CRISES DA MODERNIDADE E ORGANIZAÇÃO TÉCNICA DO TRABALHO, DO CONSUMO E DA CIDADE

MODERNITY CRISIS AND TECHNICAL ORGANIZATION OF WORK, CONSUMPTION AND CITY

 

 

Fabrício Carlos Zanin[1]

Universidade Federal do Tocantins (UFT), Tocantinópolis, TO, Brasil.

[email protected]

 

Fábio César Costa Júnior[2]

Universidade Estadual do Tocantins (UNITINS), TO, Brasil.

[email protected]

 

Matheus Ferreira Pacheco[3]

Universidade Estadual do Tocantins (UNITINS), TO, Brasil.

[email protected]

 

Vico Barbosa Cosson[4]

Universidade Estadual do Tocantins (UNITINS), TO, Brasil.

[email protected]

 

 

Resumo: O tema do artigo é o fundamento da modernidade e seu projeto civilizatório expandido ao mundo pela colonização e pela globalização. O objetivo central é analisar como o fundamento moderno fundou um modelo de civilização por meio de revoluções e como entrou em crise. Por que as crises do fundamento moderno e de seu projeto civilizatório estão sendo interpretadas apenas no sentido neoliberal reformista? Não há outros caminhos? O desafio de nossa época é interpretar a crise do fundamento moderno denunciando sua lógica unitária, universal e normativa e propor alternativas inclusivas. O referencial teórico é a hermenêutica filosófica e a metodologia é a fenomenologia hermenêutica. A principal conclusão é a de que o projeto moderno desembocou numa civilização técnica, na qual organiza tecnicamente (toyotismo) o trabalho, o consumo e a cidade, esquecendo de suas outras promessas de liberdade e de felicidade. Todas as reformas neoliberais trabalhistas, previdenciárias, da saúde, consumeristas e urbanas indicam o predomínio da civilização técnica.

 

Palavras-chave: Modernidade. Pós-modernidade. Trabalho. Cidade. Técnica.

 

Abstract: The theme of the article is the foundation of modernity and its civilization project expanded to the world by colonization and globalization. The central goal is to analyze how the modern foundation founded a model of civilization through revolutions and how it came into crisis. Why are the crises of the modern foundation and of its civilizing project being interpreted only in the neoliberal reformist sense? Are there no other ways? The challenge of our time is to interpret the crisis of the modern foundation denouncing its unitary, universal and normative logic and proposing inclusive alternatives. The theoretical reference is the philosophical hermeneutics and the methodology is the hermeneutic phenomenology. The main conclusion is that the modern project has led to a technical civilization, in which technically (toyotism) organizes work, consumption and the city, forgetting its other promises of freedom and happiness. All neoliberal labor, social security, health, consumer and urban reforms indicate the predominance of technical civilization.

 

Keywords: Modernity. Postmodernity. Work. City. Technique.

 

1      INTRODUÇÃO

 

O tema do artigo é o fundamento humanista, racionalista e científico da modernidade, entendida como um projeto civilizatório que, a partir da colonização e da globalização, tornou-se planetário, impondo a tudo uma lógica mercantil, econômica e de consumo e a todos uma modernização da economia, da política, do direito, da ética, da religião, da cultura, da educação, do trabalho, do consumo e das cidades, mediante reformas estruturais neoliberais.

O objetivo central é analisar, num primeiro momento, como o fundamento moderno humanista, racionalista e científico manifestou-se nas mais variadas partes do projeto civilizatório e, posteriormente, num segundo momento, ver como a crise do próprio fundamento moderno também se manifestou nas crises das suas respectivas partes (economia, política, direito, ética, religião, cultura, educação, trabalho, consumo e cidades).

Justifica-se tal análise porque o projeto civilizatório da modernidade, sobretudo nas suas partes estatal (estado de bem-estar social), jurídica (direitos humanos-fundamentais), urbana (direito urbanístico), trabalhista (direito do trabalho) e consumerista (direito do consumidor), está em crise e sob ameaça constante da lógica do pensamento único neoliberal, a qual está invadindo absolutamente todas as esferas de nossa vida.

Nosso problema pode ser formulado do seguinte modo: como e por que a crise do fundamento da modernidade e todas as suas crises derivadas (economia, política, direito, ética, religião, cultura, educação, trabalho, consumo e cidades) estão sendo interpretadas apenas no sentido neoliberal e não em um sentido de reconhecimento e inclusão das minorias, da diversidade e das identidades culturais historicamente excluídas, massacradas, violentadas?

Nossa principal hipótese é a de que o desafio de nossa época pós-moderna enquanto crise da modernidade é o de que se, por um lado, nunca se ouviu falar tanto em minorias, em diversidades, em identidades culturais e em tudo o que o fundamento uno, universal e normativo da modernidade escondia pela violência excludente da invisibilidade e da não tematização, então, por outro lado, as lutas devem ser no sentido de dar voz política a esses grupos e ampliar sua inclusão e sua participação cidadão e democrática.

Nosso referencial “teórico” é o da hermenêutica filosófica e a fenomenologia hermenêutica enquanto “método” de trabalho, pois tentamos desocultar e desvelar o fundamento moderno, suas características e sua lógica de funcionamento nos atos de fundação revolucionários que o manifestam nas partes do projeto civilizatório (economia, política, direito, ética, religião, cultura, educação, trabalho, consumo e cidades).

As palavras “teórico” e “método” estão entre aspas porque a hermenêutica e a fenomenologia fazem uma releitura da relação entre a filosofia e as ciências justamente pela discussão de seus próprios limites, tanto da filosofia (crise do fundamento) quanto das ciências (crise das ciências).

