Jurídicas e Sociais (PUC/RS). Professora (UNISINOS). Advogada (OAB/RS).

[2] MORAIS, José Luís Bolzan de. As crises do Estado e da Constituição e a transformação espacial dos direitos humanos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002.

[3]CANOTILHO, José Joaquim Gomes. O Estado adjetivado e a Teoria da Constituição. Revista da Procuradoria-Geral do Estado, v. 25, n. 56, 2002, Porto Alegre, Procuradoria-Geral do Estado do Rio Grande do Sul, p. 26-27.

[4] FAVOREU, Louis. As cortes constitucionais. São Paulo: Landy, 2004, p. 15.

[5] CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 895.

[6] HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1991. p. 15-19.

[7]SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 184-185.

[8] HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1991. p. 19

[9]SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 184-185.

[10]STRECK, Lênio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 102.

[11] MOREIRA apud STRECK, Lênio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 103.

[12] CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 896.

[13] FAVOREU, Louis. As cortes constitucionais. São Paulo: Landy, 2004, p. 17.

[14] STRECK, Lênio Luiz. Jurisdição constitucional e decisão jurídica. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 362-365.

[15] STRECK, Lênio Luiz. Jurisdição constitucional e decisão jurídica. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 372-373.

[16]BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 3-5.

[17]BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 5.

[18] TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América. 4. ed. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1998, p. 82-83.

[19] HAMILTON, Alexander; MADISON, James; JAY, John. O federalista. 3. ed. Campinas: Russel Editores, 2009. p. 479-480.

[20]Lênio Luiz Streck, citando Rui Medeiros, adverte que a ideia de um tribunal constitucional ad hoc não é inovação de Hans Kelsen; sendo este inspirado nos modelos pré-existentes da Checoslováquia e da própria experiência austríaca. Nesse sentido, transcreve “As ideias de Kelsen sobre a justiça constitucional, mais do que ponto de partida, indicam um ponto de chegada. Assim, mesmo omitindo o precedente introduzido poucos meses antes Checoslováquia ou os antecedentes austríacos do sistema desenhado pela Constituição de 1º de outubro de 1920, não se pode ignorar que o referido compromisso estava subjacente a alguns modelos filosóficos, projetos políticos, precedentes jurisprudenciais e doutrinas jurídicas que um pouco por toda a Europa prepararam o terreno da justiça constitucional no século XX”. MEDEIROS apud STRECK, Lênio Luiz. Jurisdição constitucional e decisão jurídica. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 413.

[21]SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 733.

[22] KELSEN, Hans. Autobiografia de Hans Kelsen. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense universitária, 2012, p. 80-81.

[23] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 896.

[24] FAVOREU, Louis. As cortes constitucionais. São Paulo: Landy, 2004, p. 16.

[25] TOCQUEVILLE apud FAVOREU, Louis. As cortes constitucionais. São Paulo: Landy, 2004, p. 18.

[26] STRECK, Lênio Luiz. Jurisdição constitucional e decisão jurídica. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 414.

[27]CAPPELLETTI, Mauro. O controle judicial de constitucionalidade das leis no direito comparado. 2. ed. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1999, p. 104.

[28]SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 734.

[29] FAVOREU, Louis. As cortes constitucionais. São Paulo: Landy, 2004, p. 30.

[30]Sabatina que no caso brasileiro, muitas vezes, tem finalidade meramente formal, considerando a força e o empenho do Executivo na formação e manutenção da base aliada junto ao Congresso Nacional.

[31] BRASIL. Emenda Constitucional nº 88, de 08 de maio de 2015. Altera o art. 40 da Constituição Federal, relativamente ao limite de idade para a aposentadoria compulsória do servidor público em geral, e acrescenta dispositivo ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Diário Oficial. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/emecon/2015/emendaconstitucional-88-7-maio-2015-780696-publicacaooriginal-146836-pl.html>. Acesso em: 19 set. 2015.

[32] FAVOREU, Louis.As cortes constitucionais. São Paulo: Landy, 2004, p. 30.

[33] FAVOREU, Louis. As cortes constitucionais. São Paulo: Landy, 2004, p. 27.

[34] FAVOREU, Louis. As cortes constitucionais. São Paulo: Landy, 2004, p. 33.

[35] FAVOREU, Louis. As cortes constitucionais. São Paulo: Landy, 2004, p. 38-39.

[36]BARROSO, Luís Roberto. Ano trouxe mudanças e amadurecimento do Supremo Tribunal Federal. Revista Conjur. Disponível em: ˂ https://www.conjur.com.br/2014-dez-31/roberto-barroso-ano-sinaliza-mudancas-supremo-tribunal-federal ˃. Acesso em: 19 set. 2015.

[37] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Disponível em: ˂http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=283422 ˃. Acesso em: 19 set. 2015.

[38]Em entrevista recente, Ingo Wolfgang Sarlet refere a necessidade de desenvolvimento de melhores filtros para a realização do controle abstrato e critica o excesso de decisões monocráticas. SARLET, Ingo Wolfgang. Estamos criando uma inversão de argumentos para levar HCs ao Supremo. Revista Conjur. Disponível em: ˂ https://www.conjur.com.br/2015-set-06/entrevista-ingo-sarlet-juiz-professor-direito-constitucional ˃. Acesso em: 19 set. 2015.

[39] BARROSO, Luís Roberto. Ano trouxe mudanças e amadurecimento do Supremo Tribunal Federal. Revista Conjur. Disponível em: ˂ https://www.conjur.com.br/2014-dez-31/roberto-barroso-ano-sinaliza-mudancas-supremo-tribunal-federal ˃. Acesso em: 19 set. 2015.