O artigo divide-se em quatro partes: a primeira, trata do fundamento do projeto civilizatório da modernidade, de suas manifestações ou partes e de sua expansão colonialista e globalizante; a segunda, trata, além das suas características, da sua dimensão metafísica e de sua lógica de funcionamento, da crise do fundamento e de suas manifestações ou partes, abordando também as três posições do debate sobre a pós-modernidade; a terceira, trata das crises do estado como exemplo paradigmático de manifestação do fundamento moderno, mas mostra os obstáculos da resposta neoliberal à denúncia da lógica dualista, excludente e violenta do fundamento moderno; por último, na quarta, vemos as conexões que o projeto da modernidade, transformado a partir das lutas do estado de bem-estar social, criou entre capitalismo, trabalho, consumo e cidade, mas que, em virtude das transformações da globalização, estão ameaçadas, mais uma vez, pela lógica neoliberal.

 

2     FUNDAMENTO DO PROJETO CIVILIZATÓRIO DA MODERNIDADE

 

A modernidade é, além de uma época histórica, um paradigma civilizatório. Como época histórica, considera-se, por um lado, o apogeu das épocas anteriores da antiguidade e da idade média e, por outro, chega-nos até hoje com uma polêmica em torno de seu próprio nome, contemporaneidade ou pós-modernidade.

No entanto, a polêmica em torno de como devemos chamar nossa época atual reflete as transformações profundas da modernidade, que vão fundo, chegando no momento de fundação da modernidade, no qual houve a definição do seu fundamento (HEIDEGGER, 2003; GADAMER, 1997). É este fundamento que moldou todo o paradigma civilizatório moderno. Portanto, a polêmica de nomenclatura da contemporaneidade ou pós-modernidade é secundária porque reflete uma discussão a respeito do fundamento da modernidade e sua crise.

O fundamento que moldou todo o desenvolvimento do paradigma civilizatório da modernidade é o humanismo racionalista científico, que também pode ser chamado de outros nomes, tais como “metafísica da subjetividade” (ZARKA, 1987) ou “filosofia da consciência” (HABERMAS, 2002), dentre outros. Pode-se definir o fundamento, não apenas o da modernidade, como aquilo a partir do qual todas as coisas nascem, aquilo que sustenta todas as coisas na sua existência e aquilo para o qual todas as coisas retornam quando se deterioram (REALE; ANTISERI, 1995).

Assim, a partir da definição do fundamento, tudo passa a ser fundado e fundamentado a partir dele. Nesse momento, aparece a construção das partes que compõem o projeto civilizatório moderno: economia, política, direito, ética, religião, cultura, educação, trabalho, consumo e cidades. Todas elas fundadas e fundamentadas pelo fundamento humanista, racionalista e científico da modernidade.

A modernidade é uma época histórica revolucionária porque, depois de definido o novo fundamento humanista, racionalista e científico, todas aquelas partes passaram por revoluções importantíssimas. As revoluções devem ser vistas como atos de fundação desde um novo fundamento. Quanto à economia, temos a revolução do nascimento da burguesia enquanto classe econômica e da própria economia enquanto ciência autônoma livre das amarras clássicas e medievais. Assim, a ideologia liberal transforma a economia feudal em capitalista, o que provocou toda uma nova organização da produção, do trabalho e das demandas de consumo (MARX, 2014). Locke (2005), Smith (1988) e a revolução industrial foram importantes nessa revolução liberal econômica.

Quanto à política, Maquiavel destaca-se por ter liberado a ciência política de suas limitações filosóficas clássicas e teológicas. A partir dele, tudo passa a ser analisado a partir da lógica de conquista, manutenção, exercício e expansão do poder (2015). Além disso, o contratualismo (AGAMBEN, 2004a) enquanto novo modo de fundamentação do poder político reflete a revolução reconstrutiva da política civil e estatal desde o novo fundamento humanista racional e científico. As revoluções políticas burguesas inglesa, norte-americana e francesa (NEGRI, 2002) são exemplos das profundas transformações políticas da época moderna, consolidando o liberalismo agora também no campo político.

O jusnaturalismo humanista e racionalista não revolucionou apenas o Estado Moderno política e economicamente, mas também o Direito e os direitos foram transformados de modo fundamental. O direito passou a ser visto como uma ciência dogmática e sistemática (FERRAZ JÚNIOR, 2015). A noção de sistema (LOSANO, 2011) será importante aqui, mas também em outras ciências. Já os direitos passam a ser humanos, isto é, direitos humanos das declarações de direitos e fundamentais das constituições. Portanto, não apenas o direito, mas também os direitos passam ser vistos desde a nova ótica humanista e racionalista (BOBBIO, 2004). Não mais a natureza cosmológica antiga ou a natureza divina medieval como fundamentos, mas sim a natureza humana racional, expandindo a ideologia liberal agora para a ciência jurídica e os direitos humanos-fundamentais (WOLKMER, 2006).

Quanto à ética, ela vai transformar-se profundamente a partir da lógica liberal e burguesa capitalista, pois passará a ser vista desde uma ótica individual de liberdade e individualismo (SÁNCHEZ VÁZQUEZ, 2012). O que na antiguidade era visto necessariamente em conexão, ou seja, a ética, a política e o direito, a partir do novo fundamento moderno, passa a ser, como vimos, separado em campos autônomos e independentes, porém unificados pelo fundamento humanista racionalista (HASSEMER; KAUFMANN, 2002). Todo um conjunto de valores liberais revolucionários passa a orientar as ações individuais e, além disso, irradiar seu poder paras os campos econômico, político e jurídico.

Na religião, a revolução luterana (REALE; ANTISERI, 1995) transforma radicalmente o apogeu medieval da igreja católica e do cristianismo. O individualismo das dimensões ética, econômica, política e jurídica alcança, partir de agora, também a esfera religiosa. A transformação foi tanta, que ocorre literalmente uma “privatização” da religião, conectando-a com a esfera econômica da produção, do consumo e do trabalho (WEBER, 1974).

A respeito da cultura, a modernidade passou a valorizar como padrão e modelo a alta cultura ou cultura culta. Essa ideal cultura nada mais fez do que refletir todas as transformações liberais anteriores, ou seja, uma cultura baseada na autonomia das ciências e na autonomia dos indivíduos (LIPOVETSKY, 2011).

Em busca do ideal cultural culto, os indivíduos livres, iguais e autônomos tinham que ser formados, instruídos e educados. A educação desempenha, portanto, para o liberalismo, um papel fundamental na formação do indivíduo, do cidadão e do trabalhador (ARANHA, 2006a; 2006b). Mas, se existe uma cultura alta, há também a cultura baixa. O mesmo acontece com a educação: uma educação para o trabalho e outra para a cidadania. O dualismo cultural manifesta-se no dualismo educacional.

Aliás, o dualismo manifesta-se em cada uma das partes do projeto civilizatório da modernidade, marcando-os com sua lógica de funcionamento excludente, único, normativo e violento (VATTIMO, 1996). O fundamento humanista, racionalista e científico da modernidade apresenta, portanto, uma lógica de funcionamento (ZANIN, 2014).

O mesmo vai acontecer com o trabalho e o consumo. A divisão dualista entre trabalhadores executores e trabalhadores gestores e diretores irá se manifestar no consumo de uma cultura baixa por aqueles e de uma cultura alta por estes (LIPOVETSKY, 2011). As revoluções industriais não transformaram apenas a produção em capitalista, mas também o trabalho e o consumo foram afetados. A racionalização moderna vai afetar também os modos de organização do trabalho e do consumo.

A respeito das cidades, a revolução industrial só pode ser inteiramente compreendida quando em conexão com o processo de urbanização. Assim, as cidades passam a se organizar dentro da mesma lógica liberal capitalista de organização da produção, do trabalho e do consumo. Portanto, toda a vida coletiva na cidade, inclusive o tempo “livre”, é organizada com base numa lógica mercantil de trabalho, produção e consumo (MORAIS, 1988).

Por último, toda a construção civilizatória moderna baseada no fundamento humanista, racionalista e científico, de cunho liberal, ocidental e europeu, será exportada à ferro e fogo, a todos os cantos “selvagens” do mundo, tais como os americanos, asiáticos e africanos (LAPLANTINE, 2003). O nome dessa exportação é colonialismo (DUSSEL, 1993). Sua lógica de funcionamento foi a imposição única, universal e normativa a todas as partes do mundo das partes do projeto civilizatório moderno. E nada mais coerente com a modernidade, do que justificar a colonização a partir das ciências e dos níveis de “evolução, progresso, desenvolvimento ou modernização” científica dos povos e das nações – os selvagens de ontem são os subdesenvolvidos ou em desenvolvimento de hoje (ZANIN, 2013).

Portanto, a modernidade nada mais é do que um projeto civilizatório que foi, por um lado, construído mediante revoluções justificadas pelo ideal de um novo fundamento humano, racional e científico e que, posteriormente, por outro lado, foi exportado e imposto aos outros países a partir da colonização, também justificada pelo ideal do novo fundamento humano, racional e científico. Com as revoluções modernas fundamentais, a cultura liberal-burguesa-individualista não conseguiu apenas negar o passado com as revoluções, mas conseguiu também prevalecer no presente e impor-se universalmente ao futuro com as colonizações e, atualmente, com as globalizações (econômica, política, cultural, social, etc.) (ANDERSON, 1996).

Entretanto, depois de sua consolidação mundial, o paradigma civilizatório da modernidade está em crise, no qual não apenas seu fundamento é questionado, mas também todas as suas partes e seu modo de construção excludente e consolidação expansiva, impositiva e violenta. É na crise do fundamento do projeto civilizatório moderno que deve ser entendida não apenas a polêmica em torno da nomenclatura de nossa época, contemporaneidade ou pós-modernidade, mas também a diversidade de posicionamentos dentro da própria pós-modernidade.

 

3     CRISE DO FUNDAMENTO DO PROJETO CIVILIZATÓRIO DA MODERNIDADE

 

As crises da modernidade têm a ver com as características do fundamento e com o lugar onde ele habita. O fundamento habita a dimensão metafísica, ou seja, ele tem um caráter filosófico (HEIDEGGER, 1991). Já as características do fundamento são as seguintes: invisível, existência, presença, não tematizado e sustentação. Por tudo isso que o fundamento é fundamental, pois está no fundo e funda, mas, por ser invisível, deve ser mostrado, visível e tematizado no ato de fundamentar.

O fato do fundamento ser invisível, não significa que ele não exista ou não esteja presente nas coisas que funda e que sustenta. Eis aí a razão de falarmos constantemente das partes da modernidade e suas crises (economia, política, direito, ética, religião, cultura, educação, trabalho, consumo e cidades), mas nunca, ou quase nunca, tematizar, desvelar ou desocultar seu fundamento e sua crise. Além disso, por habitar a dimensão metafísica, o fundamento moderno é uno, universal e normativo e funciona por meio de uma lógica dualista e excludente (ZANIN, 2015).

A dimensão metafísica do fundamento e suas características são importantes porque as crises das partes da modernidade começam justamente pela crise do fundamento metafísico da modernidade. Toda a construção do paradigma civilizatório da modernidade foi feita com base na expansão una, universal e normativa de seu fundamento. Mas as crises começaram com as guerras mundiais, com o fim da guerra fria, com a globalização e com o apogeu da tecnologia na era da técnica (HEIDEGGER, 1991).

A partir de então, a operação do fundamento foi denunciada e escancarada. Tal operação consiste numa lógica dualista, excludente e violenta: o fundamento é uno porque nega, exclui e violenta a multiplicidade; universal porque nega, exclui e violenta as particularidades e normativo porque imposto de forma excludente e violenta (MACCUMBER, 1999). As barbáries do século XX provaram essa lógica dualista, expansiva, dominadora e violenta do fundamento moderno. Exemplos dessa denúncia do fundamento moderno podem ser Nietzsche com a frase “Deus morreu” – onde Deus deve ser interpretado como fundamento – e Lyotard com o seu “fim das grandes narrativas da humanidade” – como as ideologias liberal e social e também o cristianismo. Também Heidegger com seu pensamento sobre a “essência da técnica” e Agamben sobre seu pensamento sobre o “estado de exceção” exemplificam os desafios do pensamento a respeito do fundamento moderno e sua lógica de funcionamento em suas várias esferas (econômica, política, jurídica, ética, etc.).

Como não poderia deixar de ser, se o fundamento de todo o projeto civilizatório da modernidade está em crise, obviamente todas as partes do projeto serão contaminados pela mesma crise fundamental. Sendo assim, a lógica de funcionamento dualista, violenta e excludente do fundamento será denunciada em cada uma das partes do projeto civilizatório. A começar pela economia, que tem como fundamento o dualismo moderno entre público e privado, estatal e social, governamental e mercantil. Toda a polêmica interventiva estatal no liberalismo clássico, social e novo (neoliberalismo) tem como origem tal dualismo fundamental (MERQUIOR, 1991).

No âmbito estatal, a teoria contratualista é exemplar no funcionamento dualista fundamental, pois se ampara na argumentação da passagem do indivíduo do estado de natureza animalesco e selvagem para o estado civilizado e estatal político, mediante contrato entre indivíduos racionais, autônomos, iguais e livres. Tal dualismo entre natureza e cultura (AGAMBEN, 2004a) ou animalidade e humanidade (DERRIDA, 2002) será até hoje fonte de muita discussão, basta exemplificar com a teoria da evolução, a discussão em torno das ciências naturais e culturais e suas metodologias ou as biociências e as biotecnologias, que confundem a divisão clássica moderna (SIMONDON, 2001).

Quanto ao direito, a polêmica sobre a abordagem que deve ter a ciência jurídica dogmática e sua visão sistemática é exemplar. A polêmica consiste na visão do sistema enquanto modelo mecânico artificial ou enquanto modelo biológico funcional – modelos que, em si mesmos, já denunciam, de novo, o dualismo moderno entre seres humanos e animais (FERRAZ JÚNIOR, 2015). Os direitos humanos e fundamentais, por sua vez, apresentam a polêmica em torno de seus fundamentos universais, cuja lógica ocidental, europeia, burguesa, capitalista e liberal foi denunciada como eurocêntrica, etnocêntrica e negadora – exterminadora! – de outras minorias e identidades culturais (DOUZINAS, 2009; HUNT, 2009).

Se o fundamento morreu e todas as narrativas ordenadoras morreram, então as decisões éticas do indivíduo ficam sem um padrão, um modelo, uma direção única, universal e normativa. Assim, a ética deixa de fornecer as fundamentações necessárias para a emissão ou validação de quaisquer juízos éticos. Talvez por isso nunca se viu tão forte a proliferação de códigos de conduta profissional e empresarial (NALLINI, 2015), na tentativa de criar alguma orientação, do mesmo modo que, por outro lado, o “jeitinho” nunca encontrou o território tão fértil para sua expansão (ALMEIDA, 2012).

Depois de Lutero, parece que as religiões aprofundaram suas divisões e crises. Hoje, as religiões se tornaram grandes espetáculos de entretenimento, invadidos pela lógica do estrelato e do capitalismo, do lucro e do consumo. Sem falar na fé, que se transformou numa mistura de crenças tranquilizadora e não praticante, voltada unicamente para o deleite e bem-estar pessoal (LIPOVETSKY, 2011).

No âmbito da cultura, a lógica de funcionamento dualista do fundamento moderno, que separou alta cultural da baixa cultura, foi denunciada e, atualmente, já não há mais um critério que defina as fronteiras entre as culturas popular e a erudita ou comercial e alta. O que vemos na cultura atual é o predomínio de um individualismo consumista, cujo novo “deus” é o dinheiro e seus “anjos” do divertimento e do prazer (LIPOVETSKY, 2011).

A globalização neoliberal pode ser, por um lado, a responsável por algumas crises da modernidade, tais como a do Estado, por exemplo, mas, por outro lado, acabou por radicalizar o processo de expansão planetário da lógica mercantil moderna, que invadiu e colonizou absolutamente todas as esferas da vida humana, por meio de desregulamentações, desinstitucionalizações e desorganizações, até mesmo ou sobretudo a cultura (JUVIN; LIPOVETSKY, 2012).

Na educação, o fundamento moderno também entrou em crise porque a lógica dualista, violenta e excludente entre modelos de educação para o trabalho e para a cidadania foi denunciada como reprodutora de desigualdades sociais e mantenedora de privilégios na sociedade. Basta ver os índices de evasão escolar e os de ingresso na educação superior, por exemplo. O sistema educacional reproduz na sociedade, portanto, a lógica dualista metafísica do fundamento da modernidade (DEMO, 2008).

Quanto ao trabalho, a globalização e a tecnologia transformaram o mundo do trabalho e de sua regulação através do Estado Social de Direito. O mesmo processo que vimos de desregulação, desorganização e desinstitucionalização da cultura, também está presente aqui, ao mesmo tempo em que a organização “flexível” do trabalho por meio do Toyotismo triunfou (PINTO, 2013).

Os mesmos dualismos fruto do fundamento moderno metafísico manifestam-se no consumo e nas cidades. O dualismo separa dois tipos de consumidores em dois tipos de cidades muito bem definidos. No entanto, com a denúncia do fundamento, as distinções ficaram nebulosas. Atualmente, o que se nota é que todas pessoas e toda a cidade são organizadas com base nas marcas, no mercado e na publicidade, numa lógica onde todos são igualados pelo estímulo constante do novo, de valorização do presente (curto prazo) e do consumo (LIPOVETSKY, 2011).

Outro importante resultado da denúncia da lógica dualista, violenta e excludente do fundamento do projeto civilizatório da modernidade é o de que nunca se ouviu tanto falar em minorias, em diversidades, em identidades culturais, enfim, tudo o que o fundamento uno, universal e normativo da modernidade escondia pela violência excludente da invisibilidade e não tematização (VIVEIROS DE CASTRO, 2015).

As crises das partes do projeto civilizatório da modernidade e a crise de seu fundamento originaram todo o debate sobre a pós-modernidade ou a contemporaneidade. O debate é muito polêmico. No interior da própria modernidade, há três posições (ROUANET; BASSI; SILVA NETO, 2016).

A primeira, diz que a modernidade, em função de suas crises e transformações do século XX, chegou à exaustão, ao seu fim (VATTIMO, 1996). A segunda, ainda acredita nos sonhos inacabados da modernidade e em seu projeto, que ainda resta construir, só que, agora, sob novos fundamentos (HABERMAS, 2002). A terceira, nega que a modernidade acabou e também que ela não acabou, mas, pelo contrário, afirma que seu projeto civilizatório foi radicalizado, a tal ponto de se ter transformado numa hiper-modernidade, na qual a lógica mercantil invadiu tudo (LIPOVETSKY, 2011). Os que preferem usar a nomenclatura contemporaneidade assumem as transformações, mas sem entrar – ou apenas entrando indiretamente – no debate pós-moderno.

 

4     CRISES DO ESTADO

 

O Estado Moderno é, por excelência e como parte da modernidade, o exemplo paradigmático do fundamento de projeto civilizatório, de sua dimensão metafísico-filosófica, de suas características e de sua crise. Além disso, se o direito se manifesta na modernidade enquanto saber dogmático e sistemático, tais elementos do direito irão transferir-se ao estado na formação do conceito de Estado de Direito Moderno (STRECK; MORAIS, 2014).

Não por acaso, há uma semelhança muito forte entre o império romano antigo, a igreja cristã medieval e o estado moderno absolutista, pois todos eles se caracterizam pela forte unidade soberana, pelo desejo de universalidade expansiva e pelo caráter dogmático normativo (WOLKMER, 2006). As características de unidade, universalidade e normatividade expansiva violenta do fundamento moderno ficam muito mais nítidos na sua materialização do Estado Moderno soberano e seus antecedentes medievais e clássicos.

Se o fundamento do projeto civilizatório da modernidade é o humanismo racionalista científico, a expressão emblemática dele é o Estado Moderno. As revoluções políticas burguesas, o nascimento da ciência política e a explicação da racionalização do poder político tendo como base a teoria do contratualismo explicitam tal fundamento humanista, racional e científico.

O fundamento moderno é o início, o fim e o meio de tudo, pois dele tudo nasce, tudo é sustentado por ele e para ele tudo retorna quando acaba. Mais uma vez, o Estado expressa muito bem tal fundamento porque representa o nascimento do novo homem, agora cidadão – com uma identidade nacional –, o qual será sustentado e assegurado em sua existência pelo Estado/no Estado e quando morrer, terá sua morte reconhecida pelo Estado.

A mesma visão do direito enquanto ciência dogmática e sistemática pode ser aplicada ao Estado Moderno. Então, o direito como ciência dogmática é um sistema composto de elementos internos, que se relacionam entre si de forma hierárquica e que ganham unidade mediante um fundamento. Os elementos internos do sistema jurídico são as normas jurídicas válidas, que se relacionam entre si a partir de regras estruturais de adaptação e dinâmica. O fundamento que dá unidade, coerência, completude e perfeição a tudo isso é, por exemplo, para a teoria positivista normativista, a norma fundamental (STRECK, 2004).

É interessante observar que as mesmas as mesmas características do fundamento humanista, racionalista e científico do projeto civilizatório da modernidade estão presentes também na norma fundamental kelseniana.

Desse modo, o Estado também pode ser visto como um sistema, com elementos internos, com regras estruturais de adaptação e dinâmica e um fundamento. O sistema estatal começa com a definição do espaço territorial e seu elemento interno povo. O governo põe ordem no elemento interno povo, mediante elaboração de atos normativos, sendo o principal a Constituição, os quais se relacionam a partir de regras estruturais de adaptação e dinâmica. Tudo isso unificado e cuja existência depende do fundamento humanista, racional e científico da teoria contratualista que explica a origem humana do poder político soberano estatal.

Mais uma vez vale ressaltar as semelhanças entre o fundamento moderno civilizatório, o fundamento normativo do sistema jurídico e o fundamento soberano do poder político estatal. Além disso, a visão do Estado Moderno de Direito como um sistema também facilita a compreensão da organização do território com as formas de Estado (federal ou unitário) e da forma (república ou monarquia) e dos sistemas (parlamentar ou presidencialista) de governo (STRECK; MORAIS, 2014).

Vimos que a crise do fundamento do projeto civilizatório moderno denunciou a lógica dualista, excludente, dominadora e violenta de seu fundamento metafísico. O mesmo aconteceu com o fundamento do sistema jurídico e com o fundamento do sistema estatal. As transformações do Estado de Direito Moderno, que começou absolutista e depois passou a liberal, democrático, ambiental e pós-moderno, exemplificam a crise de seu fundamento soberano. Também o sistema jurídico não passa ileso dessas transformações, basta ver a discussão em torno do pós-positivismo e do neo-constitucionalismo.

Os direitos humanos e fundamentais também sofrem as mesmas transformações do estado e do direito, basta ver o debate sobre sua fundamentação – que deve ser inserido no contexto do fundamento humanista, racionalista, científico, liberal, capitalista e burguês da modernidade – e sobre suas gerações ou dimensões – liberal, social, democrática, trans-individual, da personalidade, dignidade humana, etc. (SARLET, 2011; SIDEKUN, 2011).

Vimos que o fundamento moderno é uno, universal e normativo e que o estado moderno tem semelhanças nesse ponto com o império romano e com a igreja católica. Assim, o extremo de dualismo, exclusão e violência do fundamento é representado pelo estado absolutista. Em seguida, as lutas vão denunciando e abrindo o fundamento cada vez mais. Assim, os burgueses transformam o estado absolutista em liberal. Os trabalhadores transformam o estado liberal em social. A utopia transformadora da democracia transforma o estado social em democrático (STRECK; MORAIS, 2014). Os desafios globais, dentre eles o meio ambiente, transforma o estado democrático em estado cooperativo (HABERLE, 2007) e estado ambiental.

Por último, o fundamento uno, universal e normativo da soberania é enfraquecido ao máximo com a globalização e a tecnologia no chamado estado pós-moderno (CHEVALLIER, 2009). Assim, se nunca se ouviu falar tanto em minorias, em diversidades, em identidades culturais e em tudo o que o fundamento uno, universal e normativo da modernidade escondia pela violência excludente da invisibilidade e da não tematização, então, no âmbito do Estado Moderno de Direito, o desafio passa em dar voz política a esses grupos e ampliar a participação cidadão e democrática.

Da mesma forma o sistema jurídico, cujo extremo de dualismo, exclusão e violência do fundamento é representado pelo positivismo normativista e sua visão da ciência jurídica pura. Em seguida, as transformações da ciência jurídica e da filosofia do direito vão denunciando e abrindo o fundamento cada vez mais. Os vários tipos de positivismo, dentre eles o sociológico, o lógico e o pós-positivismo, e o neo-constitucionalismo, dentre eles o constitucionalismo latino-americano, vão denunciando o fundamento uno, universal e normativo na sua lógica dualista, excludente e violenta, abrindo aos poucos a ciência jurídico e a constituição para outros tipos de questões até então esquecidos (princípios, justiça, legitimidade, etc.) e novos desafios (hermenêuticas jurídica, hermenêutica constitucional, judicialização e ativismo, etc.) (STRECK, 2011).

Mas os obstáculos são imensos à denúncia do fundamento uno, universal e normativo da modernidade na sua lógica dualista, excludente e violenta. Tais obstáculos impõem a lógica mercantil para todas as dimensões de nossa vida, inclusive a dimensão estatal e jurídica, transformando o direito em mera tecnologia de decibilidade; o sistema jurídico, em mero mecanismo de engenharia e controle social; e os direitos humanos em justificativas retóricas para eleições e guerras (BARRETTO, 2010), o que aprofunda o funcionamento dualista, excludente e violento do fundamento da modernidade em todas as suas partes.

Os obstáculos podem ser exemplificados por três situações. A primeira situação é constituída pelos processos de desregulamentação, desorganização e desinstitucionalização da globalização neoliberal (MONTAÑO, 2007). As privatizações e as reformas do estado entram como materialização desses processos. As reformas do direito do trabalho e da previdência social do governo de Michel Temer, no contexto político de Operação Lava-Jato e pós-impedimento da ex-presidente Dilma, devem ser consideradas como resultantes dos obstáculos à luta de enfraquecimento do fundamento moderno uno, universal e normativo, que deveria reconhecer as minorias e dar voz democratizante e cidadã a elas. Com certeza, enfraquecer direitos sociais não parece ser uma boa estratégia para tal finalidade no Brasil. O mais interessante é que a justificativa para tais reformas é a lógica mercantil, capitalista e financeira que invadiu tudo, até mesmo os direitos sociais.

Não só o direito do trabalho e da previdência são alvos da globalização neoliberal. Todo o tratamento estatal da “questão social” nas relações de produção é desafiado exatamente pelo seu oposto, sua invasão pela lógica da produção (PASTORINI, 2010). Toda e qualquer tentativa de humanizar ou contestar a lógica de produção global neoliberal é de tal forma cooptada pela mesma lógica contestada que se transforma em parte produtiva. Basta ver, por exemplo, a precarização da seguridade social e de seu tripé público de saúde, previdência e assistência através do chamado terceiro setor. O público foi privatizado: saúde privada, previdência privada e assistência privada altruísta na forma de voluntariado e ONGs, OSs, OSCIPs, etc.

A segunda situação exemplificadora dos obstáculos ao enfraquecimento do fundamento uno, universal e normativo da modernidade e sua lógica dualista, excludente, violenta e dominadora é o triunfo do capitalismo e a invasão da lógica econômica em todos os mais variados âmbitos de nossa existência (PINTO, 2013). Tal lógica da produção está se fortalecendo tanto, que até mesmo nossas vidas, corpos e mentes são tidos como produtos produzidos e mercadorias cujo valor se restringe às trocas no livre mercado (AGAMBEN, 2004b).

A terceira situação é a de que as crises do estado (conceitual, institucional, funcional e política) (STRECK; MORAIS, 2014) também exemplificam os obstáculos ao enfraquecimento do fundamento uno, universal e normativo da modernidade e sua lógica dualista, excludente, violenta e dominadora, pois significam o triunfo neoliberal em escala planetária.

No entanto, o que tudo isso comprova é que, atualmente, as disputas em torno das partes do projeto civilizatório da modernidade e suas reformas refletem, no fundo e de modo profundo, a disputa pelo fundamento: fortalecer e manter as características do fundamento moderno ou, por outro lado, enfraquecer o fundamento moderno e usar as crises da modernidade como oportunidades para a construção de novos projetos onde as lógicas da unidade, da universalidade e da exclusão violenta não estejam presentes, dando voz e expressão às minorias para a democracia do futuro.

 

5     CRISES DO CAPITALISMO: TRABALHO, CONSUMO E CIDADE

 

Existe uma conexão muito forte entre o fundamento do projeto civilizatório da modernidade – humanista, racionalista e científico – e os sistemas de organização do trabalho e das cidades (FERRARI, 2012). Em outras palavras, as revoluções industriais, urbanísticas e científicas trabalhistas se complementam. Da mesma forma que as crises do capitalismo refletem em crises do trabalho, das cidades e do consumo.

O início do capitalismo se dá grudado com o estado absolutista e o mercantilismo. As revoluções burguesas política, econômica e industrial fizeram com que o capitalismo se tornasse industrial. Nascia o estado de direito liberal. Depois das lutas dos trabalhadores, da primeira guerra mundial e da Grande Depressão, o capitalismo entrou em crise, cedendo espaço à questão social e originando o estado de bem-estar social desenvolvimentista (PINTO, 2013).

As crises do petróleo e do dólar na década de 70 foi o estopim para um conjunto de medidas reformistas no estado de bem-estar social impulsionadas pela globalização e pelas instituições financeiras internacionais, dando início ao neocapitalismo ou neoliberalismo (STRECK; MORAIS, 2014; FERRARI, 2012). Portanto, as crises do capitalismo podem ser resumidas em suas transformações mercantilista, industrial e neoliberal e que acompanham as crises do estado moderno.

O neoliberalismo pode ser resumido num pacote completo de reformas des-regulamentadoras, desorganizadoras e desinstitucionalizadoras. Não somente as privatizações, mas reestruturação produtiva e do trabalho, diversificação do proletariado, escassez de empregos industriais, aumento de empregos em serviços, voluntariado, cooperativismo, empreendedorismo, terceirizações e precarizações, etc. (MONTAÑO, 2007).

A nova ciência econômica de Smith, Malthus e Ricardo e a nova ciência política de Maquiavel não poderiam estar completas em seus ideais humanistas, racionalistas e tecnológicos se não fossem completadas pela nova ciência da administração de Taylor. Começava então, os sistemas de organização do trabalho: taylorismo, fordismo e toyotismo (PINTO, 2013). A força da nova ciência foi tão grande, que não se restringiu à esfera privada, alcançando também o estado e sua administração pública.

Se o capitalismo é um modo de produção, então deveria organizar a produção de acordo com o novo fundamento da modernidade, ou seja, de forma racional, científica, técnica e tecnológica. A racionalidade vem da divisão entre funções (gerência administradora e trabalhadores executores). A ciência vem da fundação da nova ciência da administração enquanto ciência autônoma, independente e com objeto e método próprios diferenciadores das demais ciências (especialização científica). As técnicas são resumidas na mecanização e as tecnologias são as novas máquinas. O resultado de tudo isso? A fábrica!

Desse modo, a organização científica do taylorismo pode ser resumida em três características: primeiro, divisão entre operários e gerentes; segundo, operários ocupavam o espaço do chão da fábrica, enquanto os gerentes ocupavam o espaço dos escritórios; e terceiro, os estudos sobre o tempo de produção desde uma metodologia científica. Todas essas características fizeram do taylorismo uma teoria de base conceitual simples e de aplicabilidade universal, o que realmente aconteceu no século XX.

Como um complemento do taylorismo, o fordismo é caracterizado pela linha reta de produção, uma esteria rolante, na qual os trabalhadores, imóveis, desempenham a mesma tarefa simples de forma repetitiva, sem necessidade de qualificação e informação sobre a totalidade dos processos. Seu resultado foi o aumento da produtividade e dos lucros, bem como a diminuição dos custos. Ford abriu a Ford Motor Company, na qual testou sua nova linha de montagem e incentivou o consumo de massa de produtos padronizados (DOMINGUES, 2016).

As crises do estado, as crises macroeconômicas das décadas de 70 e as crises do sistema taylorista/fordista fazem com que apareça, no Japão do pós-guerra e na empresa Toyota, o sistema do toyotismo, composto dos seguintes elementos: “autonomação”, multifuncionalidade polivalente, celularização, kanban, just-in-time, kaysen, qualidade total, etc. (PINTO, 2013). Sua palavra chave, não por acaso, é flexibilidade. Sua expansão mundial é, por um lado, útil ao neoliberalismo e, por outro, estimulada por ações estatais reformistas.

As transformações capitalistas neoliberais e as transformações da organização do trabalho toyotistas não poderiam deixar de ocasionar transformações também nas cidades, flexibilizando o dualismo entre rural e urbano ou entre indústria e serviços. Aparece nesse contexto a “cidade just-in-time” (FERRARI, 2012), na qual as técnicas de urbanização são planejadas com base na lógica de produção, circulação e consumo do “homem certo, no lugar certo e no tempo certo”.

As cidades acompanham as transformações do capitalismo e do estado, pois as cidades podem ser divididas em primitivas, econômicas e cidades just-in-time ou não-lugares (AUGÉ, 1994), pois se tornaram tão iguais pelo lógica produtiva urbana que não permitem mais a expressão das minorias, da diversidade e das identidades culturais enquanto expressões criativas (LAPLANTINE, 2003).

As modificações do consumo começam com o seu deslocamento da indústria para o setor de serviços, o que implica uma modificação da lógica em série e massificante para a agregação de valor, qualidade e personalização, atendida por um sistema produtivo enxuto e transnacionalizado, globalizado. O que pode ser exemplificado, até os anos 70, pelo consumo de bens familiares e, posteriormente, por bens individualizados e personalizados (LIPOVETSKY, 2011). Assim, o toyotismo – que reflete uma modificação do capitalismo – acaba por expandis sua lógica de flexibilidade não apenas ao trabalho, mas também às cidades e ao consumo nas cidades.

Outras transformações no consumo aparecem como complemento de seu deslocamento para o setor de serviços especializados, ou seja, nas hipóteses de subconsumo – apenas de sobrevivência – e de consumo consciente ou responsável, nos quais os ideais ambientais e ecológicos se misturam, criando uma espécie de consumo engajado.

O problema das conexões entre neoliberalismo, trabalho, cidades e consumo é que toda a legislação protetiva criada com o direito do trabalho, com o direito do consumidor e com o direito urbanístico aparece, agora, ameaçada pelas reformas desregulamentadoras, a qual pretende substituí-la pela prevalência universal, global e planetária da lógica mercantil, econômica e financeira capitalista.

Mais ou menos o que aconteceu com a saúde, com a previdência, com a assistência e com a educação, está acontecendo também com o trabalho, o consumo e as cidades. Da lógica pública, universal e protetiva do estado de bem-estar social, passamos para uma lógica neoliberal e toyotista de privatização, particularização e flexibilização. Assim, “homem certo, no lugar certo e no tempo certo” nada mais quer significar do que o homem liberal, na cidade liberal e no tempo eterno do consumo!

 

6     CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

O fundamento humano, racionalista e científico da modernidade criou uma civilização que tinha promessas e sonhos para a humanidade, a começar pelo controle da natureza para promover a sobrevivência e a felicidade humanas.

Uma parte da promessa foi cumprida e até expandida: não conquistamos apenas a natureza com as ciências, as técnicas e as tecnologias, mas conquistamos também o controle e o domínio da sociedade e se nós mesmos – nossas vidas, desejos, mentes, pensamentos –, basta ver os desafios da inteligência artificial e das biotecnologias. Nem mesmo as ficções políticas modernas e as ficções científicas poderiam imaginar tal progresso.

Mas, se perguntarmos se cumprimos a outra promessa de sobrevivência e de felicidade, ficaremos perplexos com os resultados. A civilização da máquina, da técnica, do controle e da qualidade totais não cumpriu, nesse sentido, suas promessas, pois não somente a sobrevivência humana corre perigo diante da técnica, mas também o planeta.

A conclusão que todo o desenvolvimento do artigo quer mostrar é que o fundamento moderno e toda a sua construção revolucionária de um projeto de civilização desembocou numa civilização técnica, na qual várias tecnologias estão em ação.

(...) tecnologias de processos (gestão e organização), tecnologias de materiais (aplicadas a matérias, energias, forças naturais), tecnologias de sistemas (informação e comunicação) e tecnologias de organismos vivos (biotecnologias). Porém, todas elas têm o mesmo propósito: instalar o controle técnico e cumprir a mesma agenda de conquista ao longo da História, quer dizer, conquista da Natureza (tecnologias materiais de base física ou química), conquista do ser humano (tecnologias biomédicas tradicionais e biotecnologias, além dos fármacos), tecnologias sociais (gestão e controle de processos). As tecnologias sociais incluem-se entre as mais antigas formas de tecnologia, como viu Max Weber ao tratar da burocracia. No mundo contemporâneo [pós-moderno! – complemento nosso], porém, elas ganharam uma extensão e um poder enormes, moldadas com os aporetes do Direito (procedimentos e regras das burocracias). Da Matemática (finanças, impostos), da Sociologia, da Administração e, na atualidade, da Informática. (DOMINGUES, 2016, p.49)

 

Além disso, o debate da contemporaneidade e da pós-modernidade – e de suas posições – ganha uma compreensão maior e mais adequada se compreendido enquanto crise do fundamento do projeto civilizatório da modernidade.

Mas vimos também que o fundamento está em crise, da mesma forma que as partes do projeto estão em crise. A crise do fundamento é a oportunidade de luta entre dois caminhos possíveis.

O fundamento do projeto civilizatório da modernidade habita a dimensão metafísica una, universal e normativa, cujo funcionamento expansivo tem uma lógica dualista, excludente e violenta. Tanto a dimensão do fundamento da modernidade quanto seu funcionamento foram denunciados por filósofos e cientistas críticos da modernidade, ocasião em que nunca se ouviu tanto falar em minorias, em diversidades, em identidades culturais, enfim, tudo o que o fundamento uno, universal e normativo da modernidade escondia pela violência excludente da invisibilidade e não tematização. Assim, o primeiro caminho é continuar criticando o fundamento metafísico moderno e seu funcionamento, mas o desafio maior é dar voz política a esses grupos e ampliar sua inclusão e participação cidadão e democrática.

O segundo caminho é responder às mesmas crises (do fundamento da modernidade e todo seu projeto civilizatório) com a agenda da globalização econômica e financeira e pelo neoliberalismo, cujo resultado são as reformas estruturais e a implantação da lógica única mercantil, econômica e financeira em todas as dimensões da vida.

Desafortunadamente, parece que o Brasil está no segundo caminho, pois realizou e está realizando reformas nos âmbitos estatal, trabalhista, previdenciário, saúde, educação, trabalho, consumo, urbano etc. que significam a vitória neoliberal e – como não poderia deixar de ser – justificadas com o discurso da recuperação do crescimento econômico, com o aumento dos empregos e com a reinserção do Brasil no caminho da “modernização, do progresso, da evolução e do desenvolvimento”.

Portanto, as disputas em torno do futuro do Brasil – sobretudo diante de nosso passado colonial e de atraso em termos de “modernidades” e “modernizações” –refletem, no fundo e de modo profundo, a disputa pelo fundamento moderno que funda todo um projeto civilizatório: fortalecer e manter as características do fundamento moderno (segundo caminho neoliberal) ou, por outro lado, enfraquecer o fundamento moderno e usar as crises da modernidade como oportunidades para a construção de novos projetos de igualdade, inclusão, justiça, cidadania e democracia (primeiro caminho crítico).

Se pretendemos viver bem, uma vida boa, feliz e digna, devemos continuar falando sobre o fundamento moderno e técnico atual de nossa vida enquanto trabalhadores, consumidores, estudantes, moradores da cidade, cidadãos, jovens, idosos, crianças, adolescentes, mulheres, deficientes, etc., pois, se não o fizermos, a lógica técnica e econômica irá invadir de tal modo nossa vida – retirando todas as proteções existentes, especialmente as jurídicas – que já não poderemos mais chamá-la, verdadeiramente, de vida, mas sim de uma “vida” vazia (porque produzida pela lógica da produção capitalista) e nua (porque desprotegida e tornada descartável, substituível e matável).

 

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Data de Submissão: 01/12/2018, Data de Aprovação: 12/12/2018

 

COMO CITAR ESTE ARTIGO

ZANIN, Fabrício Carlos. et al. Crises da modernidade e organização técnica do trabalho, do consumo e da cidade. Revista de Direito da Faculdade Guanambi, Guanambi, BA, v. 5, n. 1, p. 01-20, jan./jun. 2018. ISSN 2447-6536. Disponível em: http://revistas.faculdadeguanambi.edu.br/index.php/Revistadedireito/article/view/224. Acesso em: dia mês. Ano. DOI: https://doi.org/10.29293/rdfg.v5i1.224.

 

 

 

 

 

 

 

 



[1] Mestre em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Professor da Universidade Federal do Tocantins (UFT).

[2] Graduando em Direito pela Universidade Estadual do Tocantins (UNITINS).

[3] Graduando em Direito pela Universidade Estadual do Tocantins (UNITINS).

[4] Graduando em Direito pela Universidade Estadual do Tocantins (UNITINS).